Intervenção de Ana Abel, médica obstetra, Debate «A saúde na gravidez, no parto e na infância - o papel essencial do Serviço Nacional de Saúde»

Nascer em Portugal - Passado, presente e futuro

Nascer em Portugal - Passado, presente e futuro

Passado

Em Portugal, nas décadas de 40 a 60, o parto era considerado como um “ato doméstico” realizado com ajuda de mulheres leigas designadas parteiras. A falta de assistência especializada à gravidez e ao parto revelava-se nas elevadas taxas de mortalidade materna e neonatal, verificadas na época.

O parto era um acontecimento que envolvia vários procedimentos e utensílios rudimentares e a ação de mulheres leigas designadas de parteiras.

As técnicas e instrumentos utilizados durante o trabalho de parto baseavam-se na sabedoria popular, que era transmitida às parteiras entre gerações.

Um dos primeiros registos que documentam a preparação prática ministrada a parteiras na Casa Pia data de 1780.

Em 1903 foi aprovado o Decreto de 28 de Outubro, que regulava o curso de parteiras.

Já na era moderna, em Janeiro de 1936, foi criado nas escolas Médico-cirúrgica de Lisboa e Porto um curso de parteiras, com duração de dois anos e um estágio final. (Verneau, 1971 cit. in Rodrigues, Gomes & Lopes, 2009, p.80)

A organização dos serviços de saúde, em Portugal, sofreu, através dos tempos, a influência dos conceitos religiosos, políticos e sociais de cada época, veja-se os nomes dos hospitais mais antigos.

Em Portugal, a partir dos anos 40, observou-se uma queda significativa da taxa de natalidade acompanhada de uma significativa taxa de mortalidade materna e perinatal, sentindo se assim a necessidade emergente em desenvolver organizações assistenciais, que formassem mulheres com conhecimento para prestar assistência antes, durante e após o parto (Carneiro, 2008).

De acordo com a Base de Dados Portugal Contemporâneo, do Instituto Nacional de Estatística, em 1960, a taxa de mortalidade perinatal era de 42.2 por mil, a mortalidade neonatal era de 28 por mil e a mortalidade materna 115.5 por cem mil.

Até à criação do SNS, a assistência médica competia às famílias, consultas privadas e aos serviços médico-sociais da Previdência.

Em 1973, eram elevadíssimas, a mortalidade infantil, de 44,8 em cada 1000 recém-nascidos, e a mortalidade materna, de 59 por 100 000 partos. (F. A. Gonçalves Ferreira)

O presente

Com o 25 de Abril, o facto de terem ido médicos recém-formados para o Serviço Médico à Periferia (SMP) alterou muita coisa. As grávidas com maior risco eram detetadas, e enviadas para os hospitais centrais ou distritais com serviço de obstetrícia. A melhoria assistencial, na proteção da grávida tinha como objetivo, diminuir a mortalidade infantil. Esse objetivo foi cumprido em 1992 (3,27 por mil).

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi criado no dia 15 de setembro de 1979 concretizando “o direito à proteção da saúde, a prestação de cuidados globais de saúde e o acesso a todos os cidadãos portugueses ou estrangeiros, em equidade, independentemente da sua condição económica e social”, nos termos da constituição. (artigo 64º).

Surge, desta forma, a oportunidade de oferecer uma visão organizada e atualizada dos diplomas legais que já nortearam e que organizam, hoje em dia, SNS português.

Os ganhos em saúde, colocaram Portugal num lugar cimeiro no que se refere à qualidade de vida de milhões de cidadãos e reduziram muitas das desigualdades na sociedade portuguesa.

A melhoria assistencial que representou o SNS em Portugal teve também repercussão na mortalidade materna, com a implementação do parto hospitalar e a melhoria dos cuidados assistenciais.

O enorme contributo do Dr. Albino Aroso e da Dra. Purificação Araújo para o parto hospitalar foi definitivo para a diminuição da mortalidade materna e colocou Portugal como referencia, no que se refere aos cuidados materno-infantis.

Atualmente o SNS Português, fruto do desinvestimento dos vários governos durante décadas, viu a saída de muitos médicos e enfermeiras para os hospitais privados e para a emigração.

As principais razões têm a ver com a falta de progressão nas carreiras, falta de meios técnicos de diferenciação e baixos salários nos hospitais do SNS.

A falta de profissionais médicos (obstetras, anestesistas e pediatras) e enfermeiras (especialistas em obstetrícia), tem como consequência, que, no serviço de urgência sejam exigidas horas extraordinárias em excesso, aos profissionais de saúde, criando uma situação de cansaço e mesmo burnout o que se repercute sempre na qualidade do atendimento.

A Experiência de Partos em Portugal

Partos no domicílio

Em Portugal os partos no domicílio não estão abrangidos pelo SNS e são privados. Representam cerca de 1% de todos os partos. E têm um altíssimo índice de mortalidade materna. Não têm cobertura médica multidisciplinar nem acesso a serviço de sangue caso as coisas se compliquem, nem é protocolado.

