Nota da Comissão Nacional de Saúde do PCP

Sobre a situação na área da Saúde - um desafio do PCP ao Governo

O PCP tem repetidamente alertado para a gravidade da situação existente na área da saúde.

Tem acusado os interesses ilegítimos e a promiscuidade entre o sector público e o privado que, como um cancro, alastraram no Serviço Nacional de Saúde (SNS), e que constituem o principal obstáculo à resolução dos seus problemas.

Tem reclamado do actual Governo, de forma insistente, uma verdadeira inversão da política neo-liberal, de mercantilização da saúde e de destruição do SNS, que foi conduzida pelos governos anteriores.

Tem apresentado propostas fundamentadas no domínio da política de saúde, cuja adopção já teria permitido travar a degradação do SNS, globalmente avaliada, e alcançar uma efectiva melhoria da prestação de cuidados de saúde.

Volta agora a apresentar fundamentadas propostas - no domínio das políticas do medicamento, do acesso aos cuidados de saúde, da gestão democrática e do financiamento suficiente do SNS - e anuncia a próxima apresentação na Assembleia da República de um projecto de uma nova Lei de Bases da Saúde, concretizadoras da reforma democrática do SNS que activamente sustenta, cuja realização representará um importante passo em frente na construção de um futuro com mais saúde para todos os portugueses.

1. A situação na área da saúde continua a ser motivo de profunda intranquilidade e insatisfação para a generalidade da população portuguesa.

Persistem dificuldades de acesso em muitos centros de saúde e unidades hospitalares, atrasos no atendimento de utentes, inadmissíveis listas de espera, reflexo de múltiplos problemas entre os quais se destaca a falta de médicos de família, de enfermeiros e de outros técnicos.

Há questões que se prendem com a qualidade e com a humanização da prestação de cuidados de saúde, que não se encontram ainda satisfatoriamente resolvidos em muitas unidades e serviços.

A carestia dos medicamentos, o crescente recurso a meios complementares de diagnóstico e a prestação de cuidados de saúde privados são cada vez mais incomportáveis para muitos portugueses - em 1995 os portugueses já pagavam directamente do seu bolso (para além do que desembolsavam através dos impostos) mais de 40% das despesas de saúde, quando a média da União Europeia era da ordem dos 25%.

2. A interrupção das orientações neo-liberais que durante mais de uma década foram concretizadas na área da saúde não deu lugar, na prática do actual Governo, a uma intervenção clara e inequivocamente empenhada com a defesa e a melhoria do SNS.

Sem dúvida foram apresentadas publicamente orientações e objectivos para concretizar ganhos em saúde para os portugueses e foi confirmado o "papel estratégico essencial do sector prestador do SNS na configuração do sistema de saúde", aspectos que a Comissão Nacional para as questões da Saúde do PCP avalia de forma positiva.

Mas a situação no terreno, em muitos hospitais e centros de saúde, tarda em registar progressos.

A equipa responsável pelo Ministério da Saúde evidencia claras dificuldades em levar à prática as orientações que definiu, em separar o público e o privado, e em afrontar a voracidade dos grandes interesses que disputam e absorvem o grosso dos recursos públicos disponibilizados para o sector - desde as multinacionais dos medicamentos e dos equipamentos, à área das convenções, aos grupos económicos empenhados na privatização de saúde, aos grandes construtores civis.

3. Nos últimos meses tem-se assistido a uma acrescida movimentação por parte desses grandes interesses.

Essa dinâmica, que radica em fortes grupos de pressão de orientação neo-liberal existentes dentro do próprio PS e nos partidos da direita, procura explorar as dificuldades e os compromissos contraditórios assumidos pelo Ministério da Saúde, por forma a serem mantidas intocadas práticas de parasitagem do sector público por interesses privados, e a serem retomados os planos de destruição do SNS e da sua transformação num sistema mínimo e assistencialista para a população pobre.

Constitui por tudo isso uma incontornável exigência a clarificação por parte do Governo e dos órgãos dirigentes do PS de qual é a sua verdadeira posição política: se apoiam a destruição do SNS e a entrega da prestação de cuidados de saúde aos interesses privados, ou se sustentam a regeneração do SNS como instrumento fundamental da concretização do direito à saúde dos portugueses.

