Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral

A União Europeia e a Presidência Portuguesa

Camaradas:

O Primeiro-ministro José Sócrates, confirmou no debate de apresentação do Programa da Presidência portuguesa da União Europeia o que há muito se previa e anunciava – os grandes problemas que afectam a vida dos povos da Europa e do nosso país não encontram resposta na agenda da Presidência portuguesa, nem na dos principais responsáveis pela actual condução das políticas europeias.

Apresentando como a prioridade das prioridades a imediata concretização de um novo Tratado que reponha o essencial do recusado Tratado Constitucional, a Presidência portuguesa do Conselho da União Europeia não só deixou na penumbra, quando não omitiu, o combate ao desemprego, à precariedade, às desigualdades sociais e regionais, à pobreza e à exclusão, como deixou de fora de qualquer consideração e preocupação os problemas, cada vez mais agudos, dos países economicamente mais débeis, como é o caso de Portugal.

Confirmando os propósitos do que explicitamente se afirma no Programa da Presidência portuguesa sobre a denominada “flexigurança”, assistimos no mesmo dia da apresentação desse Programa ao anúncio de um detalhado rol de propostas de revisão do Código de Trabalho português que o governo levou ao Conselho de Concertação Social para, entre outras, liberalizar os despedimentos e os horários de trabalho, diminuir os dias de férias e ajustar os salários às oscilações do mercado.

O governo do PS e a Presidência portuguesa em vez de afirmar a necessidade de políticas para a criação de emprego com direitos, de valorização dos salários, de promoção e efectivo respeito e aplicação dos direitos sindicais, de diminuição do tempo de trabalho e da idade de reforma, de reforço dos sistemas públicos de segurança social e melhoria das prestações sociais e das reformas, faz precisamente o contrário.

A prometida revisão do Código de Trabalho das malfeitorias do governo do PSD de Durão Barroso e do CDS de Bagão Félix, transformou-se com o presente governo do PS de José Sócrates na tentativa da mais desprezível manobra de destruição de direitos laborais dos trabalhadores portugueses.

Como é possível que o Governo PS queira ir mais longe e mais à direita que a direita?
Se havia dúvidas acerca da justeza dos objectivos da Greve Geral do passado dia 30 de Maio, eles estão aqui bem presentes nesta declaração de guerra do Governo do PS aos trabalhadores portugueses.

Se a luta se impôs no passado, com acrescidas razões se impõe retomar e ampliar no presente perante tão claros propósitos de esmagar e destruir elementares direitos dos trabalhadores.

Os trabalhadores portugueses têm razão para estar preocupados com a transposição para Portugal da dita “flexigurança” e nós temos confiança que sua força, a sua vontade, a sua determinação e sua luta podem conter este novo e inqualificável assalto, vindo de quem vem e se diz da esquerda, contra o que é essencial no direito laboral português e a matriz laboral da Constituição da República.

Camaradas:

Não esperámos pela véspera da Presidência portuguesa para tornar pública a nossa posição sobre o que deviam ser os seus objectivos e aspectos essenciais do seu Programa.

Em devido tempo os apresentámos como um contributo para uma presidência empenhada e preocupada com a solução de alguns dos grandes problemas económico-sociais.
 
Fizemo-lo no Encontro nacional sobre os 20 anos de adesão de Portugal à CEE/UE, iniciativa impar no panorama partidário português, realizada em Dezembro de 2006.

Fizemo-lo com a apresentação de um o projecto de Resolução na Assembleia da República com um conjunto de propostas de prioridades para a Presidência portuguesa, logo no início deste ano de 2007.

Eram propostas que exigiam uma mudança de política, um novo rumo nas políticas europeias. São propostas que mantém toda a actualidade e que a Presidência portuguesa devia considerar se houvesse vontade política.

Nós pensávamos e pensamos que este era o momento oportuno, a grande oportunidade para que o Governo português introduzisse na agenda da União Europeia um conjunto de temas de grande importância para o nosso presente e futuro colectivo e que, sendo relevantes para Portugal, sê-lo-iam seguramente para todos os povos e países que participam a União Europeia.

Considerámos e consideramos que este seria o momento oportuno para colocar e exigir a revisão do Estatuto e dos objectivos do Banco Central Europeu garantindo que a sua acção esteja sobre controlo político dos Estados-membros e passe a estar subordinada aos objectivos do desenvolvimento económico e do emprego.
Este seria o momento próprio para colocar a exigência de uma profunda revisão do Pacto de Estabilidade, em prol de políticas de investimento público reprodutivo e de desenvolvimento dos sectores públicos, de apoio às pequenas e médias empresas, de desenvolvimento dos sectores produtivos em cada país, de promoção do emprego com direitos e do crescimento dos salários e melhoria das condições de vida das populações.

