Intervenção de Miguel Tiago, Membro da CAE - Comissão das Actividades Económicas junto do Comité Central do PCP, Debate «20 anos de circulação do Euro: passado, presente e futuro»

O euro e a banca

O euro e a banca

Boa tarde, camaradas.

Em primeiro lugar, saúdo a iniciativa do PCP. Debater os impactos, efeitos e consequências da entrada em circulação do euro é, mais do que uma questão que se nos coloca enquanto partido, uma questão da maior importância nacional e sobre a qual recai um ridículo silêncio por parte dos órgãos da comunicação social, do Banco de Portugal e do Governo. Não há uma única abordagem crítica no espaço público que se digne a equacionar e ponderar os custos e os benefícios da moeda única e apenas o PCP vem rompendo esse silêncio, quer seja através de iniciativas de debate – como esta –, publicações e iniciativas de luta. Vinte anos de circulação do euro provocaram a Portugal incalculáveis. Em primeiro lugar, através da perda de soberania monetária. Em segundo lugar, através da estagnação de sectores fundamentais da economia. Em terceiro lugar, através da pressão que a moeda única exerce sobre os custos do trabalho, ou seja, sobre o valor dos salários. A acrescentar aos custos políticos e económicos da adopção de uma moeda única – definida no essencial em função da moeda da principal economia do espaço da UE (o marco), juntam-se os desenvolvimentos que a União Europeia vem impondo – com a aceitação do governo colonizado – em diversas esferas da economia e das finanças. A União Bancária é um desses desenvolvimentos e configura, resumidamente, a adaptação da estrutura de supervisão e regulação bancária à configuração de uma banca em reorganização com vista à quase total concentração do capital bancário. O valor acrescentado bruto da actividade financeira é o único a sentir um pico com a entrada em circulação da moeda única. Enquanto a maior parte dos sectores de actividade, especialmente os sectores produtivos, estagnam ou definham, o sector financeiro e os seguros, entre 2001 e 2009 mais do que duplicam o valor acrescentado bruto da sua actividade de 6 mil milhões para 12 mil e 600 milhões de euros. Mesmo a crise de 2009 não provocou uma diminuição nesses valores significativa e, apesar do decréscimo no VAB do sector por volta de 2013, a realidade também demonstra que o seu percurso tem sido o de recuperação, sendo que o sector financeiro é um dos centros das preocupações da legislação e das medidas políticas de suposto incentivo à economia. Ao mesmo tempo que o sector financeiro vê os seus resultados a melhorar historicamente, os trabalhadores do sector – apesar de estarem muito reduzidos em número – têm vindo a perder salário. Os trabalhadores do sector financeiro, em 1996, recebiam 36% do total do valor da produção e, em 2020 já recebiam apenas 20%. É igualmente possível relacionar com o euro, a total estagnação do custo do trabalho por unidade de produção. Em 2001, 26% dos custos da produção eram afectos ao salário. Em 2020, esse valor subiu para uns estonteantes 28%, sendo que passou uma grande parte do período histórico do euro, abaixo dos 25%. Só a recuperação de direitos ditada pela intervenção do PCP entre 2014 e 2019, permitiu que os custos do trabalho em relação à produção passassem de 25% em 2014 para o máximo histórico de 28% em 2020, o que – ainda que aquém do justo e necessário – não deixa de ser relevante. A pressão que o euro exerce sobre os salários é evidente: não podendo o país utilizar a política cambial e monetária como instrumento de gestão da economia, e não podendo competir no mercado europeu em pé de igualdade com as grandes economias e centros produtivos e tecnológicos, resta conter o crescimento salarial como forma de manter à tona um já débil sistema produtivo, sendo que, evidentemente, os grupos económicos não abdicam – nem ninguém lhes impõe que abdiquem – dos chorudos lucros obtidos à custa das rendas cobradas a todo o sistema económico. A banca, os seguros e a energia têm nas suas mãos uma fatia injustamente grande da produção e do rendimento nacional, na medida em que se apropriam do rendimento de uma boa parte do tecido económico, principalmente do alavancado e descapitalizado. Os custos de capital, porque Portugal não pode decidir fazer trabalhar as rotativas do Banco de Portugal, são agora pagos a Frankfurt e às grandes economias da UE, sob a forma de taxas de juro das dívidas públicas que aumentam na proporção da distância à Alemanha. O processo de desequilíbrio e de concorrência impossível entre economias agrava-se. Um euro em Portugal não custa o mesmo que um euro na Alemanha, nem no financiamento externo, nem no interno ou na produção. Não bastava, portanto, que países centrais tivessem uma vantagem competitiva por serem economias muito mais robustas, como a imposição da utilização das suas moedas como moeda da zona euro, os beneficia também através de diferenciados custos de capital. A forma como a União Europeia se constitui como a superestrutura política do grande capital europeu está bem patente na forma como a União Europeia se desenha em função dos interesses que representa. Perante a tendência de aglutinação, de fusões e aquisições no sector financeiro, a resposta política – que deveria ser a de impedir a criação de monstros bancários demasiado grandes para existir – é exactamente a oposta. A União Europeia adapta-se e impõe que os seus estados-membros se adaptem à nova configuração do capital financeiro. Lembramos bem a forma como a Direcção-Geral da Concorrência (DGComp) determinou a resposta de Portugal aos colapsos do BES e do Banif e à recapitalização da Caixa Geral de Depósitos. Em nenhum momento foram equacionados os interesses do país e dos trabalhadores portugueses. As decisões da DGComp foram tomadas sem o conhecimento concreto da realidade e, acima de tudo, sem qualquer ligação à realidade de Portugal e da vivência do seu povo, sem respeito pelo interesse dos que vivem e trabalham em Portugal e com total obsessão em torno do funcionamento do mercado e de eventuais fretes a esta ou aquela instituição bancária. A resolução do Banif, feita sem pudor à medida do Santander, é apenas um exemplo. A venda dos activos do Novo Banco, financiada pelo estado e assegurando a remuneração dos accionistas do banco e os salários principescos da administração, imposta pela DGComp e assumida com gosto pelo Governo da República, é outro exemplo. A União Bancária já estava em construção muito antes de anunciada, como esses casos ilustram. A sua assumpção plena e a retirada da capacidade de supervisão dos bancos centrais de cada estado não representa mais do que o redesenho da estrutura política à medida da estrutura capitalista. Era do absoluto interesse nacional que a banca mantivesse uma grande ligação ao capital nacional e que não fosse totalmente entregue a capital estrangeiro e era igualmente do interesse nacional que a banca fosse dispersa ao invés de concentrada. A concentração do capital bancário não gera apenas grandes grupos monopolistas – que não são apenas bancários – mas gera grandes riscos. A visão do grande capital europeu, todavia, não se compadece com o potencial de risco pois se há algo de que tem certeza é de que esse risco nunca recairá sobre si. A necessidade de funcionamento de um sistema financeiro e a sua estabilização são tão fundamentais e tão fulcrais na vida e economia dos nossos dias que não pode, pura e simplesmente, permitir-se o desaparecimento do sector. Assim, o objetivo concreto e imediato dos grupos bancários é o da obtenção do máximo lucro no mínimo espaço de tempo, agora com uma estrutura de supervisão adaptada à sua nova escala – mega-bancos – sem receios de um colapso no sistema financeiro porque, acaso ocorra, esse colapso será suportado pelos estados. Aliás, temos em Portugal dois casos emblemáticos de como não se vai buscar o que foi roubado a um banco pelos seus accionistas. O BPN foi nacionalizado, sem que tivesse sido nacionalizado o grupo a que pertencia, deixando todos os bens e património adquiridos com o dinheiro roubado ao banco nas mãos dos responsáveis pela falência. O BES foi alvo de medida de resolução – com custos obscenos – e em nenhum momento se equacionou (por parte do Governo PSD/CDS) a nacionalização ou sequer o congelamento dos bens do GES e da família e de outros grandes accionistas. Ou seja, no essencial, o accionista vê salvaguardado tudo o que pôde roubar ao banco enquanto pôde roubar. Em último caso, e no máximo, perde apenas o capital accionista no momento do colapso. Estes são resultados das imposições da União Europeia, por um lado e de uma vassalagem pronta e servil por parte do governo da república, por outro. A construção da União Bancária agrava todas as dimensões dos problemas pré-existentes na perspectiva dos povos, enquanto alivia todos os problemas pré-existentes na óptica dos grandes grupos económicos. A questão não se coloca apenas, e para terminar, na possibilidade de acumulação de riscos e de eventuais colapsos de instituições financeiras – inevitáveis no longo prazo, aliás – mas também na defesa do interesse de cada povo. A concentração das instituições financeiras, a criação de gigantes monopolistas e a adaptação do sistema de supervisão a esses gigantes e suas vontades, gera uma potencial contradição ainda maior entre o interesse de cada instituição e o interesse do estado em que opera esse gigante. O caso português é um caso paradigmático: a periferização de Portugal também se opera desta forma de concentração total da banca que opera em Portugal, com a excepção óbvia e forçada da CGD, nas mãos da banca espanhola. O interesse nacional não está minimamente salvaguardado na grande questão da gestão dos destinos e dos fluxos de crédito e muitos milhares de milhões de euros são desviados da economia nacional para a banca espanhola e accionistas espanhóis. Espanha é o único país com que Portugal tem fronteira terrestre e a economia que pode representar mais directamente concorrência em vários sectores. O cenário fala por si: a colonização da banca portuguesa através da aglutinação de instituições sob controlo e orientação estrangeiros representa, não apenas o desvio de milhões de euros para fora do país, como a entrega de opções estratégicas de financiamento da economia e gestão da poupança ao país que mais directamente funciona como economia concorrente, em benefício óbvio desse e detrimento óbvio deste. A política patriótica e de esquerda que o PCP defende e propõe reclama a necessidade de reforçar a presença do controlo público no sector financeiro e opõe-se à entrega de mais parcelas de soberania e ao redesenho do Estado em função dos interesses dos grandes grupos económicos, como é a União Bancária. A política que defendemos precisa de um sistema financeiro robusto e sólido, subordinado aos interesses do país e do povo, capaz de alavancar e financiar a economia, olhando às suas necessidades estratégicas e não às necessidades e caprichos dos seus accionistas.

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