Intervenção de Aguinaldo Cabral, pediatra, fundador da Sociedade Portuguesa de Doenças Metabólicas, Debate «A saúde na gravidez, no parto e na infância - o papel essencial do Serviço Nacional de Saúde»

A criança como sujeito de direitos fundamentais. A importância de políticas progressistas para o Crescimento e o Desenvolvimento das Crianças e dos Jovens

A criança como sujeito de direitos fundamentais. A importância de políticas progressistas para o Crescimento e o Desenvolvimento das Crianças e dos Jovens

Muito boa tarde a todos os presentes. Agradeço o convite para participar neste Debate, e cumprimento com amizade os meus companheiros de Mesa, e saúdo a participação de Paulo Raimundo, Secretário-Geral do PCP.

Como Pediatra que sou, não será de admirar que inicie a minha intervenção falando de um ser humano que desde a mais remota Antiguidade, nunca foi reconhecido como um individuo com direitos e ,por isso, foi (e é ainda) ,maltratado, batido, abandonado, explorado, abusado sexualmente, na família e na comunidade. Estou a falar da criança.

É significativa, pela negativa, esta citação do Velho Testamento: “aquele que poupa a vara, estraga a criança”, e o próprio RN apenas foi “descoberto” e respeitado após a segunda metade do século XX, em que deixou de ser uma “miniatura da criança”, já de si desvalorizada.

Como é evidente sempre houve vozes discordantes, e ,a pouco e pouco, lentamente, a criança começou a ser considerada um ser com direitos, definitivamente consagrados em 1959 na “Declaração dos Direitos da Criança,” na esteira da “Declaração de Genebra” (1925), na “Declaração Universal dos Direitos do Homem” (1948), depois emendada para Direitos Humanos, com toda a justiça. Referir ainda a “Declaração de Alma-Ata” (1978), em que se considera a Saúde como um Direito Humano Fundamental, e os CSP a base de todos os Serviços de Saúde, e a “Convenção sobre os Direitos da Criança” (1989), ratificado por Portugal em 1990.

Entre nós, após os anos 70, ganha força a preocupação social das questões ligadas à Criança: foi até criada a Secção de Pediatria Social da Sociedade Portuguesa de Pediatria (1979), há apoio à “Carta Europeia da Criança Hospitalizada” (1984), desenvolve-se o conceito de “Humanização dos Serviços de Saúde e do Atendimento às Crianças”, e outros documentos essenciais na defesa da mesma. É justo não esquecer alguns nomes (podendo ser injusto pela omissão de outros) como: Albino Aroso, que implementou a Lei do Planeamento Familiar (1976), defendeu a despenalização da IVG, liderou a “Comissão Nacional da Saúde Materno Infantil” que, pela sua acção, motivou uma queda significativa da elevadíssima taxa de Mortalidade Infantil, António Torrado da Silva, notável personalidade que faleceu prematuramente, foi Fundador do IAC (1983), defensor da presença dos pais no internamento dos filhos, grande inovador da área da Neonatologia, e presidente da “Comissão Nacional da Saúde da Mulher e da Criança”; Maria de Lourdes Levy, defensora da humanização dos hospitais, do Ensino da Pediatria, da Encefalografia Infantil e um dos pioneiros dos Erros Inatos do Metabolismo em Portugal; João dos Santos, importante personalidade na área da Saúde Mental; Virgílio Moreira, pediatra do Porto e muitos outros: médicos, juristas, sociólogos, enfermeiras, pedopsiquiatras, assistentes sociais, etc. que lutaram denodadamente pela criança, e seus direitos.

E é com orgulho que vemos na nossa Constituição da República (1976) (que alguns querem que sofra nova revisão – haver vamos com que finalidade), estão contemplados, entre outros, o Direito à Saúde, e, no referente à Infância, se lê logo no ponto 1: “As crianças têm direito à protecção da Sociedade e do Estado, com vista ao seu deu desenvolvimento integral…”

Ora, a Criança é alvo, é protagonista de um vasto universo de múltiplos factores que influenciam directa ou indirectamente, mais cedo ou mais tarde, o seu crescimento, desenvolvimento e o seu futuro.

