Intervenção de Alexandra Silvestre, enfermeira nos Cuidados Primários de Saúde, Debate «A saúde na gravidez, no parto e na infância - o papel essencial do Serviço Nacional de Saúde»

O papel dos cuidados primários de saúde na gravidez e na infância

O papel dos cuidados primários de saúde na gravidez e na infância

Boa tarde

Em primeiro lugar agradecer desde já o convite que me foi feito para estar hoje aqui convosco.

Chamo-me Alexandra Silvestre, sou enfermeira há 22 anos.

O meu percurso profissional começou no Hospital D. Estefânia, onde trabalhei durante 17 anos e agora estou há 5 anos nos cuidados de saúde primários.

Destes 5 anos os primeiros 3 anos e meio trabalhei numa Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados e desde 1 de junho de 2021 passei a trabalhar numa Unidade de Saúde Familiar.

Começo por explicar isto porque o atendimento à grávida e à criança é muito diferente nestes dois últimos contextos, apesar de ambos estarem no âmbito dos cuidados de saúde primários.

A Gravidez é por principio um estado de saúde e não de doença. A sua vigilância nos cuidados de saúde primários tem como referência o Programa Nacional para a Vigilância da Gravidez de Baixo Risco, revisto pela Direção Geral de Saúde em 2015.

Os cuidados centram-se nas necessidades de cada mulher, de cada casal, de cada família.

No âmbito dos cuidados de saúde primários, a gravidez é também encarada como uma possibilidade de intervenção na saúde de toda a família, nomeadamente na modificação dos hábitos e comportamentos que se prolongam ao longo do ciclo de vida da mulher, da criança e de todo o agregado familiar, como por exemplo a modificação de hábitos alimentares, a implementação do exercício físico ou da oportunidade para promover a cessação tabágica.

O esquema de vigilância e conduta durante a gravidez dependem da existência ou não de patologia.

A identificação de um factor de risco ou de uma situação anómala determina a atuação subsequente, e habitualmente, a atuação subsequente é a referenciação hospitalar, ainda que depois a vigilância possa normalmente voltar aos cuidados de saúde primários, podendo para este efeito serem utilizados critérios adicionais por decisão de cada Unidade Coordenadora Funcional.

Na minha realidade profissional existem duas Unidades Coordenadoras Funcionais: a de Saúde Materna e Obstétrica e a de Saúde Infantil e funcionam, tendo já muito trabalho feito na articulação entre os cuidados hospitalares e os cuidados de saúde primários.

Na vigilância da saúde materna nos cuidados de saúde primários têm também um papel preponderante as Unidades de Cuidados na Comunidade, as UCC, sendo da sua responsabilidade o desenvolvimento de cursos de preparação para o parto e parentalidade, organizados por enfermeiros especialistas na área de saúde materna e obstétrica. Estes fazem também um excelente trabalho de articulação com as URAP, Unidades de Recursos Assistenciais Partilhados onde desenvolvem trabalho fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos e assistentes sociais, que são chamados a estes cursos para dar o contributo da sua área.

É então fundamental estabelecer uma relação de confiança entre os profissionais de saúde e a grávida/casal de modo a facilitar a expressão de ideias, expectativas, fantasias, sentimentos (positivos e negativos) e competências inerentes à gravidez, nascimento e parentalidade.

Se esta ligação for desenvolvida durante este período, então, após o nascimento, o recém-nascido será quase de certeza vigiado nos cuidados de saúde primários, independentemente de ter ou não um pediatra a quem os pais recorrem, porque os pais sentem a necessidade de partilhar com a sua equipa de saúde familiar as preocupações, e as alegrias também, em relação ao seu filho, porque tiveram bom feedback durante o período da gravidez.

O inicio da relação com o novo membro da família é, em grande parte, da responsabilidade do enfermeiro na consulta de enfermagem em que é realizado o diagnóstico precoce do recém-nascido. A disponibilidade para o esclarecimento de dúvidas, o fornecer um contacto ágil para o esclarecimento quando o casal está em casa (telefone ou email), o agendamento de visitas frequentes para a vigilância do bebé, são promotores da vigilância de saúde.

Quando isto acontece, os cuidados de saúde primários são entendidos, por estas famílias, como mais do que o local onde o seu filho vai fazer as vacinas.

Bem, depois de dizer como nos organizamos e como fazemos, percebemos que temos, em teoria, todo um modelo concebido para funcionar tudo na perfeição…

Então porque é que não funciona?