Esta necessidade é tão mais premente quando Portugal foi o país mais prejudicado com o alargamento e um dos mais negativamente atingidos com a política do Banco Central e com as orientações do Pacto de Estabilidade. Tal como é tão mais pertinente colocar neste momento estas exigências quando se vai realizar uma Conferência Intergovernamental para a reforma dos tratados.

Este é também o momento de colocar a necessidade de profundas reformas na Política Agrícola Comum, no sentido de corrigir as desigualdades na distribuição dos meios financeiros entre países, culturas e agricultores, invertendo a situação actual que prejudica os países do Sul, as culturas mediterrânicas e a agricultura familiar.

Assim como para rejeitar claramente as propostas de modificação das Organizações Comuns de Mercado do Vinho ou do Leite que levem a uma maior liberalização da sua produção e comércio, defendendo, pelo contrário, o reforço do apoio orçamental a essas produções, a defesa da sua qualidade e a pequena e média agricultura e o mundo rural.

Esta seria a oportunidade para colocar a necessidade de uma outra Política Comum de Pescas, que revertesse o continuo declínio deste sector estratégico para o país, reforçando os meios financeiros comunitários e utilizando-os para que o sector ultrapasse a profunda crise socio-económica com que se confronta.

Esta seria uma ocasião privilegiada para colocar a exigência da defesa e promoção dos serviços públicos, logo, a salvaguarda da propriedade pública de sectores ou áreas tão importantes, de que são exemplo, a energia, os transportes, as telecomunicações, a saúde, o ensino, assim como da valorização e modernização da administração pública que tem a responsabilidade de os prestar.

Naturalmente, tal pressupõe a exigência do fim das políticas liberalizadoras e privatizadoras promovidas ao nível de toda a União Europeia, veja-se a recente directiva de liberalização dos serviços, dita "Bolkesstein", que amarram e submetem cada vez mais Portugal ao domínio de interesses que são alheios e contrários aos interesses dos trabalhadores e do País.

Ou colocar a necessidade da adopção de medidas que combatam as deslocalizações de empresas, com as suas gravíssimas consequências para os trabalhadores e suas famílias e para a situação socio-económica de muitas localidades e regiões do País.

Como "país da coesão" e tendo em conta o "4º Relatório intercalar sobre a coesão" recentemente divulgado, o Governo português devia impulsionar um sério debate que colocasse a convergência real económica e social no cerne do debate ao nível da União Europeia, colocando como objectivo central do orçamento comunitário o seu papel redistributivo, contrariando a subordinação das políticas comunitárias, nomeadamente as estruturais, aos objectivos da agenda neoliberal da Estratégia de Lisboa.

Esta seria a ocasião para avançar com propostas de políticas e medidas que contribuíssem para dar resposta aos constrangimentos permanentes a que estão sujeitas as regiões ultraperiféricas.

E, tendo em conta o actual debate em torno de uma futura política marítima da União Europeia, consideramos que é o momento de afirmar a soberania sobre as zonas económicas exclusivas e, igualmente, a definição de salvaguardas e primazias relativamente ao usufruto económico, incluindo os recursos e matérias primas aí localizadas, à segurança, salvamento e fiscalização da navegação marítima.

Este seria igualmente o momento para a afirmação de uma política externa autónoma e independente de Portugal face ao imperialismo, nomeadamente face às grandes potências da União Europeia, que contribuísse para denunciar os reais propósitos, demarcando-se, da instalação de novas bases e instalações militares dos EUA na Europa e pôr fim à agressão e ocupação da Palestina, do Iraque ou do Afeganistão.

Uma política externa que rejeita a militarização das relações internacionais e a corrida aos armamentos e que promova o desanuviamento e a resolução pacífica dos conflitos internacionais, a eliminação das armas nucleares e o lançamento de um processo de desarmamento multilateral.

Uma política de paz e cooperação, nomeadamente com África, que rejeitando a ingerência e baseada no respeito mútuo, combata efectivamente e eficazmente a fome, a miséria e a doença e promova o desenvolvimento de cada país.