Nestes fenómenos confluem dinamicamente os factores genéticos, as condições socioeconómicas, culturais e de trabalho do agregado familiar, o acesso à alimentação, o padrão psicológico e a personalidade dos pais, com respeito ao afecto, tão necessário ao desenvolvimento humano.

Assim, podemos afirmar que a maioria dos determinantes que envolvem o tema Criança, são, ao fim e ao cabo, de índole médico-social, devendo ser sublinhada a importância decisiva do papel do SNS e dos Serviços Públicos que acolhem, seguem, ensinam e tratam as crianças nas creches, infantários, escolas, centros de saúde, serviços hospitalares, e outros.

O Direito à Saúde concretiza-se através do SNS, universal, geral e, desde 1989, tendencialmente gratuito. Lembramos que o SNS (Lei 56/79) foi aprovada na AR com os votos favoráveis do PS, PCP, UDP e de um independente, no 5º Governo Constitucional. Recordo que ,na época, a OM, muito conservadora e elitista, não apoiou esta criação, assim como mais tarde, 1982, não apoiou as carreiras médicas, pois defendiam um sistema de medicina convencionada.

Após o 25 de Abril de 74, muito se alterou no campo da Saúde, como era inevitável. Muitos não saberão, ou não se recordam, que ocorreu ,em 1975, uma Campanha de Acção Cívica e de Dinamização Cultural, levada a cabo pela 5ª Divisão do MFA, que permitiu uma actuação médico-sanitária junto das populações muito carenciadas do interior do país. É considerada precursora do SMP (1975-83) que teve o apoio do 4º Governo Provisório, e que resultou numa experiência inédita que levou à implementação de valências como a Saúde Infantil e Escolar, ao Planeamento Familiar, ao rastreio da Hipertensão Arterial, diabetes, cumprimento do PNV, cuidados de higiene, pessoal e dos alimentos, etc. Teve reflexos muito positivos nos indicadores de Saúde, como a melhoria da Mortalidade Infantil, que se registou nos anos 70-80, e, mais tarde, na criação e aceitação do SNS.

Todos os profissionais que cuidam e tratam das crianças e jovens devem ter em atenção as Recomendações do “Plano Nacional de Saúde Infantil e Juvenil”, documento orientador das acções a tomar até aos 18 anos de idade. Devem, contudo, ganhar consciência de três pilares fundamentais: a importância da prevenção primária, a noção de risco, nas diferentes idades, e do valor inestimável da intervenção precoce.

Tudo isto é imprescindível para que as crianças possam sobreviver, crescer saudáveis, ter sucesso escolar e alcançarem o seu pleno potencial. Não esquecer que 90% do crescimento do cérebro humano ocorre nos primeiros 5 anos de vida.

Por falar em sobreviver, referir que a Mortalidade Infantil em Portugal chegou a registar números perfeitamente alarmantes, como em 1961 : 88,8 mortes por mil nados vivos, em 1974, ano do 25 de Abril ,ainda se verificaram 37,9 mortes por mil nados vivos, taxa que foi baixando paulatinamente até aos 2,4, em 2020 e 2021, tendo subido para 3,1 no primeiro semestre de 2022, sendo esta a taxa mais alta desde 2018.

Recomenda-se, pois, uma vigilância e acompanhamento cuidadoso e regular das crianças e jovens, começando desde logo pela defesa do aleitamento materno, que é fundamental, a realização do “Teste do pezinho”, o cumprimento do PNV, uma alimentação saudável, a avaliação do crescimento e desenvolvimento, evitar o sedentarismo (a criança tem direito ao recreio, a brincar): a actividade física é muito importante. É doloroso ver uma criança de 6-8 anos que não sabe correr e saltar. Aliás, 73% dos portugueses não fazem exercício físico regular e intencional, o que é mau exemplo para os filhos. Depois, mais ou menos aos 3 anos, dar informação sexual (não é educação sexual), temos ainda a prevenção dos acidentes e intoxicações, a atenção à saúde oral, visual e auditiva, evitar o uso excessivo dos ecrãs lúdicos: TV, TM, computadores, vídeo jogos…Muito importante a detecção precoce e encaminhamento diferenciado das doenças crónicas, malformações congénitas e outras deficiências. Neste campo não esquecer os problemas de Saúde Mental (10 a 20% das crianças têm1 ou mais problemas deste foro) , que se agudizaram muito na presente crise pandémica. Identificar, apoiar, orientar as crianças vítimas de maus-tratos, de abuso sexual, bullying, ciberbullying, de mutilação genital feminina. Registar o comportamento dos pais e a sua capacitação afectiva para com os filhos, acompanhar o comportamento das crianças na escola, a aceitação da disciplina escolar, etc..