"O parto no domicílio ou fora do hospital foi responsável por 5 (5,37%) das 26 mortes maternas ocorridas" em 2017 e 2018, (0,21%) o que é um valor muito alto, atendendo a que foram efetuados 93 partos, com 24 transferências para hospitais. (Dr. João Bernardes, presidente do Colégio de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos)


A maioria dos partos em Portugal são hospitalares (98,01%).

Experiências de partos em Portugal
Associação Portuguesa pelos direitos da mulher na gravidez e parto - APDMGP
  n %
Casa não planeado 7 0,09
Casa planeado 86 1,14
Hospital Particular 1262 16,70
Hospital público 6143 81,31
Planeado para casa com transferência para hospital antes do bebé nascer 21 0,28
Planeado para casa com transferência para hospital depois do bebé nascer 33 0,04
Outra 33 0,44
  7555  

Mortalidade materna

No entanto, em 2018, foram notificadas 17,2 mortes a cada 100 mil nascimentos, em 2019, 12,7 e em 2020 20,1. As mortes ocorridas em 2018 e 2020 representam o maior valor absoluto em mais de três décadas.

Idade materna

As razões habitualmente apresentadas para o aumento da taxa de mortalidade materna em em 2020 são semelhantes às apontadas para o aumento da taxa de cesarianas – gravidezes tardias, com aumento de patologia associada, nomeadamente hipertensão, diabetes, miomas uterinos etc. gravidez gemelar por maior recurso à procriação medicamente assistida (PMA) – para além, das cesarianas por vontade da mulher ou por indicação do médico.

Na Comissão de Saúde requerida pelo grupo parlamentar do Bloco de Esquerda sobre a mortalidade materna em Portugal Graça Freitas disse, “Há aqui um envelhecimento da idade da gravidez que é mais notório nas mulheres que morreram". No entanto considerou ainda que alguns casos necessitam de "ser bem investigados", porque poderão ter outras causas, mesmo ocorrendo durante o período de definição de morte materna.

"Dos resultados que já nos vieram de 2020 - dados preliminares -, cerca de 76,5% destas mulheres tinham comorbilidade pesada", e 52,9% das mortes a ocorrerem acima dos 35 anos. (in DN de1\9/07/2022)

As Cesarianas

Atualmente, a taxa de cesarianas nos hospitais privados portugueses é de 64,6%, quase o dobro do valor dos hospitais públicos (37,1%) 2021. O que coloca Portugal entre os 10 países da OCDE com a taxa mais alta de cesarianas.

Ano % de cesarianas no SNS % de cesarianas nos Hospitais Privados
2014 33,5 64,6
2015 32,9 63,4
2016 33,1 65,3
2017 33,1 64,5
2018 34,1 66,2
2019 36,0 68,5
2020 36,2 67,1
2021 37,1 64,6

 

FATORES QUE INFLUENCIAM A DECISÃO PELO TIPO DE PARTO NO SNS

  1. Situação de urgência/emergência materno/fetal
  2. Fatores maternos incompatíveis com parto via baixa
  3. A orientação do serviço no sentido de fazer escola quanto aos procedimentos no serviço de urgência obstétrica
  4. A prática da equipa de urgência como transmissor da cultura do serviço
  5. Os desencadeamentos de trabalho de parto
  6. A ansiedade do obstetra
  7. A ansiedade da gravida
  8. A pressão de possíveis processos criminais
  9. A pressão da gravida
  10. A existência ou não de analgesia do parto (epidural)
  11. O número de profissionais de saúde presentes
  12. O cansaço dos profissionais de saúde
  13. O desejo de deixar o máximo de trabalho concluído na passagem da urgência para a próxima equipa Ano % de cesarianas no SNS % de cesarianas nos H.Privados

FATORES QUE INFLUENCIAM A DECISÃO PELO TIPO DE PARTO NOS HOSPITAIS PRIVADOS

  1. Situação de urgência/emergência materno/fetal
  2. Fatores maternos incompatíveis com parto via baixa
  3. A decisão do obstetra que segue a grávida e lhe faz o parto
  4. O tempo de assistência para um parto eutócico (chega a ser de 12 a 14 h em alguns casos)
  5. O facto de a cesariana ter hora marcada e em média durar hora e meia a duas horas tendo em conta o tempo da intervenção e dos registos.
  6. O valor do pagamento da cesariana muito maior do que o parto eutócico
  7. O grau de dilatação à entrada no bloco de partos
  8. A pressão dos possíveis processos criminais
  9. A pressão da própria grávida
  10. Conveniência na marcação da data e hora do parto tanto para o médico como para a grávida

Experiências de Parto

A Obstetrícia atual fundamenta-se, hoje como ontem, na relação e na interação dos serviços assistenciais, das enfermeiras e do médico com a grávida, sendo que hoje, a gravida, deve ser olhada como um todo individual, quer nas suas características próprias e psicossociais quer nos aspetos que a rodeiam e que interagem com ela.

