Intervenção de Miguel Tiago na Assembleia de República

«O problema da banca privada é que está constantemente a ser assaltada pelos seus próprios grandes accionistas»

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Sr Presidente
Srs Deputados

A gestão privada do sistema financeiro é tão boa que há anos que andamos a discutir como resolver os problemas que criou. Eis pois as virtudes da privatização da banca de 1992: acumulação de riqueza e constituição de novos monopólios, desvio de quantias colossais da riqueza nacional para o estrangeiro e para fortunas em off-shore, imparidades de crédito de mais de 50 mil milhões de euros e uma despesa pública de mais de 25 mil milhões, tudo isto para tapar os buracos que os banqueiros deixaram no sistema. 30 mil milhões se incluirmos a CGD que foi na verdade gerida como um banco privado nas últimas décadas.

O problema da banca privada é que está constantemente a ser assaltada. Pelos seus próprios grandes accionistas. E o dinheiro que roubam e que lá falta acaba por ser o dos depositantes, a que o Estado é chamado a dar cobertura com recursos públicos numa operação de desvio de capitais do público para o privado sem precedentes. A conversão da dívida dos bancos em dívida pública, privatiza um capital público e socializa o passivo da banca privada. É uma operação obscena que reforça a necessidade de reformular o funcionamento do sistema financeiro, afirmar a necessidade do seu controlo público e de denunciar a natureza predatória e corrupta do sistema capitalista e dos Estados que fazem do capitalismo lei como é o caso dos que aceitam as regras da União Europeia.

É que não raras vezes pedem ao PCP que justifique os motivos por que defende uma banca pública. E explicamos com gosto. Mas o que ninguém nos foi ainda capaz de explicar é qual o benefício da banca privada. O que ganhou o país com a privatização da banca de Soares e Cavaco?

Em impostos, a banca nunca pagou o que devia: desde a sua privatização a banca nunca pagou a taxa de IRC efectiva estabelecida na lei. Só entre 2000 e 2008 a banca pagou cerca de metade dos impostos que devia ter pago; distribuiu muitos mais lucros do que podia distribuir e foi ainda assim capaz de acumular cerca de 50 mil milhões de euros em imparidades no pós 2009, no auge da nova vaga da crise capitalista. Nos últimos anos, principalmente desde 2009, a banca nunca pagou os impostos devidos, seja pela manipulação da taxa tributável, seja pela manipulação de resultados, seja pela engenharia fiscal, seja pela colaboração de governos de PS, PSD e CDS que não hesitam em refazer as leis e as regras do jogo para as adaptar à banca privada. Tivessem os serviços públicos a mesma disponibilidade dos governos que tem a banca e jamais alguém poderia falar de sustentabilidade de um serviço.

Desde 2009 que foram gastos 30 mil milhões. Em 8 anos, o Estado gastou mais do que gasta em 1500 anos de apoio às artes, mais do que gasta em 12 anos de ensino superior, o suficiente para pagar 150 anos de propinas gratuitas para todos os estudantes do ensino superior, 5 aos do orçamento do Serviço Nacional de Saúde. Estas são as grandes virtudes e vantagens da banca privada. Pagar pelos erros de gestão e crimes dos banqueiros quando dizem que não temos dinheiro para os serviços públicos.

A importância da banca no funcionamento da sociedade, da economia, não é compatível com a sua manutenção como uma coutada de grupos económicos e como um negócio privado dedicado a satisfazer o desejo de lucro dos accionistas. A moeda, o crédito e o dinheiro são bens públicos e não podem ser geridos ao sabor dos interesses dos monopólios que, como a história tem demonstrado, são as raposas no galinheiro.

É uma boa analogia esta: a das raposas e do galinheiro. Deixamos as raposas a tomar conta do galinheiro e estas, como seria de esperar, cumprem a sua natureza e comem as galinhas. Em vez de se retirar as raposas do galinheiro, o que se faz? Inventam-se leis e gastam-se milhões de euros em recursos para policiar as raposas. Regras cada vez mais apertadas, auditoria externa, “compliance”, auditoria interna, fiscalização do banco de Portugal, fiscalização da CMVM, fiscalização da autoridade de seguros, tudo em nome de proteger o galinheiro como se não fosse mais eficaz tirar de lá as raposas de vez. Todo este esforço legislativo, como o que tem vindo a ser feito em Portugal nos últimos anos e como o que agora propõe o PS, em nome da lisura na gestão bancária e em nome do cumprimento das regras. Tudo isto para que, quando as regras não são cumpridas, os Estados paguem a conta dos luxos dos banqueiros e da limpeza dos bancos e depois os entregarem a outro capitalista maior que o anterior.

