Intervenção de João Ferreira, Membro da Comissão Política do Comité Central do PCP, Sessão Pública «Do pelotão da frente à cauda da Europa: Mitos e realidades - Soluções para um Portugal com futuro»

Os custos da perda de soberania monetária

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No princípio era o “Europa connosco”, conhecido chavão para promover a adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia (CEE). A inserção no mercado comum exigiu um conjunto de transformações que visavam, em termos gerais, a conformação do Estado à “economia de mercado” capitalista exigida pela CEE. O caminho era, em certos aspetos, contraditório com o projeto inscrito na Constituição da República aprovada uma década antes, e comportou consequências no plano económico e social.

Anos depois, foi a vez do “pelotão da frente”. O “pelotão da frente” era o grupo de países fundadores da moeda única – peça fundamental para completar e olear o funcionamento do mercado único, que, no entanto, continuaria a funcionar com várias moedas, já que alguns países decidiram (até hoje) não abdicar da sua soberania monetária. Integrar o “pelotão da frente”, em Portugal, foi um projeto político assumido pelos principais centros do poder económico e pelos seus representantes políticos, que o catalogaram de “grande desígnio nacional”. Estar no “pelotão da frente” do euro significaria, asseguravam-nos, estar no pelotão da frente do crescimento económico, do investimento, dos salários, do desenvolvimento.

Sabemos que assim não foi. Não se trata de arranjar explicações monocausais para evoluções em que pesam sempre fatores diversos. Trata-se, sim, de avaliar se, a partir da posição e condições concretas do nosso país, o euro ajudou ou desajudou ao desenvolvimento. Ora, em termos gerais, duas décadas transcorridas, o euro, em vez do apregoado crescimento, trouxe estagnação. Em vez do progresso social, significou retrocessos no plano social e laboral. Em vez de melhoria dos salários e do poder de compra, degradação dos salários e do poder de compra. Em vez de convergência com países mais desenvolvidos, longos anos de divergência económica e social. Com o euro, em vez de investimento, houve desinvestimento, desindustrialização, terciarização e financeirização da economia, desnacionalização de empresas estratégicas, uma explosão do endividamento externo. 

Neste período, desfizeram-se muitas ilusões. E aqui estamos, sob o espectro da “cauda da Europa”.

O crescimento médio anual no euro, do final de 1998 ao final de 2022, foi de 1%. É certo que em momentos específicos, por exemplo, entre 2015 e 2019 esse crescimento ascendeu a 2,8%, acima da média da UE, algo que até então não tinha sucedido e que é indissociável da situação política específica existente nesse período. Ainda assim, obtidos dentro do colete de forças do euro, estes valores ficaram aquém das necessidades e possibilidades do país.   

O impacto da integração monetária no euro varia de país para país, consoante fatores tão diversos quanto o ponto de partida das respetivas economias, o seu perfil de especialização, a localização geográfica, a proximidade a mercados relevantes, a qualificação da força de trabalho, entre outros.  

Outros países da periferia do euro, como a Itália e a Grécia, são, com Portugal, dos que menos cresceram no mundo, nas duas décadas após a adoção da moeda única.

O euro é isso mesmo: a moeda única. Esta, tal como o mercado único e tal como as políticas ditas comuns, mas que na verdade são também únicas, especialmente nas áreas que os tratados foram absorvendo competências nacionais, sendo únicos, aplicam-se a países com situações muito diferenciadas. Ora, quando se trata de forma igual o que é diferente, o que está em situação diferente, os resultados não são iguais para todos, também são diferentes.

Entre o forte e fraco, protege-se o forte em vez do fraco, ganha o forte, perde o fraco. Dito de outra forma: não se pode servir a dois amos – ou o euro se ajustaria aos níveis de produtividade e aos custos do trabalho, à capacidade produtiva, comercial e financeira da Alemanha, como veio a suceder e sempre sucederá, ou o euro se ajustaria aos níveis de produtividade e aos custos do trabalho, à capacidade produtiva, comercial e financeira de Portugal, como nunca sucedeu nem nunca sucederá. De um lado, o maior ganhador com a moeda única, do outro lado, um dos principais perdedores. 

O euro não foi feito para promover o desenvolvimento de Portugal, país relativamente atrasado, dependente e periférico da União Europeia.

