Intervenção de Mário Moreira, Encontro Nacional «Tomar a iniciativa – assegurar o direito à habitação para todos»

Políticas de solos e habitação

Políticas de solos e habitação

Entre os fatores que mais oneram preço de venda ou de arrendamento dos fogos disponíveis no mercado e, nessa medida afetam o direito constitucional à habitação, emerge à cabeça a especulação imobiliária dos solos.

Tal constatação remonta mesmo ao período anterior a 25 de abril de 1974,com iniciativa legislativa com propósito enunciado de combate à especulação imobiliária, para conter o aumento das rendas da habitação.

Na sequência da revolução democrática de abril de 74, a “Lei de Solos”, de 1976, no propósito de garantir o direito à habitação consagrado na nova Constituição, e ainda no contexto da correlação de forças saídas da revolução, reconhece os efeitos da especulação imobiliária dos solos e institui importantes mecanismos de intervenção do Estado, com vista a suportar e desenvolver muitas das iniciativas populares desencadeadas então por todo o país.

Cedo a contra-revolução, que se traduziu na política de direita dos sucessivos governos, protagonizados pelo PPD/PSD, CDS/PP e PS, se encarregou de esvaziar sucessivamente a original Lei de Solos, até à sua completa revogação em 2014. Primeiro, permitindo a entrega do património do Estado sem possibilidade de vincular o seu aproveitamento urbanístico posterior. Depois, eliminando a possibilidade de condicionamento das características da edificação preconizada nas operações de loteamento de iniciativa particular. Seguiu-se a completa revogação, consagrando o paradigma neoliberal, centrado na capacidade financeira da iniciativa privada, e nas oportunidades dos negócios, com o simultâneo esvaziamento da capacidade de intervenção do Estado.

Apesar do poder local democrático alcançado com a revolução de abril, a capacidade dos municípios terem alguma intervenção autónoma nas políticas de solos só se veio a verificar a partir da instituição dos planos diretores municipais. Ainda assim, com uma forte tutela governamental assegurada pelas Comissões de Coordenação Regional e, na esmagadora maioria dos municípios, com magros recursos patrimoniais, financeiros e técnicos, capazes de permitir uma programação e execução pública consequente, assim sujeita à vontade dos detentores privados da propriedade do solo. 

A cidade que temos

As sucessivas camadas das cidades que temos, resultam, de modo dominante, de vontades e interesses privados, quer pela propriedade dos solos, quer pelo “papel dos urbanizadores” assumido de forma crescente, sobretudo a partir dos anos setenta do século passado, quer ainda pela qualidade e uso da edificação, subordinada às mais elevadas taxas de lucro.

Contornando os preços proibitivos dos terrenos no interior dos perímetros urbanos, as urbanizações encontravam localizações afastadas, sem equipamentos coletivos e com infraestruturas precárias, sacrificando a vocação e o uso de solos rústicos. Ganhavam ainda crescente expressão os núcleos de loteamentos clandestinos, sem qualquer infraestruturação, e a construção à margem de qualquer licenciamento ou de intervenção de técnicos qualificados. 

Resulta assim a dimensão do parque habitacional que, pela evolução demográfica, nos indica que os fogos existentes são mais que suficientes para as necessidades de habitação. No entanto, pelo atrás exposto, este diagnóstico carece de melhor caracterização, ponderando o estado do edificado existente, penalizado, quer pela qualidade de construção original, quer pela generalizada e recorrente falta de manutenção. Importa ainda ter em atenção a sua distribuição geográfica, nem sempre convergente com a localização da procura.

Cabe ainda avaliar as marcas do descontrole patente em áreas centrais expectantes e periferias saturadas, que obrigam hoje ao processo inverso de "encaixar" infraestruturas e equipamentos nas condições mais adversas para os seus requisitos funcionais em extensas zonas urbanas completamente ocupadas. 

Por trás da consolidação dos desequilíbrios de tais habitats, está sempre o primado da propriedade do solo, não pelo apego aos sítios mas pelo máximo valor de mercado, onerando de forma insustentável os recursos disponíveis para a desejável reconversão.

No entanto, nestas áreas, o "mercado" da habitação disponível, seja ele informal, ou formal a partir das frágeis condições de legalização, ascende a valores inacessíveis para a grande maioria da população trabalhadora e, mesmo assim, com fatores de conforto, segurança e salubridade distantes das normativas hoje admitidas como fundamentais para uma habitação digna.

As dinâmicas necessárias

É o estado do parque habitacional que temos que devemos confrontar com o conceito de habitação que a Constituição da República Portuguesa (CRP) associa como um direito de todos. Tal conceito comporta as qualidades definidas no texto constitucional: dimensão adequada, condições de higiene e conforto e de preservação da intimidade pessoal e privacidade familiar.

Ao garantir o direito, convoca a necessidade de definição dos mecanismos necessários para aceder ao mesmo. Tal está remetido para a política do Estado vinculado à mobilização e rentabilização de recursos que possam superar a não adesão dos particulares à criação de habitação a custo ou a arrendamento acessível. Em tais recursos importa garantir, à partida, a disponibilidade de solos capazes de permitir operações de edificação pública, capazes de garantir condições de acesso à habitação com valores não especulativos, particularmente onde a especulação imobiliária dos solos mais se faz sentir, ao invés da alienação sistemática do património do Estado, com os ingredientes de atribuição de capacidade urbanística mais apetecível.

Mais que construir nova habitação, importa conter a expulsão da população residente nas áreas urbanas consolidadas

Impõe-se assim:

Suster o processo de degradação do parque habitacional, particularmente no parque habitacional privado existente, nas zonas urbanas consolidadas, com a contenção da especulação imobiliária proporcionada pela sistemática oportunidade de ampliação, com a associada expulsão da população residente;

Programar a reabilitação urgente e exemplar do parque habitacional público, quer do edificado, quer dos espaços públicos e das infraestruturas, quer ainda dos equipamentos, em ordem a criar condições a uma sustentável manutenção regular futura com encargos programáveis;

Conter a sistemática alienação do património do Estado, responsável pela delapidação de recursos essenciais à resolução dos défices de infraestruturas, equipamentos e espaços verdes, mas também de oferta pública de habitação, quer na modalidade imprescindível de regime de renda apoiada, quer em modalidades de renda condicionada;

Retomar os instrumentos legais capazes de permitir vincular as operações urbanísticas privadas à afetação de parte de capacidade das mesmas a critérios de construção a custos controlados e sujeição de regimes de arrendamento condicionado.

Conferir à figura de Plano de Pormenor as condições privilegiadas da intervenção eficaz dos municípios na efetiva programação dos processos de reabilitação, colmatação ou expansão urbana, assegurando recursos perenes de resposta às carências de habitação acessível, por gestão própria ou contratualização com o sector cooperativo.

  • Assuntos e Sectores Sociais
  • Central
  • Habitação