Esta seria uma oportunidade para afirmar a importância da defesa da soberania de cada povo e da independência nacional, condição imprescindível para a democracia e para a concretização de um projecto de desenvolvimento que corresponda aos anseios, necessidades e reais problemas com que se confrontam os trabalhadores em cada país.

A Presidência portuguesa deveria ser uma excelente oportunidade para colocar em evidência as profundas contradições da União Europeia, entre as suas orientações e políticas e os interesses dos trabalhadores e dos povos dos seus diferentes países.

Mas essa não é claramente a opção do Governo do PS.

Tal como em 1992, com a reforma da Política Agrícola Comum, e em 2000, com a denominada Estratégia de Lisboa e a consolidação do Euro, o Governo português prepara-se para concretizar a agenda das grandes potências e do grande capital, como adjunto de serviço.

Desde logo, hipotecando a Presidência portuguesa à concretização a todo o custo da proposta de tratado, dizem, até Outubro, para o qual já tem um mandato "claro e preciso", como é afirmado até à exaustão pelos seus autores e mentores.

O mandato para a nova Conferência Intergovernamental para a reforma dos tratados, definido sob a batuta da Presidência alemã, confirma o que há muito vimos a denunciar, ou seja, que aqueles que nunca aceitaram os resultados dos referendos realizados em França e na Holanda, que rejeitaram o conteúdo da denominada "constituição europeia", começaram, nesse preciso momento, a congeminar a forma de contornar a vontade soberanamente expressa por esses dois povos.

O que descaradamente pretendem desde então é a recuperação do essencial do conteúdo do tratado rejeitado, pondo de parte o seu "carácter constitucional" – com o abandono de alguma terminologia e da alusão aos símbolos –, e travestindo-o de "tratado reformador", para melhor disfarçar a astúcia e ultrapassar as dificuldades e contradições, colocadas principalmente por alguns daqueles que, comprometidos com a realização de referendos, agora os procuram evitar.

Aliás, o conteúdo do mandato fala por si.

Para chegar facilmente à conclusão de que nesse mandato está desde já assegurada a "preservação da substância" da dita "constituição europeia", bastaria contar as referências à introdução no novo tratado das ditas "inovações dos resultados da CIG de 2004". Mas salientemos, embora de forma não exaustiva, alguns aspectos do seu conteúdo:

- A União Europeia passa a ter personalidade jurídica, sendo superada a estrutura de divisão por pilares;

- São ampliadas as competências da União Europeia, com particular significado na área da justiça e assuntos internos;

- È ampliado o campo de aplicação da adopção de decisões por maioria qualificada e do processo de decisão por co-decisão, num quadro em que se reforça o poder das grandes potencias no processo de decisão da União Europeia;

- È alterada a ponderação de votos no Conselho, mesmo que esta só venha a estar plenamente em vigor em 2017 (o tempo o dirá), reforçando o domínio das grandes potências no processo de decisão;

- É alterada a composição da Comissão Europeia, colocando fim ao princípio da representação de um comissário permanente por país com direito a voto e reforçando-se os poderes do seu presidente;

- É perspectivada a alteração da composição do Parlamento Europeu, passando Portugal de 24 para 22 deputados já em 2009, podendo vir a perder ainda mais no futuro;

- Termina o sistema de presidências semestrais do Conselho Europeu, sendo eleito um presidente por maioria qualificada e institucionalizando-se este órgão;

- É criado o "Alto representante da União para os negócios estrangeiros e a política de segurança", sendo apoiado por um "serviço europeu para a acção externa";

- É institucionalizada a militarização da União Europeia, através da denominada "cooperação estruturada no domínio da defesa";

- É integrada com valor juridicamente vinculativo a denominada "Carta dos Direitos Fundamentais";

Com estas ditas "inovações" Portugal vê ainda mais manietada a sua soberania e perde peso no processo de decisão ao mesmo tempo que as grandes potências o reforçam, com especial destaque para a Alemanha, a principal paladina deste tratado.

Com estas propostas, retomadas da dita "constituição europeia", o processo de integração capitalista na Europa – neoliberal, federalista e militarista - dará um novo e significativo salto qualitativo, que só não ganhou outros contornos devido à luta e resistência dos povos.

Com este mandato a confederação do grande patronato europeu regozija, saudando a "notável liderança " de Merkel que assegurou todo o seu caderno de encargos.

No entanto, convenientemente, e como de costume, são aditadas algumas questões que não têm outro objectivo senão procurar desviar a atenção do fundamental, o que merecem algumas considerações.

