Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral, Campanha do PCP «A saúde é um direito, não é um negócio»

O estado da saúde e as propostas do PCP

A campanha que hoje iniciamos pela defesa do Serviço Nacional de Saúde, com o lema “A saúde é um direito, não é um negócio”, realiza-se num momento em que os portugueses estão confrontados com uma das mais agressivas ofensivas contra o SNS, num contexto de preparação da privatização dos serviços públicos de saúde em larga escala, o que tem provocado crescentes dificuldades no acesso aos cuidados de saúde a uma parte muito significativa de portugueses.

No contacto que vamos manter com as populações e os profissionais da saúde durante a campanha, mostraremos que existem soluções no quadro do Serviço Nacional de Saúde para os seus principais problemas e que não estamos perante uma fatalidade e muito menos uma irreversibilidade. Vamos mostrar que as causas para a situação de descontentamento acumulado na sociedade portuguesa, em relação à prestação dos cuidados de saúde, são as políticas que consideram que a saúde é um enorme negócio.

Por mais elaborada que seja a retórica do Primeiro-Ministro e do Ministro da Saúde, já não lhes é possível esconder o que há muito temos vindo a denunciar: a sua política de saúde está ideologicamente marcada pelo compromisso de destruir o Serviço Nacional de Saúde, abrindo assim espaço para que os grupos privados o substituam.

A chave para o problema e, simultaneamente, a linha de separação política e ideológica entre os que defendem o acesso aos cuidados de saúde em equidade e os que defendem os cuidados de saúde de acordo com o estatuto económico e social de cada português, está no Serviço Nacional de Saúde.

O presidente da José de Mello Saúde, que tem o objectivo de chegar até 2010 às 2.000 camas e a um volume de negócios de 600 milhões de euros, afirmou que “o mercado da saúde é promissor pelo envelhecimento das populações e também pela abertura que se vai verificar neste sector” e que “a contribuição dos privados na saúde, é prioritariamente criar o mercado da saúde, criar riqueza, deixando ao Estado apenas o papel de regulador”. Não podia ser mais claro!

A receita para atingirem o objectivo de destruir o SNS é muito simples. Primeiro difundem a ideia de que os serviços funcionam mal, com o argumento falso de que é assim porque são de propriedade e gestão públicas, o que seria razão suficiente para serem ineficientes e favorecerem o desperdício. Mas o desperdício no SNS resulta de uma política deliberada de gestão incompetente que, por exemplo, não querendo pagar por igual as horas extraordinárias aos profissionais de saúde, acaba por gastar mais ao recorrer a empresas de trabalho temporário por valores muito mais elevados, para suprir as necessidades das urgências e para realizar cirurgias.

Sobre as virtudes da gestão privada na saúde podemos perguntar-lhes, o que nos têm a dizer sobre a gestão privada do Hospital Amadora/Sintra? Não é verdade que o relatório apresentado pelo Conselho de Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo deu origem ao inquérito da Inspecção-Geral de Finanças, passando a ser conhecidos muitos dos mais bizarros aspectos deste negócio? Que o contrato foi irregularmente visado pelo Tribunal de Contas e que foram pagos em excesso 75,6 milhões de euros, tendo mesmo sido pagos nos meses de Novembro e Dezembro de 1995, 750 mil contos, à sociedade Gestora sem que esta tenha prestado qualquer serviço, uma vez que neste período a gestão foi pública?

Em segundo lugar procuram fazer passar a tese de que os cuidados de saúde são uma mercadoria, susceptível de ser transaccionada no mercado como qualquer outra e que só a concorrência permitiria que o SNS seja eficiente.

Um olhar atento sobre estes mais de 25 anos de SNS o que nos mostra? Desde 1979, ano da criação do SNS, os interesses instalados na saúde tudo têm feito para impedir a articulação e exploração integral das suas potencialidades, parasitando-o e utilizando-o como um instrumento da transferência de recursos públicos para a acumulação privada. O que pretende o governo, com as Parcerias Público Privadas, para a construção de novos hospitais se não privatizar a gestão dos novos hospitais? O que pretende o governo, quando se diz muito empenhado na resolução dos problemas que se colocam ao nível dos cuidados primários mas aprova um decreto-lei que permite a constituição de Unidades de Saúde Familiares privadas? O que pretende o governo quando afirma a prioridade dos Cuidados Continuados, mas desde logo estabelece o seu pagamento pelos utentes? Não se pretende corrigir o que está mal e o que são deficiências do SNS, pretende-se transferir o que está bem para as mãos interesseiras dos grupos privados.