O euro reduz o investimento, privado e público, mesmo com os fundos estruturais e de coesão e agora com o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), que pagaremos mais tarde com aumentos das transferências que fazemos para a União Europeia ou diminuição das transferências que dela recebemos.

O euro debilita a produção nacional. Incentiva os baixos salários, desincentiva a modernização da economia e a qualificação da mão-de-obra. Encarece as nossas exportações. Em vez de ajudar a substituir importações por produções nacionais, ajuda a substituir produções nacionais por importações. 

Se o país não produz mais, dificilmente consegue dever menos. O euro, seja porque enfraquece a produção nacional, seja porque incentiva a saída de rendimentos e capitais, estimula o endividamento nacional.

O momento actual é particularmente revelador do impacto da perda de soberania monetária: com a redução precipitada da despesa orçamental, bem visível nas opções do Governo PS, a antecipar a desativação da cláusula de salvaguarda do pacto de estabilidade anunciada para 2024; a restrição das compras de títulos da dívida pública pelo banco central; e com o aumento brutal das taxas de juro, que tem um impacto mais imediato e pronunciado nos países da periferia da zona euro. O euro deixa o país à mercê do Banco Central Europeu, dos especuladores e das agências de notação financeira.

Há que recusar inevitabilidades. O desenvolvimento do país necessita, como solução estrutural, da recuperação da sua soberania monetária. Portugal precisa de uma moeda ajustada à sua realidade, que contribua para realizar as suas potencialidades, que recupere instrumentos e campos de intervenção, promova o aumento dos salários e a qualificação dos trabalhadores, o investimento, a modernização do aparelho produtivo, a eficiência e qualidade dos serviços públicos, o aproveitamento de recursos, a diversificação do comércio externo – a partir do reforço da capacidade produtiva em vez da acumulação insustentável de dívida.

Entretanto, não se menospreza a necessidade de intervir, nas condições adversas atuais, dentro do euro, aproveitando todas as possibilidades e oportunidades, todas as folgas, toda a margem de manobra, todas as conjunturas, explorando contradições, potenciando forças e recursos, no plano nacional e europeu.

É possível e necessário aumentar salários, assegurando uma mais justa distribuição do rendimento nacional, dinamizando o mercado interno, estimulando o aumento da produtividade e aproveitando esses ganhos de produtividade para aumentar mais os salários.  

É possível e necessário aumentar e diversificar a atividade produtiva; substituir importações por produção nacional de bens estratégicos, de produção e de consumo – como alimentos, medicamentos, equipamentos, meios de transporte ou energia; defender empresas nacionais; reclamar cláusulas de exceção e salvaguarda, derrogações inteligentes ao funcionamento do mercado único e das políticas comuns, que aproveitem à produção nacional e tirem partido de debates e de alterações em curso no âmbito da União Europeia, suscetíveis de criarem contradições e clivagens, como é o caso das regras relativas aos auxílios de estado e da concorrência.

É necessário intervir no debate sobre a reforma das regras orçamentais e outras, não de forma submissa e passiva, aceitando a concentração de poder discricionário na Comissão Europeia e nas principais potências, mas para assegurar margem de manobra.

É possível e necessário melhorar os serviços públicos, defender a segurança social, assumir um forte protagonismo do Estado na garantia do direito à habitação. E fazê-lo não apenas mobilizando o PRR e outros fundos europeus, mas promovendo uma fiscalidade mais justa, em vez de mais reduzida.

É possível e necessário conservar empresas e centros de decisão no país, mantendo ou recuperando a sua propriedade e gestão públicas, de resto, como outros países estão a fazer.

É possível reduzir a dívida, sim, mas fazê-lo graças ao crescimento económico e não à custa do crescimento. 

É necessário assegurar mais crescimento e desenvolvimento, ambos assentes numa relação mais harmoniosa e sustentável com a Natureza e os seus recursos.

Num momento particularmente complexo no plano nacional e internacional, o PCP propõe um rumo alternativo, assente numa rigorosa identificação dos problemas, no estudo de soluções e propostas que consubstanciam uma política patriótica e de esquerda, que se desenvolve de forma a assegurar o cumprimento da Constituição da República.

 

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