Hoje em dia, a grávida espera do médico, tanto competência técnica como uma comunicação clara e satisfatória. E espera, dos serviços que os profissionais de saúde, médicos e enfermeiras, tenham empatia no sentido de a ouvir e compreender nas suas queixas, na sua ansiedade e nas suas dúvidas.

Os planos de parto devem ser discutidos com o médico assistente, durante as consultas, e devem ser esclarecidas quais as linhas vermelhas que podem interferir com o plano previamente determinado.

Durante todo o processo a grávida tem o direito à explicação clara e objetiva em relação ao decorrer do trabalho de parto e ao seu consentimento informado, sobre a eventual alteração do tipo de parto previsto anteriormente.

O trabalho de parto e parto, por si sós, mesmo com analgesia, são e serão sempre envolvidos num processo de stress físico e psicológico e de alguma violência.

Distribuição de respostas por tipo de abuso, desrespeito ou discriminação, inquérito "Experiências de parto em Portugal" - Associação Portuguesa pelos direitos da mulher na gravidez e parto:

  1. Discriminação baseada em atributos socioeconómicos, étnicos, religiosos, nacionais ou outros - 4%
  2. Outra - 6,9%
  3. Cuidados não confidenciais ou desrespeito pela privacidade - 7,5%
  4. Abandono, negligência ou recusa de cuidados - 20,5%
  5. Condições e constrangimentos das instalações/do sistema de saúde - 21,5%
  6. Abuso físico - 36,8%
  7. Abuso verbal - 43,5%
  8. Relação deficiente com os prestadores de cuidados - 50,9%
  9. Cuidados ou intervenções não consentidas - 59,8%

Alguns fatores que interferem na experiência sentida no decorrer do trabalho de parto (TP) e parto(P).

  1. O próprio TP e P
  2. O medo da dor
  3. O surgimento ou não da grande emergência obstétrica
  4. A ansiedade da gravida
  5. A confiança nos profissionais de saúde
  6. A postura dos profissionais de saúde que deve ser calma, de empatia, compreensão e esclarecimento, logo no acesso ao bloco de partos.
  7. A possibilidade de analgesia no TP se solicitada
  8. A informação dada á gravida e acompanhante no decorrer do TP e P.
  9. A participação ativa e informada, da gravida nas decisões propostas pelo obstetra, quando forem necessários atos invasivos, ou necessidade de alterar o tipo de parto por risco aumentado para o bebe e/ou a mãe.

Comentário

O acolhimento nos blocos de parto deve ser calmo, informativo sobre como irá decorrer o trabalho de parto e parto, tranquilizador para a grávida e acompanhante.

O desejo da grávida de participar no trabalho de parto e parto de forma informada e ativa é uma aspiração logica e legitima.

A grávida quer e tem “necessidade de saber e compreender e necessita de se sentir conhecida e compreendida”.

A empatia e a confiança técnica com os profissionais de saúde é determinante para a qualidade da experiência de TP e P que a grávida aspira e lhe é devido por direito.

A verdadeira violência num TP e P. é um ambiente hostil mal informado e sem consenso com a gravida

O futuro do SNS Depende:

Da política de saúde dos diferentes governos PS-PSD-CDS que durante anos têm desinvestido no SNS mantendo uma visão mais economicista do que de serviço ao interesse da população, não planeando a médio e a longo prazo a modernização e a organização dos serviços de forma a depender cada vez menos dos serviços privados

Do Investimento nos profissionais de saúde, nas carreiras, na diferenciação profissional, nas infraestruturas, nas novas tecnologias, na investigação e na formação.

Dos profissionais de saúde, e da sua capacidade reivindicativa junto do governo no sentido de promoverem uma assistência moderna centrada no doente, e de proximidade. Exigindo a instituição de serviços de urgência nos cuidados primários com investimento nas tecnologias base necessárias para o efeito, libertando os hospitais para as urgências mais graves.

Da Descentralização algumas consultas de competências de especialidade, possíveis em ambulatório, com médicos especialistas da área, nos centros de saúde, em complementaridade com os hospitais.

Da Criação do Registo de Saúde Eletrónico Único (RSE) - fator de mudança estruturante, o RSE tem como definição funcional acompanhar o percurso de vida das pessoas, na saúde e na doença, num contexto de morbilidade múltipla, garantindo a integração e a continuidade de cuidados, favorecendo a sustentabilidade económica do Serviço Nacional de Saúde

Da Simplificação da comunicação entre os cuidados primários e os cuidados hospitalares, por exemplo com TM e e-mails dedicados e diretos entre os diferentes serviços.

De serem criadas condições para instituição de uma cultura em que a pessoa é o centro do ato clínico, e em que todos profissionais de saúde, na sua multidisciplinaridade, têm tempo para ter um papel a desempenhar, e a interagir, não só entre si, mas também com o doente e a sua família.

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