Os projectos de lei que o PS hoje apresenta na Assembleia da República não representam nenhum retrocesso, não degradam a actual situação. Mas não vão tão longe quanto necessário. Com excepção do Projecto que reforça os poderes do Banco de Portugal, atribuindo a este a capacidade de determinar o encerramento de sucursais no estrangeiro, todos os restantes representam apenas mais uma camada de verniz para fingir que se fiscaliza a banca.

O PCP propõe o controlo público da banca como alternativa. Um controlo que pode assumir várias formas e várias fases, mas que não pode passar apenas pela manutenção do estado actual de coisas que sacrifica o bem-estar de um povo inteiro para satisfazer os lucros milionários dos banqueiros. A proposta do PCP para a capacitação do Banco de Portugal no sentido de este poder realizar as suas próprias auditorias é absolutamente fundamental nesse sentido.

Não é aceitável, nem compreensível que estejamos constantemente a produzir regras e a dar poderes ao Banco Central Europeu (do qual o Banco de Portugal já é apenas um apêndice) quando toda a informação é filtrada por empresas privadas que trabalham para a banca. Vimos no caso BES e no caso BANIF, tal como os Estados Unidos viram com vários bancos falidos, que por detrás da falência bancária está sempre uma auditora externa a encobrir. Não podemos aceitar que o Banco de Portugal actue apenas com base nos documentos produzidos pelas empresas que, como até aqui temos visto, mais não fazem senão mascarar e obstaculizar o conhecimento da real situação dos bancos.

A proposta do PCP aguarda desfecho na Comissão competente, proposta a que certamente se juntarão estas do PS. Estamos disponíveis para estudar cada uma destas e contribuir para o seu melhoramento, mas é determinante que o PS esteja igualmente disponível para aprovar a proposta do PCP. Os custos de uma equipa de auditores próprios do banco de Portugal serão sempre incomparavelmente inferiores aos custos que temos assumido com os assaltos dos banqueiros à banca.

Nenhuma solução para a banca que não passe pelo seu controlo público, com vista à nacionalização do negócio bancário, será suficientemente eficaz para proteger os portugueses dos assaltos que os banqueiros fazem aos bolsos dos depositantes e do país. Infelizmente, o que temos vindo a presenciar é precisamente o contrário: uma cada vez maior aproximação da banca às práticas do sector privado. A própria Caixa Geral de Depósitos se comporta, desde há muitos anos, como um banco privado e segue, num momento em que se devia distanciar dessa prática, a prática actual da extorsão dos depositantes, extorquindo taxas por serviços não prestados, comissões pela simples existência de conta, num processo de apropriação indevida dos recursos dos seus depositantes e da cartelização evidente, concertada entre as instituições bancárias e devidamente permitida pelos Governos PS, PSD e CDS que, mais do que fechar os olhos, legalizam essas práticas.

Do que o País precisa é de um serviço público bancário, de um Sistema público bancário, ao serviço da economia e da economia ao serviço das pessoas, do trabalho e da produção. Do que o país não precisa é de banqueiros que especulam com base na poupança dos portugueses e que pressionam a própria República porque não podem remunerar os depósitos ou os empréstimos. Do que o país precisa é de uma Caixa Geral de Depósitos que fixe o referencial em torno da banca pública, gerida para o povo e para os trabalhadores e não de um banco público que aceite o referencial da banca privada, gerida para os grandes grupos económicos e para ser o refúgio dos administradores milionários que, enquanto recebem milhões, destroem postos de trabalho, cortam salários, encerram balcões, usam e abusam da posição de poder perante os trabalhadores e ainda cobram milhões em comissões, extorquindo os portugueses.

O país precisa de uma ruptura na política financeira, uma política que assuma o interesse dos portugueses acima do dos banqueiros e de uma ruptura na política económica, que assuma a distribuição da riqueza e os direitos no trabalho contra os que só querem concentrar a riqueza à custa do fim desses direitos. Resumindo: uma política patriótica e de esquerda para o sector financeiro e para o país. Estes projectos que o PS apresenta estão muito longe disso.

Disse.

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