- É o que se passa em torno da "concorrência livre e não falseada" que estava inserida nos objectivos da União Europeia previstos pela "constituição europeia" e que agora passa a estar reafirmada em protocolo anexo ao tratado, o que lhe confere o mesmo valor jurídico.

- Ou quanto ao apontado reforço do papel dos parlamentos nacionais no processo de decisão, escamoteando-se que estes perdem mais do que ganham, tendo em conta uma maior transferência de competências, ou melhor, perda de competências para a União Europeia.

- Ou relativamente à "Carta dos Direitos Fundamentais", onde se escamoteia que quando comparada com outras convenções e normas de direitos internacionais ou com a Constituição da República Portuguesa representa um retrocesso em muitos direitos.

- Seja o caso da referência aos denominados "serviços de interesse geral", "económicos" ou "não económicos", em que é dado poder discricionário ao Tribunal de Justiça Europeu, quanto à sua definição e se avança no concreto os processos de liberalização, como é referido nas conclusões do último Conselho Europeu relativamente aos serviços postais.

- Ou ainda quanto à não inclusão no dito novo tratado do artigo inscrito na dita "constituição europeia" quanto à primazia do direito adoptado pela União Europeia sobre o dos seus Estados-Membros, sendo tal inaceitável princípio sido agora reafirmado apenas numa declaração anexa.

Recorde-se que, mais papistas que o papa e de forma subserviente, PS, PSD e CDS inscreveram tal principio na revisão à Constituição da República Portuguesa, realizada em 2004.

Este é o resumo abreviado do compromisso alcançado no último Conselho Europeu, espelhado no mandato aí adoptado para a Conferência Intergovernamental, que tem como objectivo concretizar a recuperação do conteúdo essencial do tratado anteriormente rejeitado, procurando reescrevê-lo de forma a fugir, de forma concertada e amplamente anunciada, à realização de referendos.

Aqueles que repetem até à exaustão que a nova proposta de tratado está impregnada de democracia, são, afinal, os mesmos que, e mais uma vez, congeminam a forma de fugir a sete pés à realização de referendos nacionais e vinculativos, o que é tanto mais grave, quando se trata da recuperação do salto qualitativo no projecto federalista, neoliberal e militarista consubstanciado na rejeitada "constituição europeia".

Ou seja, para além da tentativa de recuperação do essencial de um tratado rejeitado por dois referendos nacionais, procuram agora impor o essencial do seu conteúdo, pretendendo evitar a realização de novos referendos nacionais. Um processo duplamente inaceitável!

A anunciada intenção de evitar a realização de referendos representa, no fundo, um sinal de fraqueza.

Os que estão desde sempre na génese da integração capitalista europeia, os grandes interesses financeiros e económicos e as forças políticas que os representam, temem a possibilidade de um povo voltar a rejeitar os seus propósitos federalistas, de centralização do poder e de domínio, neoliberais, de exploração e concentração da riqueza, e militaristas, de ingerência e agressão militar.

Como coerentemente temos vindo a defender, consideramos inaceitável qualquer avanço para este novo tratado, sem que seja realizada uma consulta ao povo português em referendo vinculativo. Não vai longe um Governo que receia a opinião esclarecida do seu povo!

E não venha José Sócrates iludir os portugueses relativamente a esta questão, o que já se conhece quanto ao acordo alcançado relativamente ao conteúdo do novo tratado, justificaria, por si só, que o Governo português tivesse a iniciativa de propor a realização de um grande, esclarecedor e plural debate nacional, sobre as suas profundas consequências e tão grandes implicações para a soberania e independência nacional, para o futuro do povo português, com vista à realização de uma consulta popular juridicamente vinculativa.

Face a estes desenvolvimentos coloca-se a necessidade de esclarecer e consciencializar os trabalhadores e povo português para estes novos perigos e ameaças, mobilizando todos os democratas e patriotas para a criação de uma dinâmica que coloque como exigência a consulta ao povo português e para a necessidade de assegurar e construir um Portugal com futuro e outro rumo para a Europa.

Exige o reforço das mobilizações e das lutas dos trabalhadores e dos povos e a convergência das forças do progresso na Europa, com a convicção de que o maior contributo do povo português para uma Europa de cooperação entre estados soberanos e iguais em direitos, de progresso económico e social, de paz e amizade com todos os povos do mundo é a retoma e concretização do projecto de desenvolvimento democrático iniciado na Revolução de Abril.

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