O PCP previu e preveniu atempadamente que a insistência em políticas de desresponsabilização do Estado e a adopção do princípio do utilizador/pagador, para além de criarem maiores dificuldades no acesso aos cuidados de saúde, levariam obrigatoriamente a uma crescente e preocupante redução dos níveis de qualidade nos serviços prestados.

As principais vítimas desta situação, os utentes, vêem com angústia ser-lhes cortada a garantia de cuidados de saúde através do encerramento de hospitais, de SAP e CATUS, de urgências hospitalares, de maternidades e centros de saúde e vêem desaparecer direitos, como está a acontecer com a descomparticipação, em parte ou no todo, nos medicamentos, sofrem as agruras das escandalosas listas de espera para uma cirurgia, que teimam em permanecer acima das 230.000, apesar de todos os programas para as erradicar.

Os detractores do SNS fazem o “mal e a caramunha”. Primeiro criam dificuldades de toda a ordem ao sistema. Depois justificam o aumento dos custos para as famílias, para estas se verem obrigadas a recorrer à privada porque o sistema não dá respostas em qualidade e no tempo adequado. Hoje cada português paga em média cerca de 30% dos custos totais com a saúde, uma das taxas mais elevadas da União Europeia e que representa já cerca de 5% do orçamento familiar.

Os defensores da tese de se atribuir aos utentes uma maior responsabilidade financeira, aproximando as taxas do custo real, já chegaram ao ponto de questionar o facto de existirem estatisticamente 20% de pobres e dos 55% de utentes estarem isentos de pagar taxa, como se rendimentos de 400 ou 500 euros por agregado familiar, fossem suficientemente confortáveis para que possam pagar taxa, já que também podem pagar o bilhete de cinema, seguindo o raciocínio do próprio Ministro da Saúde.

A decisão de criar novas taxas de internamento e de cirurgia e de aumentar o valor das mais de 370 taxas que já existem, bem como as justificações do Ministro da Saúde para tal, apenas confirmam a inconstitucionalidade da medida e a opção pelo princípio do utilizador/pagador, não para resolver os problemas financeiros do sistema, mas preparar os portugueses para um conjunto de medidas com o objectivo de implementar um sistema de co-financiamento do serviço público de saúde.

Se dúvidas pudessem existir sobre as responsabilidades da situação a que chegou o SNS, então que se responda a questões como por exemplo, quem foram os responsáveis pelo sub-financiamento crónico do SNS que tem provocado a sua asfixia financeira?

Quem foram os responsáveis por uma política de recursos humanos meticulosamente executada, alimentando uma política “hospitalocêntrica” e de emagrecimento dos cuidados primários, levando a uma situação em que hoje para 3 médicos hospitalares exista 1 nos cuidados primários? Quem tem imposto uma política de restrições inaceitáveis no acesso à carreira médica com a imposição de numerus clausus nas faculdades de medicina? De acordo com os rácios da Organização Mundial de Saúde faltam só na área dos cuidados primários quase 600 médicos de família e cerca de 12.000 enfermeiros.

São exactamente os mesmos que hoje vão ao ponto de defenderem a tese de que foi um erro histórico criar o SNS e que, por isso, se deve regressar à diversidade de subsistemas que existiam antes do 25 de Abril. Certamente que manteriam hoje as mesmas opções porque são opções ideológicas, não são técnicas. Pela nossa parte estaríamos certamente ainda mais orgulhosos do nosso SNS, porque os portugueses teriam melhor acesso aos cuidados de saúde e por esse facto mais qualidade de vida.

O Governo procura justificar as suas medidas com estatísticas manipuladas, com “relatórios técnicos” feitos à medida das suas opções e, sobretudo, com a cega obsessão pela redução do défice das contas públicas.

É assim que se justificam os encerramentos de dezenas de SAP por todo o país, deixando as populações, particularmente as do interior, suficientemente longe de uma urgência, que em alguns casos pode representar a diferença entre a vida e a morte. Foi assim que se justificou o encerramento de maternidades, numa atitude inaceitável de imposição de princípios e critérios aos organismos públicos que não se aplicam aos privados. O mesmo acontece com a proposta de reestruturação das urgências hospitalares em discussão pública, elaborada com um compasso traçando circunferências sobre um mapa de Portugal, de que resultaria que passaremos de 176 urgências abertas 24 horas para somente 83, em que uma parte pode não funcionar as 24 horas.

