Intervenção de Rita Rato na Assembleia de República

"Onde está a preocupação com o superior interesse das crianças?"

Aprova o Regime Geral do Processo Tutelar Cível, 339/XII (4.ª) — Procede à segunda alteração à Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de setembro
(proposta de lei n.º 338/XII/4.ª)
Altera o Código Civil e aprova o Regime Jurídico do Processo de Adoção
(proposta de lei n.º 340/XII/4.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr. Ministro,
As propostas de lei hoje em discussão relativas ao regime de adoção, proteção de crianças e regime tutelar cível não referem uma única palavra para as condições humanas e materiais de aplicação da lei. Isto é, o Governo que retirou técnicos às equipas multidisciplinares de apoio aos tribunais é o mesmo que nestas propostas vem impor maior celeridade, agilização e eficácia no tratamento dos processos, designadamente de adoção e de regulação do exercício de responsabilidades parentais.
Podemos, por isso, concluir, Sr. Ministro, que o mais fácil é o Governo, tarde, a más horas e sem instruir os processos legislativos, como é sua obrigação, alterar a lei. Mais difícil, porque não tem vontade de o fazer, é garantir o número de profissionais adequados na segurança social, nas equipas junto dos tribunais para assegurar o cumprimento cabal da lei. Isso o Governo não quer fazer, porque isso exige, necessariamente, uma outra visão sobre o papel do Estado e as suas funções sociais.
Sr. Ministro, queria aproveitar para lhe colocar duas questões concretas.
Uma, tem a ver com o facto de o Governo ter vindo a afirmar — e fê-lo na intervenção inicial — a necessidade de privilegiar o acolhimento familiar. Por princípio, acompanhamos esta ideia. Mas, Sr. Ministro, aquilo que nos tem chegado por parte de famílias é o incumprimento por parte da segurança social no pagamento daquilo que é necessário às famílias de acolhimento. Por isso, temos confrontado o Governo com situações concretas, vide a pergunta ao Governo n.º 1118/XII, da 2.ª Sessão Legislativa, sobre o incumprimento da lei relativamente aos direitos das famílias de acolhimento. É porque, Sr. Ministro, o mais fácil é «atirar a batata quente» para cima dos outros, o mais difícil é criar condições efetivas de acolhimento e de salvaguarda dos interesses das crianças.
Outra questão concreta que aqui queremos colocar tem a ver com a lei tutelar cível e com o que tem vindo a chegar à Assembleia da República relativamente ao regime das responsabilidades parentais e o diploma que aqui hoje discutimos nada refere sobre esta matéria. Quando os pais não cumprem o pagamento da pensão de alimentos e a segurança social, através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, é obrigada a suprir essa falta, o que tem acontecido é que a segurança social tem vindo a recorrer sempre que o tribunal decide impor o pagamento de quantia superior àquela que foi fixada pelo devedor. Se, devido à incapacidade económica, for fixado às famílias, por exemplo, 50 € e se o tribunal decide que é 80 €, a segurança social recorre sempre desta decisão.
Sr. Ministro, diga-nos onde é que está a preocupação com o superior interesse das crianças.
(…)
Sr. Presidente,
Sr. Deputados:
Em Portugal, só a partir da Revolução de Abril de 1974, com a conquista e consagração legal de um sólido corpo de direitos económicos e sociais, teve início o caminho de construção e garantia dos direitos das crianças, nas suas múltiplas dimensões e de forma transversal.
A Declaração Universal dos Direitos da Criança foi proclamada pela Organização das Nações Unidas a 20 de Setembro de 1959 e passados 20 anos foi celebrado o Ano Internacional da Criança. Contudo, só em 1989, com a adoção por parte da ONU da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, ratificada por Portugal no ano seguinte, é que a criança passou a ser considerada como cidadão de pleno direito.
Conforme consagrado na Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 69.º, cabe ao Estado e à sociedade proteger as crianças «com vista ao seu desenvolvimento integral», designadamente contra todas «as formas de abandono, de discriminação e de opressão».
A todas as crianças deve ser assegurado o direito à proteção e a cuidados especiais, o direito ao amor e ao afeto, ao respeito pela sua identidade própria, o direito à diferença e à dignidade social, o direito a serem desejadas, à integridade física, a uma alimentação adequada, ao vestuário, à habitação, à saúde, à segurança, à instrução e à educação.
Pese embora a vigência de direitos fundamentais em forma de lei, a vida quotidiana de milhares de crianças no nosso país é hoje marcada por múltiplas formas negação de direitos, violência e discriminação.
Sr.ª Presidente, Sr. Deputados: Sucessivos governos, e em particular o atual Governo PSD/CDS, têm aprofundado um caminho de desresponsabilização do Estado na garantia dos direitos das crianças.
A não garantia dos meios humanos adequados ao funcionamento das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens e a opção, presente proposta de lei, de estabelecer protocolos e colaborações com as IPSS representa um caminho perverso, que pode colocar em causa a existência de um sistema público, universal, com metodologias de intervenção que garantam igualdade e especificidade necessárias para o acompanhamento de cada situação.
As propostas de lei hoje em discussão, relativas ao regime de adoção, proteção de crianças e regime tutelar cível, não têm uma única palavra para as condições humanas e materiais de aplicação da lei.
O Governo que retirou técnicos às equipas multidisciplinares de apoio aos tribunais, enviando-os para a requalificação, é o mesmo Governo que, nestas propostas, vem impor maior celeridade, agilização e eficácia no tratamento dos processos, designadamente, de adoção e regulação do exercício de responsabilidades parentais.
Sr. Ministro, gostaríamos de colocar aqui preocupações relativas à proposta de lei sobre as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens para as quais entendemos ser importante ter resposta em sede de especialidade, designadamente, o artigo 19.º e o novo 20.º-A, quanto à perversidade que criam. Surge a obrigatoriedade das oito horas de serviço, articuladas para impor a prestação de um tempo mínimo, designadamente com previsão de punição por parte do Ministério Público em caso de incumprimento.
Até aqui parece-nos bem, mas, logo de seguida, o artigo 20.º-A cria a escapatória e assegura protocolos com IPSS para a criação do corpo técnico.
Outro aspeto que entendemos ser importante, e num contexto de constituição de mega agrupamentos, é que, no caso da educação, se assegure a participação de professores, também tendo em conta o número alargado de alunos em cada um dos agrupamentos.
Ainda relativamente ao artigo 68.º, alertamos aqui para o que pode significar de sobrecarga dos tribunais. Até agora, depois de 18 meses, arquiva-se o processo. Esta proposta de lei prevê que, após os 18 meses, o processo seja enviado ao Ministério Público para fiscalização. Esta medida pode parecer-nos positiva, mas com a ressalva de que deveria haver auditorias e fiscalização efetiva para que não fosse necessário sobrecarregar os tribunais.
Relativamente ao n.º 6, queremos alertar para a perversidade que pode constituir para as comissões de maior dimensão a necessidade de colaboração com comissões com menor número de processos. Provavelmente, seria importante limitar o período de colaboração, sob pena de se deixar de constituir, com sua autonomia própria, ainda assim, as comissões com menores processos.
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputados:
Para o PCP, a luta pelo cumprimento integral dos direitos das crianças é inseparável da luta pela defesa dos serviços públicos de qualidade e das funções sociais do Estado, designadamente da segurança social, e aqui reiteramos a importância fundamental de que o Governo cumpra uma obrigação legal na garantia de todos os meios humanos e técnicos necessários.
Da parte do PCP, o nosso compromisso é o de que o superior interesse da criança seja efetivamente respeitado na vida de todos os dias e não apenas no discurso do Governo.

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