Esta exigência sustenta o desafio que o PCP dirige ao Governo para a urgente concretização de importantes orientações e medidas, na área da saúde, designadamente na área do medicamento, do acesso aos cuidados de saúde, da gestão democrática e do financiamento suficiente do SNS, cuja adopção permitiria uma rápida e efectiva melhoria da prestação de cuidados de saúde, num quadro de redução de custos e de muito melhor aproveitamento dos recursos públicos.

Política do medicamento

Portugal é um país que se encontra particularmente vulnerável face aos interesses das multinacionais produtoras de medicamentos, as quais determinam em larga medida o perfil de receituário dos serviços, verificando-se um largo consumo de medicamentos desnecessários, ineficazes e dispendiosos.

É conhecido como o sistema actual de comparticipação de medicamentos e a forma como são prescritos favorecem os medicamentos mais caros.

Os utentes e o orçamento do SNS são assim penalizados à custa do favorecimento ilegítimo dos interesses económicos do sector dos medicamentos.

As vantagens que advirão para o orçamento público da saúde e para os utentes, da prescrição médica em todo o SNS passar a fazer-se por substância activa, nome genérico ou denominação comum internacional, e dela ser acompanhada pelo desenvolvimento do mercado de genéricos e pelo desenvolvimento de funções de farmácia no âmbito do SNS, são da ordem das dezenas de milhões de contos por ano.

Observe-se que o preço dos medicamentos genéricos é normalmente 20 a 30% mais baixo que os correspondentes de marca e que nos próximos três anos grande parte dos medicamentos com cotas significativas do mercado terão as patentes caducadas, o que aumenta a qualidade de genéricos que poderão ser utilizados.

O interesse nacional e os interesses dos próprios utentes impõem irrecusavelmente, e por isso o PCP reclama, entre outras medidas, que:

  1. Passem a ser dispensados gratuitamente aos utentes do SNS os medicamentos que lhes sejam prescritos nos hospitais e centros de saúde que pertençam ao conjunto de medicamentos cuja comparticipação financeira sai mais cara ao Estado do que a sua distribuição gratuita.
  2. A prescrição de medicamentos comparticipáveis pelo SNS passe a ser efectuada com indicação da substância activa, nome genérico ou denominação comum internacional, seguida de dosagem e forma farmacêutica.
  3. Seja implantado um formulário nacional de medicamentos que tenha em conta o balanço entre o custo e o benefício terapêutico dos fármacos nele incluídos.
  4. Enquanto o formulário nacional de medicamentos não entrar em vigor, sejam adoptados os seguintes procedimentos:

    • caso o médico deseje optar pela marca comercial de um determinado laboratório, isso deve ser expresso depois da indicação da substância activa, dosagem e forma farmacêutica;
    • se essa marca comercial não for a de preço mais baixo o farmacêutico terá de informar o utente qual o medicamento comparticipável com igual composição quantitativa e qualitativa e com preço mais baixo, de modo a que o utente possa fazer a sua opção de compra de forma esclarecida.
  5. Seja promovida activamente a utilização dos medicamentos genéricos, devidamente certificados, de acordo com as normas de patentes vigentes internacionalmente.
  6. Sejam desenvolvidas estruturas a nível das farmácias dos hospitais de modo a permitir o fornecimento de medicamentos aos utentes que acedem às urgências e consultas externas.
  7. Seja alterado o sistema de comparticipação de medicamentos com a eliminação dos medicamentos que tenham uma eficácia terapêutica discutível e preços relativamente excessivos, criando assim condições para aumentar o valor da comparticipação do Estado nos medicamentos essenciais.

Política de acesso aos cuidados de saúde

Os atrasos no atendimento dos utentes do SNS e a existência de situações em que foram excedidos os tempos clinicamente aceitáveis (listas de espera) constitui uma realidade absolutamente inadmissível que sucessivos governos não enfrentaram nem quiseram resolver.

Assumir que este problema é solucionável e mobilizar todos os recursos necessários - e em primeiro lugar os existentes no próprio SNS - para a eliminação permanente das listas de espera, constitui uma verdadeira prioridade na área da saúde.

O interesse nacional e os interesses dos próprios utentes impõem irrecusavelmente e por isso o PCP reclama a adopção de um Programa Especial de Acesso aos Cuidados de Saúde que assegure que a prestação de cuidados de saúde pelo SNS seja feita em tempo útil.

