Intervenção de Miguel Viegas, Deputado ao Parlamento Europeu, Seminário «Direitos, Soberania, Cooperação, Paz. Uma Europa dos Trabalhadores e dos Povos»

«O projecto de integração capitalista da União Europeia não é nem nunca foi neutro do ponto de vista de classe»

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Desde o Tratado de Maastricht, passaram já mais de duas décadas. Partindo da situação portuguesa, e sem deixar de frisar que Portugal está longe de ser caso único, podemos concluir que no fundamental, a história confirma a análise que então fizemos sobre o carácter de classe da União Europeia e da criação da moeda única como instrumento de domínio político e económico. O aprofundamento da União Económica e Monetária, a criação da União Bancária a par com todas as políticas de aprofundamento do mercado único em sectores chaves da economia, como seja os transportes ou a energia, procuram formatar os estados membros de acordo com um molde ideológico que na prática subjugue os povos e os trabalhadores à canga neoliberal e ao serviço do grande capital.

A evolução da economia portuguesa na década que se seguiu à nossa entrada na então CEE e sobretudo depois da criação do mercado único em 1993, foi sempre apresentada como positiva e de convergência com a União Europeia. Mas esta convergência foi puramente ilusória. A utilização dos fundos europeus serviu essencialmente dois objectivos: a realização de obras faraónicas orientadas para grandes infraestruturas que permitissem uma mais fácil penetração do capital estrangeiro em Portugal, nomeadamente no sector terciário, e o financiamento da alteração da estrutura económica portuguesa com a terciarização e financeirização da economia e o definhamento do aparelho produtivo na agricultura, na pesca ou na indústria. A entrada no euro, clarificou tais objectivos. A sobrevalorização do euro dizimou sectores chaves da nossa economia que dependiam fortemente das exportações, com destaque para o têxtil e o calçado criando um enorme exército de desempregados e o aprofundamento do mercado comum abriu o caminho para uma crescente dependência externa, endividamento e criação de défices estruturais em áreas como o alimentar, industrial, tecnológico, entre outros. As regras do pacto de estabilidade e mais tarde do tratado orçamental vieram neutralizar os nossos estabilizadores automáticos, obrigando os governos a praticar políticas pro-cíclicas em plena crise quando deveriam ter feito exactamente o contrário, aumentando a despesa pública e o investimento para relançar o crescimento económico e combater o desemprego. Prestes a concluir duas décadas de moeda única, verificamos que a economia estagnou e que a nossa dívida pública, que estava abaixo dos 60% antes de entrar na moeda única, explodiu para 130%.

Ou seja, o Euro, sobrevalorizado para responder às necessidades dos grandes monopólios e de economias como a alemã, juntamente com os seus instrumentos de coação sobre a nossa política orçamental, acantonou a nossa economia aos sectores não transacionáveis, criando uma bolha imobiliária e aprofundando os nossos défices produtivos, seja na alimentar ou industrial e alimentando o correspondente desequilíbrios nas nossas contas externas. Importa também relevar que grande parte dos ditos apoios da União Europeia foram para apoiar o encerramento de empresas ao mesmo tempo que a liberalização de importantes sectores obrigaram Portugal a privatizar sectores públicos estratégicos fundamentais para a nossa economia com os resultados que se conhecem.

Como afirmámos Portugal está longe de ser caso único. A mesma história de armadilha do euro e de chantagem das instituições europeias repetiu-se em muitas economias periféricas, desde Chipre, Grécia, Espanha, Itália e até a Finlândia. Não falo da França e da Alemanha, países que impuseram a outros uma ditadura do défice que não aplicaram a si próprios. Para estes países as regras do pacto de estabilidade foram pura e simplesmente suspensas com o voto favorável de Portugal no conselho que estava no mesmo período sobre procedimento por défice excessivo. Até onde chega a subserviência!

Veja-se o caso de Itália que está neste momento na ordem do dia. A economia italiana está estagnada. Nos últimos 20 anos cresceu apenas 7%. O actual governo apresentou um orçamento para 2019 com um défice de 2,4%. A Comissão Europeia rejeitou este orçamento e deu três semanas ao governo italiano para rever a proposta. Apesar de ficar abaixo dos limites do pacto de estabilidade, estes 2,4% não são suficientes. A Comissão Europeia quer mais e impõe as regras do tratado orçamental para impor um défice estrutural de 0,6%. Ou seja, pretende mais austeridade e um plano de reformas que esteja de acordo com a sua agenda neoliberal. No caso de Itália, a multa pode ir até 3,4 mil milhões de euros. E veja-se a resposta do governo italiano. Diz que não altera um centavo da sua proposta porque entende que a contração do défice só vai prolongar a crise, mas ao mesmo tempo acena com um plano de privatizações avaliado em 1% do PIB para adoçar a boca das instituições europeias.

Este episódio diz muito sobre os constrangimentos do euro e sobre o que pretende a União Europeia. É diz também alguma coisa sobre o conteúdo político e ideológico da política que coligação italiana , que junta populistas e fascistas, pretende levar a cabo instrumentalizando os justos sentimentos dos trabalhadores e do povo italiano contra as imposições e ingerências da União Europeia.