Depois dos 10 anos até aos 18: avaliação do estádio pubertário e dos problemas que nesta área podem surgir que demandam bom senso e o auxílio de profissionais de diferentes áreas, atenção aos comportamentos fora do comum, e à agressividade, incluindo a violência no namoro, o uso do tabaco, álcool e drogas. A Educação Sexual é fundamental, urgente, faz parte integrante da Educação Global (quem tornou pública este tema foi Jean-Jacques Rousseau no século XVIII, vejam lá!). Fornecer noções claras de contracepção e evitar as DST; noções de civilidade e cidadania, pelo respeito pelos outros (sejam eles quem forem- por exemplo pelos professores. Aliás o Professor e as relações humanas são insubstituíveis! Respeito pelo património urbano, artístico, histórico. Fomentar o acesso à Cultura e à Leitura…

Ora, para que estes nobres objectivos sejam alcançados são necessárias políticas que defendam os direitos e interesses do cidadão comum, de profissionais em quantidade e qualidade, justamente remunerados, motivados nas suas funções, e as condições socioeconómicas, culturais, logísticas convenientes para essa finalidade.

Assim, perante a situação actual de crise do país, com baixos salários e uma inflação que ronda os 2 dígitos, a subida incomportável dos preços dos bens essenciais, incluindo dos alimentos básicos, mas também da habitação, água, luz, gás, combustíveis, etc, há que defender uma política progressista, atenta à justiça e às necessidades das populações com propostas que promovam o aumento dos salários, médio e mínimo nacional, aumento das pensões e reformas, defesa dos direitos dos trabalhadores, a melhoria das Leis Laborais, a defesa da contractação colectiva, defesa da CRP no que ela contempla de mais democrático, o direito à Habitação, à Educação, Cultura, Emprego; combater a precaridade e a pobreza, melhoria das condições, estabilidade e horários de trabalho que o compatibilizem com a vida familiar (por exemplo, com o Aleitamento Materno). Também a defesa intransigente do SNS (desde sempre combatido) com financiamento adequado, recursos humanos e logísticos e gestão pública e participada, salvaguarda dos Serviços Públicos, defesa das Carreiras Profissionais existentes ou a criar, a contratação de Médicos e Enfermeiros de Família (milhares de crianças e jovens não têm esse acesso), acesso pleno aos Medicamentos necessários nestas idades (e noutras, porquanto escasseiam ou não existem disponíveis), contratação de mais Professores nas Escolas Públicas (milhares de crianças não têm professor a todas as disciplinas), melhoria do Ensino e Aprendizagem, combater a municipalização e privatização dos Serviços Públicos, e as suas gravosas consequências.

Apoiamos a gratuitidade das Creches Públicas e a criação de uma Rede de Creches Públicas, a gratuitidade dos Manuais Escolares, também das Fichas e Cadernos de Actividades Escolares, que são material obrigatório, facilidades nos transportes públicos para os estudantes, a concretização de um Cabaz Alimentar Essencial a preços acessíveis, o acesso de todas as crianças ao pré-Escolar desde os 3 anos de idade, e o aumento e universalização dos Abonos de Família, e a defesa dos direitos de parentalidade.

Em conclusão: estas Políticas Sociais e respectivas Propostas têm e terão, se devidamente aplicadas, um reflexo indiscutível no Crescimento e Desenvolvimento das Crianças e dos Jovens, seja são o garante de um futuro mais promissor para estes cidadãos.

Muito obrigado.

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