Este programa deve comportar medidas tais como:

  1. Realização regular de um recenseamento rigoroso dos utentes em listas de espera.
  2. Avaliação e mobilização da capacidade instalada do SNS em recursos humanos, infra-estruturas e equipamentos e sua mobilização para a resolução sustentada do problema das listas de espera, mediante acordos entre as Agências das Administrações Regionais de Saúde e as instituições do SNS que estabeleçam as medidas organizativas e de apoio indispensáveis. O recurso a meios externos ao SNS só deverá ter lugar em situações de insuficiência ou esgotamento da capacidade instalada.
  3. Atribuição ao Programa Especial de Acesso aos Cuidados de Saúde de uma dotação orçamental adicional e própria.
  4. Apresentação pública anual, pelo Governo, do ponto da situação e de um balanço dos progressos realizados neste domínio.

Política de gestão democrática e de financiamento suficiente

O decreto-lei de Cavaco Silva que impôs a governamentalização da gestão hospitalar bem como a perspectiva neo-liberal que inspirou a Lei de Bases e o Estatuto do SNS, configuram um enquadramento legislativo oposto a uma política que assegure o direito à protecção da saúde tal como está constitucionalmente consagrado.

A desgovernamentalização do SNS e a substituição progressiva dos mecanismos de comando burocrático administrativo por processos de autonomia e de auto-regulação democrática - naturalmente subordinados aos objectivos da política nacional de saúde - em que se articulem os poderes da tutela, das comunidades de base territorial servidas pelos serviços, e dos profissionais de saúde, constituem eixos estratégicos da reforma democrática do SNS que o PCP há muito sustenta.

De acordo com esta perspectiva geral o PCP sustenta a necessidade da urgente adopção de princípios de administração e gestão democrática do SNS, designadamente ao nível dos centros de saúde, dos hospitais e dos sistemas locais de saúde. E sustenta a necessidade de uma política de financiamento suficiente baseado em princípios de equidade.

Entre as orientações e medidas concretizadoras que são defendidas referem-se, nomeadamente:

  1. A adopção do concurso como método de selecção dos membros dos conselhos de administração dos hospitais e das direcções dos centros de saúde. A base do concurso é o caderno de encargos elaborado pela Administração Regional de Saúde. E o júri de avaliação das candidaturas deverá possuir uma composição idónea e diversificada.
  2. A constituição em cada hospital e em cada centro de saúde de um Conselho consultivo, constituído por representantes de associações de utentes e de organizações sindicais, bem como por representantes, respectivamente, das assembleias municipais e das assembleias de freguesia das suas áreas de influência, e dotado de amplas atribuições.
  3. A definição da qualidade dos serviços de saúde como um objectivo de desenvolvimento contínuo, a ser avaliada sistematicamente pela respectiva Comissão de Avaliação, e devendo incidir sobre as funções e objectivos definidos para cada instituição, serviço ou centro de responsabilidade.
  4. O desenvolvimento de uma política de estímulos aos serviços e aos profissionais do SNS, tendo como objectivo a prestação de cuidados de saúde com melhor qualidade e com maior eficácia.
  5. A consagração legal de princípios e critérios do financiamento público do SNS. Nomeadamente: que o SNS é financiado pelo Orçamento do Estado, de acordo com o crescimento da riqueza nacional, e de forma a garantir a prestação de cuidados de saúde de qualidade; que a atribuição anual a cada Administração Regional de Saúde das verbas necessárias à prestação de cuidados de saúde à população residente em cada região, deve ter como base critérios sócio-económicos, demográficos e sanitários, as necessidades e os recursos existentes, e visar objectivos de equidade social; que a atribuição de financiamento às entidades prestadoras de cuidados de saúde deve ter como base orçamentos-programa contratualizados pelas Agências de cada Administração Regional de Saúde.
  6. A definição de que a prestação de cuidados de saúde no SNS assenta no pressuposto do aproveitamento integral da capacidade instalada da sua rede de serviços e de que o recurso a meios externos só pode ter lugar em situações de insuficiência ou esgotamento da capacidade instalada e com custos que não sejam superiores aos constantes das tabelas do SNS.
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