O Aprofundamento da União Económica Monetária e da União Bancária

Com a crise financeira de 2008, cujos efeitos ainda perduram, cresceu nos povos dos diferentes países da União Europeia um crescente distanciamento e contestação às instituições europeias e suas políticas. Como explicar os imensos sacrifícios das populações e dos trabalhadores na fase de preparação e lançamento da moeda única? O euro que iria fortalecer a União Europeia, que iria tornar a Europa imune a crises económicas e torná-la mais forte face outros blocos político-económicos. Refeitos do choque, e depois de milhares de milhões de euros gastos para refinanciar o sistema financeiro europeu, os ideólogos da União Europeia e do euro partiram para uma nova narrativa. A crise foi severa porque a União Europeia e em particular a União Económica e Monetária estava incompleta. Com este lema foram redigidos logo no início deste mandato o chamado relatório dos cinco presidentes e depois o documento de reflexão sobre o aprofundamento da UEM. Nestes textos foram lançadas as grandes orientações fundamentais que determinaram boa parte do trabalho legislativo realizado neste mandato. Para além da criação da União Bancária, destacamos o projecto de criação do fundo monetário europeu e a tentativa de construção de uma capacidade orçamental para lidar com choques assimétricos.

A União Bancária, criada com o objectivo de dar mais solidez aos bancos e evitar o recurso a fundos públicos para intervir em situações de crise, foi na realidade mais um logro. Criados os mecanismos para maquilhar os balanços dos bancos destinados a disfarçar os enormes rácios de alavancagem com que a banca continua alegremente a trabalhar e um fundo de resolução que não chega para mandar cantar um cego, sobra a criação de uma potente estrutura de supervisão dentro do BCE que criou ainda mais entraves a intervenção dos estados nacionais nos seus sistemas bancários e tem vindo a patrocinar mais uma enorme vaga de fusões e concentrações do sistema financeiro. Hoje, fala-se na necessidade de completar a União Bancária com um fundo de financiamento credível do fundo único de resolução que poderá passar pelo tal fundo monetário europeu, a par da criação do terceiro pilar, o fundo comum de garantia dos depósitos destinado a dar uma garantia aos cidadãos europeus caso algum estado fique insolvente. Mas Merkel já declarou. Neste fundo cada um contribui de acordo com o risco não havendo nenhum espaço para qualquer tipo de solidariedade...

Há muito que se fala na transformação do actual mecanismo europeu de estabilidade que foi criado em plena crise para financiar os estados em dificuldade num fundo monetário europeu permanente à imagem do FMI. Não existe consenso neste momento para este importante passo, mas do que estamos a falar é da institucionalização de uma Troika permanente com plenos poderes para determinar as políticas dos estados membros em dificuldades e encabeçada por um superministro das finanças europeus. O caso é sério de facto.

Uma outra discussão em curso é a capacidade orçamental do euro, que em termos meramente teóricos é discutível. Mas como sempre a realidade é mais rica que a teoria e a realidade é que esta dita Moeda não é mais do que instrumento de domínio que é tudo menos comum ou único.Os protagonistas e comentadores do social reformismo clamam todos por um mecanismo para combater os choques assimétricos. O que estes ideólogos do neoliberalismo institucionalizado fingem não ver é que as assimetrias decorrem do mercado único, da natureza das suas políticas e dos constrangimentos que decorrem da governação económica do euro. Vejamos as propostas em concreto. São duas. Uma primeira consta de um programa de apoio às reformas estruturais com um envelope de 20 mil milhões de euros. Ou seja uma micro cenoura destinada a apoiar os países que queiram obedecer à voz do dono e realizar as reformas que nos são impostas através do semestre europeu, das recomendações por países e dos planos de reformas entregues anualmente. Mais significativo ainda, a chave de repartição seria construída a partir da população de cada estado membro. Quem vai beneficiaria desta ignomínia?

A segunda proposta consta de Função Europeia de Estabilização do Investimento para apoiar países onde a taxa de desemprego desça abaixo de um determinado patamar. A ideia até poderia parecer aceitável. Mas na prática trata-se apenas de um empréstimo condicionado com o mesmo certificado de bom comportamento de sempre. E depois o programa paga os custos com juros. Mas atenção, estes custos são financiadas a partir de um fundo que é constituído a partir da contribuição de todos os estados incluindo naturalmente os beneficiários. Ou seja, aqui mais uma vez ninguém da nada a ninguém. Este é mais um exemplo de que a tão propalada solidariedade europeia não passa de propaganda e de um gigantesco embuste.

Caros amigos e camaradas,

É evidente que o projecto de integração capitalista da União Europeia não é nem nunca foi neutro do ponto de vista de classe. Trata-se de um projecto desenhado para servir os interesses do grande capital e das grandes potências capitalistas da Europa. Por mais melodiosos que sejam os apelos à flexibilização do pacto de estabilidade ou à dotação de instrumentos que permitam lidar com os choques assimétricos e promover uma maior convergência a verdade é que o que está em causa é o aprofundamento dos mecanismos de domínio económico e de imposição política. Se dúvidas houvessem, atente-se às propostas concretas que são apresentadas e discutidas no Parlamento Europeu.

Os deputados do PCP no Parlamento Europeu têm percorrido o país, incluindo as regiões autónomas. Em todos os lados encontramos enormes recursos e potencialidades. Mas encontramos também graves problemas que decorrem em muitos casos, ou de falta de capacidade para promover investimento público, ou de outros constrangimentos que impedem que o estado, através das suas estruturas desconcentradas, possa ser um actor no desenvolvimento com políticas públicas de apoio aos sectores produtivos.

É neste sentido que o PCP defende a necessidade de Portugal libertar-se o quanto antes dos constrangimentos que decorrem da sua presença na União Europeia e em particular do euro.

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