Intervenção de Daniel Virella, neonatologista e coordenador de Neonatologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, Debate «A saúde na gravidez, no parto e na infância - o papel essencial do Serviço Nacional de Saúde»

A organização da sociedade como fator determinante para a saúde. A reflexão necessária sobre a evolução demográfica e etnográfica da nossa sociedade

A organização da sociedade como fator determinante para a saúde. A reflexão necessária sobre a evolução demográfica e etnográfica da nossa sociedade

Boa tarde,

Quero agradecer este convite que aceitei com muito prazer. É mais uma oportunidade para dar visibilidade à saúde em geral e à pediatria em particular, tão inexplicavelmente ausente do pensamento de alguns decisores nesta área.

É para mim também um prazer estar perante esta audiência que, devo confessar, foi para mim uma surpresa. Temos aqui a população desde a mais tenra infância à mais avançada experiência de vida e isso permite que, sendo a iniciativa um debate, todos possam participar segundo as suas opiniões, inquietudes e perspectivas.

Tenho alguma pena de ser o segundo a falar porque vou ser talvez um pouco anti climático.

A saúde é algo que versa as populações e por isso não deve ser encarado numa redoma separada do que é o resto da vida e o país, dos comportamentos e dos serviços.

Na minha formação como epidemiologista, se há uma coisa que aprendi desde cedo é que os principais determinantes da saúde das populações não são os cuidados de saúde, como muitas vezes se pensa, mas sim o bem-estar das pessoas. A sua habitação, a sua alimentação, as condições de ambiente, o conhecimento que têm da vida e do mundo, isto é, a educação ou, se quisermos, a instrução. Quanto mais informada for a população e melhores forem as suas condições de vida, melhor será a sua saúde. Isso é muitas vezes esquecido e temos muita tendência para ter uma visão parcelar das coisas.

Temos de ter, especialmente na área da saúde, a humildade de perceber que a nossa intervenção em saúde é o último dos degraus em importância nos determinantes de saúde. Quem vive em intempérie, quem apanha vento e frio, quem não está bem alimentado, não vai ter saúde. Se virmos, os países onde a população é mais saudável, onde se vive mais e melhor (as duas coisas e não apenas uma delas), são aqueles em que esses outros problemas a montante estão mais resolvidos. São aqueles em que as pessoas têm casas com uma boa rentabilidade térmica, que não são húmidas e frias, em que está garantida a alimentação e em que está garantida a ida à escola.

Quando fui pela primeira vez estagiar para a Europa Central, encontrei uns colegas polacos e falei-lhes da população analfabeta, que havia dificuldade em as pessoas saberem o que fazer na sua vida e até em os profissionais de saúde lhes transmitirem os seus ensinamentos, e eles olhavam para mim como se eu estivesse a falar em mandarim. Parei e perguntei-lhes qual era a questão e percebi que eles nunca tinham conhecido ninguém analfabeto. Na Polónia há um ministério da educação desde o século XVIII.

Portanto, o investimento nos indicadores de saúde é feito antes. Nós, nos cuidados de saúde, especialmente os terciários, estamos para resolver aquilo que não se evitou antes. O que temos de fazer é trabalhar previamente. Dar boas condições de trabalho, de habitação, boas condições de alimentação, de educação, bons transportes, para as pessoas terem uma vida saudável, porque uma vida saudável inclui tudo isso.

Uma vida saudável inclui também a possibilidade de as pessoas terem os seus filhos, se assim o desejarem, crescerem com eles e educá-los da forma mais saudável. À medida que conseguirmos ter uma população mais educada, mais informada, poderemos também dar resposta às suas aspirações fundamentadas e adequadas. Uma sociedade onde a informação é deficiente é uma sociedade que facilita a desinformação e a contra informação.

Onde é que quero chegar com isto? É que há hoje problemas na área da saúde da família, da saúde materna e da saúde infantil, que se prendem com uma sociedade disfuncional que temos em vários aspectos. Uma sociedade que não respeita - por várias razões que não têm a ver com um governo ou outro, mas com a forma como evoluímos – o direito a formar família e a planificá-la, o direito a termos horas de lazer e de qualidade, de termos cultura, de termos o acesso devido àquilo que nos dá uma vida saudável.