O diagnóstico não engana. Estamos perante um modelo de cuidados de saúde que é injusto e profundamente desumano.
É frequente ouvirmos dizer que o Estado gasta demasiado dinheiro com a saúde e até que somos quem mais gasta na UE, que a despesa tem subido de forma descontrolada e que os ganhos em saúde não compensam o volume do investimento.

Sobre esta matéria importa salientar que uma, senão a primeira causa da subida da despesa com a saúde, tem que ver exactamente com o aumento da promiscuidade entre o público e o privado que grassa nos hospitais, levando a que o total da despesa proveniente da subcontratação com privados, atingisse no ano de 2005, 48,5 % do total das despesas do SNS. Só nos hospitais EPE, no primeiro trimestre de 2006, a subcontratação a privados aumentou 46,3 %.
A este propósito apraz-nos registar que o Presidente da Entidade Reguladora da Saúde, depois de parecer ter-se eclipsado prolongadamente, reaparece agora com a “grande novidade”: há fraude nas convenções do Estado com privados! Tudo indica que a proposta que está em elaboração apenas pretende reorganizar o sistema de convenções em favor do grande capital. Esta é mais uma razão para que esta entidade seja extinta, passando as suas competências para a Inspecção Geral dos Serviços de Saúde.

Assume particular destaque nesta crítica a despesa com medicamentos, que atingiu mais de 23 % das despesas de saúde em 2004, muito acima de vários países europeus. Também na área do medicamento as opções têm oscilado entre os vários grupos de interesse, tendo como principal consequência o aumento dos custos para o Estado e para os utentes. O governo vem demagogicamente afirmando que os medicamentos estão a baixar de preço e que continuarão a baixar, mas a questão é saber se a diferença do custo dos medicamentos que baixam, compensa o que os utentes pagam a mais em dezenas de medicamentos que foram total ou parcialmente descomparticipados.

A política do medicamento do PS proporciona à indústria farmacêutica margens escandalosas e faz com que os 100 medicamentos mais vendidos em Portugal, representando cerca de 1/3 do mercado, tenham preços em média 18% mais elevados que nos países de referência, contrariando o que está na Lei.
O quadro está muito claro. De um lado estão os que defendem uma Reforma Democrática do SNS, como garante do acesso em equidade aos cuidados de saúde por parte de todos os portugueses, do outro os que o querem pura e simplesmente destruir para que desta forma o acesso e a qualidade dos cuidados de saúde fiquem dependentes das regras do mercado, ou seja quem quer saúde paga.

Um Serviço Público que garanta o princípio da equidade o que passa pela gratuitidade da prestação de cuidados de saúde, eliminando as taxas moderadoras ou de utilização em que, como está confirmado, não moderam nada e acrescentam muito pouco às receitas.

É imperiosa a adopção de uma política de racionalização de custos do SNS, que garanta o equilíbrio orçamental e a redução do desperdício, para o que é fundamental a completa separação entre o público e o privado, indispensável ao aumento da eficiência e à sua acessibilidade. Esta opção significa substituir os serviços contratados a privados – incluindo meios complementares de diagnóstico e terapêutica – por produção própria, aproveitando integralmente a capacidade instalada em meios técnicos e humanos, terminando o ciclo de sub-financiamento crónico do SNS gerador de muitas ineficiências existentes.

Por outro lado é fundamental planificar a rede prestadora de cuidados de saúde que também pode ser um instrumento para combater a ineficiência, para melhorar a acessibilidade e a qualidade. Planificação que se deve pautar pela aplicação dos princípios da proximidade e racionalidade na construção de Centros de Saúde e Hospitais e não pelo desenho a régua e esquadro, feito com o calculismo frio que favorece os grandes interesses que se movem nesta área, como está a acontecer com o encerramento de urgências hospitalares, SAP e maternidades, cujo encerramento não obedece a nenhum estudo nem plano de saúde mas apenas visa, mais uma vez, viabilizar os investimentos privados em curso. O fecho de maternidades públicas e a abertura de maternidades privadas, como está acontecer aqui na região de Lisboa, com a abertura das maternidades na clínica de Sto. António da Reboleira, aberta apenas até às 21 horas, e no quase pronto Hospital da Luz propriedade do BES/Saúde, são exemplos eloquentes do que acabamos de dizer.