Quais são os grãos na engrenagem?

São as múltiplas carências, transversais a todo o Serviço Nacional de Saúde mas que se tornam de extrema gravidade quando toca aos cuidados de saúde primários, por serem a porta de entrada no Serviço Nacional de Saúde.

Cuidar a mulher/casal durante a gravidez, nos cuidados de saúde primários, começa logo por ser diferente se a utente tem ou não atribuída uma equipa de saúde familiar (médico e enfermeiro de família, não esquecendo também o papel essencial dos assistentes técnicos), ou pelo menos um médico de família ou um enfermeiro de referência ou de família.

Também o aumento de cidadãos estrangeiros com diferentes representações e práticas culturais na área da saúde reprodutiva, a barreira da língua e da sua compreensão tendem a aumentar o risco de não vigilância.

É preciso que cada vez mais os profissionais de saúde prestem cuidados culturalmente sensíveis, que respeitem crenças e culturas diferentes.

Só em equipa, é possível definir o melhor plano para vigiar uma gravidez, o papel de cada profissional interveniente neste processo não substitui o outro e é no modelo de trabalho em equipa que se baseia o trabalho das Unidades de Saúde Familiares, independentemente do seu modelo. Por oposição ao modelo que existe nas Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados, em especial para os utentes a quem não está atribuído nem médico, nem enfermeiro de família.

A falta de médicos e enfermeiros de família nos cuidados de saúde primários é gritante. De acordo com os dados do BI – CSP, em Dezembro de 2022, em média, 26,9% dos utentes inscritos na ARSLVT não têm médico de família (com números a variar entre os 14 e os 39%). A título de exemplo, para o mesmo período, na ARSNorte, a média é de 2,62%.

Vale a pena referir que nestes números não estão incluídos os utentes migrantes a quem ainda não foi atribuído número do SNS, as inscrições chamadas “esporádicas”, que não se conseguem contabilizar, o que agrava ainda mais a situação.

Voltando então ao nosso casal…

Se o casal não tem qualquer referência na sua unidade de saúde, se não tem uma equipa para cuidar de si nesta fase que é tão importante nas suas vidas, porque é que se irá dirigir aos cuidados de saúde primários?

Ah, precisam dos exames de vigilância… Então mas e é fácil para quem não tem médico de família ter acesso a uma consulta? E depois da consulta, é fácil encontrar um prestador de serviços que realize ecografias pelo serviço nacional de saúde?

A resposta é não…

Apesar da criação de Vias Verdes, também conhecidas por SAUSM – Serviço de Atendimento a Utentes sem Médico – de que são exemplo os dos ACeS Almada Seixal e do Arco Ribeirinho, estes não passam de pensos rápidos numa ferida profunda que precisa urgentemente de um tratamento. Tratamento esse que passa pela contratação de mais médicos e enfermeiros de família.

O modelo de atendimento destes serviços não passa pelo modelo de equipa uma vez que os profissionais são rotativos e até por vezes contratados a empresas prestadoras de serviços. Também a espera por uma primeira consulta faz desesperar o casal que vive na incerteza se está tudo bem com a sua gravidez.

O descontentamento com o atendimento acaba por afastar dos cuidados de saúde primários aqueles que podem realizar a vigilância da gravidez e posteriormente da criança, no sistema de saúde privado.

É preciso atrair os profissionais para os cuidados de saúde primários com contratos dignos, com carreiras dignas, com salários justos e uma progressão que permita chegar ao topo antes da reforma.

É preciso que as instalações tenham condições físicas para os utentes e para os profissionais exercerem, onde no inverno não seja necessário trazer o aquecedor de casa, para aquecer a sala para as consultas de saúde infantil, e no verão não seja necessário trazer as ventoinhas para os gabinetes onde estão temperaturas de 33 graus como acontece em tantos locais…

É preciso que os profissionais tenham acesso a poder fazer a formação que entendem necessária para poder prestar melhores cuidados e que esta seja entendida como uma mais valia para os utentes e não como um inconveniente…

É necessário que as unidades dos cuidados de saúde primários estejam dotadas do material necessário para a prestação de cuidados e que a sua eventual reparação ou aquisição não demore meses ou até anos a ser concretizada…

Os profissionais de saúde estão empenhados e não desistem do Serviço Nacional de Saúde.

Só falta agora que o Governo também não desista e que, já agora, pelo caminho não aproveite para liquidar o Serviço Nacional de Saúde.

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