Isso faz com que na minha área de actividade principal, a saúde perinatal, cada vez nos enfrentemos mais com problemas que são devidos a esta sociedade disfuncional. Temos dias na Maternidade Alfredo da Costa em que nenhuma mãe tem um bebé tendo menos de quarenta anos. Isto é distópico. Obviamente e felizmente não é todos os dias, mas a idade média do primeiro filho tem vindo a aumentar todos os anos. Hoje em dia, a maior parte das mulheres tem o primeiro filho na idade em que, quando eu nasci, tinham o último. Convenhamos que há algo que não está bem.

E não está bem porque a maneira como temos vindo a organizar a nossa vida e a nossa sociedade não é adequada. Temos de pensar entre todos como queremos que nos orientem a nossa sociedade, como queremos orientar a nossa vida e pensar em prioridades. Faz-me confusão, na minha perspectiva de neonatologista e de pediatra, que haja uma apologia de a mulher ter filhos em qualquer idade e as pessoas não pensem no direito que têm as crianças de terem uma mãe durante grande parte da sua vida. Não é só o facto de uma mãe ou um pai que gostam de assistir ao primeiro dia da escola, ao dia em que acaba o liceu, à entrada na faculdade, a acabar a faculdade, ter netos. Mas sendo mãe pela primeira vez aos 40, 42, 43, quem é que vai ao parque com a criança?

Temos de pensar no que queremos de facto e ter uma visão de conjunto. Temos que informar as pessoas dos riscos. Temos que informar as pessoas de que a ciência e a tecnologia não são tudo. Nós podemos fazer muita coisa e em Portugal também. O que temos de pensar é se tudo o que podemos fazer é lícito e é um ganho. Com os meios tecnológicos que temos conseguimos praticamente salvar qualquer pessoa e fazer com que uma mulher de 50 anos engravide, ou até um homem de 50 anos. O que temos é que saber o que é lícito e o que é bom para todos os envolvidos. E essa é uma discussão que a sociedade tem de ter com base em informação e não em mitos e crenças. E já agora com base nas crianças, também.

Queria pedir-vos para reflectirem quando ouvem dizer que é uma catástrofe nascerem cada vez menos crianças ou que temos de aumentar a natalidade. Temos? Qual é a coerência entre isso e dizermos que temos um mundo cada vez mais povoado? Em que não temos maneira de manter o nosso modo de vida, de nos alimentarmos, de nos aquecermos, de nos deslocarmos? Temos que encontrar um equilíbrio. Um grande pediatra de meados do século passado dizia: “As crianças não têm de ser muitas, têm de ser boas.”. Boas no sentido de saudáveis em termos físicos e mentais. 

Uma outra reflexão. A nossa sociedade está em permanente mutação. E a nossa mutação actual é não só de envelhecimento como de mudança etnográfica. Estamos aqui na Avenida de Roma, mas se avançarmos um pouco mais para sul vemos qual é a mutação da nossa sociedade. Temos que encarar que nós somos o que vemos à nossa volta. E neste momento, em particular no local onde trabalho, somos também 20% de recém-nascidos de famílias que vêm do subcontinente indiano. Estes somos nós, não são eles! Somos nós! E isso é algo que temos de encarar.

Há um desafio em relação a pessoas que chegam e estão nas condições em que muitos portugueses estiveram nas décadas de 50 e 60; parece que nos esquecemos. Temos de conhecer a realidade, aceitar, ser solidários e melhorá-la. Fazendo isso cumpriremos o que vos dizia há pouco. Conseguiremos ter saúde para todos, mas também saúde da mulher, da família e da criança, se conseguirmos dar boas condições de vida a toda a gente. Numa perspectiva da saúde como um estado de bem-estar físico, psíquico e social e não só a ausência de doença.

Também por isso aceitei vir a esta sessão. Porque este é um problema de sociedade, de gestão da sociedade, dos recursos, das aspirações, mas também de promoção da educação e da informação. E estamos hoje aqui também para debater estes assuntos.

Obrigado.

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