Numa perspectiva de defesa do SNS, público e para todos, o PCP defende que uma verdadeira reforma dos cuidados de saúde primários – em ruptura com a política que tem sido seguida – deve integrar medidas de gestão e administração, de preenchimento e alargamento dos quadros de pessoal, de instalações e equipamentos que lhes permitam autonomia diagnóstica e terapêutica, com a duplicação dos recursos financeiros para os Centros de Saúde no prazo de uma legislatura. É indispensável a articulação entre os centros de saúde e os hospitais para a prestação de cuidados de saúde de qualidade e em tempo.
A gestão de todas as unidades de saúde do SNS deve ser de carácter público, não aceitando qualquer legislação que permita a privatização dos Centros de Saúde e pondo fim aos contratos de gestão privada de estabelecimentos públicos, abandonando as Parcerias Público Privadas (PPP) no Serviço Nacional de Saúde e reintegrando os actuais Hospitais EPE no Sector Público Administrativo (SPA).

Na perspectiva de uma melhor articulação dos Serviços Públicos de Saúde, há muito que consideramos ser necessária uma nova lei de gestão dos Serviços de Saúde, democrática e participada pelo Poder Local, no âmbito dos Sistemas Locais de Saúde, com novas regras, técnicas e de competência, sendo a selecção dos órgãos de gestão feita por concurso público.

Muitos dos problemas com que o SNS se confronta hoje são o resultado de uma errada política de recursos humanos. Para obviar a esta situação é urgente concretizar um programa de formação de profissionais de saúde, nomeadamente em áreas de especialização de Cuidados de Saúde Primários, obstetrícia e outras, que ponha fim à depauperação em meios humanos que se está a verificar no Serviço Nacional de Saúde e que garanta a sua sustentabilidade no futuro.

Fundamental para a resolução deste problema é abolir-se os numerus clausus no acesso aos cursos de Medicina e Enfermagem. Deve promover-se a estabilidade de emprego e das carreiras nos Serviços de Saúde, essenciais à qualidade dos serviços prestados, com o consequente fim dos contratos a termo certo para trabalho permanente e outras formas de precariedade, e acabar com a os contratos individuais de trabalho, integrando os trabalhadores nestas condições, nos quadros de pessoal.

A racionalização da despesa com medicamentos está na ordem do dia. Como forma de reduzir a despesa do Estado e sobretudo dos utentes com medicamentos o PCP defende, entre outras medidas, que os medicamentos prescritos nos Hospitais e Centros de Saúde - genéricos ou de marca – devem ser aí dispensados gratuitamente, sempre que o seu custo para os estabelecimentos do SNS seja menor que a comparticipação na compra em farmácias.

Na prossecução do objectivo de racionalizar a despesa com medicamentos defendemos ainda a necessidade de alargar o mercado dos genéricos, com o aumento da sua divulgação e incentivando a sua prescrição. Enquanto se mantiver o sistema de preço de referência, que pensamos dever ser abolido, propomos a implementação de uma cláusula de salvaguarda para garantir que o utente não é prejudicado na comparticipação, pelo facto de o médico não autorizar a utilização de genéricos.

É imperioso o alargamento da lista de medicamentos para doenças crónicas e degenerativas, comparticipados a 100%, bem como devem ser adoptados sistemas de comparticipação pelo SNS que garantam às pessoas com recursos económicos mais limitados, a comparticipação especial de mais 15%, sem os entraves burocráticos como os que foram criados pelo actual Governo, para que dela beneficiem todos os que têm direito.

Por fim exigimos que se pare com o encerramento de serviços de saúde, reabrindo-os ao serviço das populações, realizando uma planificação dos serviços segundo os princípios de proximidade e racionalidade, avaliando as condições de instalações e equipamentos, dotando-os de meios técnicos e de profissionais para cumprirem a sua função com eficiência.

São notáveis os progressos e ganhos em saúde devido à existência de um SNS público, mesmo sistematicamente atacado e desacreditado. Sem este SNS, Portugal não teria hoje uma taxa de mortalidade infantil que passou de 39 por 1000 em 1975, para 5 por 1000 e uma esperança de vida média à nascença que se situa hoje nos 77,3 anos. É este SNS que foi classificado pela Organização Mundial de Saúde entre os 12 melhores do mundo, à frente de países como a Grã-Bretanha, a Alemanha, os Estados Unidos da América e o Canadá. É este SNS que queremos defender. É este SNS que é necessário desenvolver. É este SNS que urge fazer retornar à sua filosofia original. Para bem da saúde dos portugueses!

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