Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral, Habitação em Portugal, hoje – A visão e as propostas do PCP

A habitação em Portugal

Esta iniciativa que realizámos sobre a complexa problemática da habitação em Portugal nos dias de hoje, insere-se no quadro da preparação da nossa Conferência Nacional sobre Questões Económicas e Sociais, que levaremos a cabo dentro de menos de duas semanas, nos próximos dias 24 e 25 de Novembro.

Gostaria neste momento do nosso calendário de preparação da Conferência de recordar que, até ao momento, já realizámos um vasto conjunto de iniciativas preparatórias, de que gostaria de destacar entre outras, pela sua importância, as realizadas sobre Agricultura, Pescas, Indústria Extractiva e Indústria Transformadora, Energia, Transportes e Logística, Telecomunicações, Ciência e Tecnologia, Emprego e Desemprego para além do Encontro Nacional sobre os 20 anos de adesão de Portugal à CEE, ainda realizado no final do ano passado.

Trata-se de um conjunto muito amplo e diversificado de temáticas que prosseguem e actualizam um sistemático, rigoroso e patriótico trabalho do nosso Partido ao longo de muitos anos na análise das questões económicas e sociais, e que constituem os alicerces mais recentes e mais sólidos daquilo que será a nossa Conferência Nacional.

De alguma forma, sendo um momento importante da nossa acção política nestes domínios, a Conferência é, tão-somente, o culminar de um trabalho quase permanente do nosso Partido, das nossas organizações, dos nossos militantes, mas também de muitos especialistas nossos amigos que connosco têm trabalhado, partilhando as suas experiências e conhecimentos e enriquecendo as nossas propostas.

A questão da habitação, com todo um complexo conjunto de contornos e dimensões, designadamente nos planos político, social, económico, financeiro, orçamental e urbanístico, tem constituído nos últimos anos uma das mais claras expressões da política de classe dos sucessivos governos do PS e do PSD com ou sem outros arranjos partidários. Obviamente que não se trata de nenhuma excepção, mas de qualquer forma estamos perante um exemplo paradigmático de tais políticas.

Política de classe dos governos, concretizada pelo grande capital financeiro e das grandes empresas de construção civil, nas suas múltiplas, variadas e complexas conexões, política que, simultaneamente, não responde às necessidades de habitação dos portugueses, particularmente daquelas classes e camadas sociais que são numericamente dominantes na sociedade, ao mesmo tempo que promove brutais excedentes de habitação (e também escritórios) que se encontram vagos, deixa degradar um número incalculável de fogos, muitos deles com características e interesse histórico, promove o endividamento das famílias e aumenta a nossa dependência financeira face ao exterior.

Políticas e orientações que são identificáveis na legislação sobre reabilitação urbana destinada a favorecer a intervenção do capital financeiro e mobiliário, abrindo-lhe uma nova janela de negócio e lucro, esgotada que quase está a construção para venda nas periferias. Simultaneamente, não cria condições para o ressurgimento e dinamização do mercado de arrendamento e não responde aos graves problemas financeiros de imensos inquilinos como também de muitos senhorios.

Trata-se de uma prática prosseguida de forma persistente, que transformou aquilo que deveria ser uma política de habitação, numa coutada de negócios do grande capital, particularmente na sua componente associada ao crédito bancário.

As intervenções que hoje foram sendo aqui apresentadas e o debate que se lhes seguiu demonstraram muito bem estes e outros factos de enorme relevância. De entre eles, julgamos justo e oportuno destacar pelo menos os seguintes:

- Primeiro, demonstraram que, também na área da habitação, os sucessivos governos desrespeitaram frontalmente os preceitos constitucionais aplicáveis, prosseguindo políticas completamente inversas às propostas pelo texto constitucional.

- Segundo, demonstraram igualmente que o Estado se demitiu completamente de uma intervenção activa, designadamente enquanto promotor de habitação, transformando-se a política do Estado na política de crédito dos grupos financeiros nacionais e estrangeiros.

- Terceiro, demonstraram que há necessidade de quase 200 mil fogos, para responder a situações de graves e muito graves carências qualitativas das actuais habitações de uma parte das famílias portuguesas, particularmente as de mais baixos rendimentos.

- Quarto, demonstraram também que existem actualmente cerca de 650 mil fogos devolutos, correspondentes a imensos fogos novos por vender e a fogos antigos desabitados, muitos deles em situação de grande degradação e, destes todos, só se encontram à venda cerca de 180 mil, constituindo os restantes cerca de 450 mil, como que “uma reserva estratégica” do capital.

- Quinto, demonstraram ainda que a taxa de reabilitação de fogos degradados é baixíssima, quer em termos absolutos, quer em termos relativos, sobretudo quando comparados com as médias europeias que são 4 a 5 vezes superiores às nossas. Situação agravada pelo facto de, ainda por cima, se tratar de países bem mais ricos que Portugal, os quais não desperdiçam os seus meios financeiros em construção nova e cuidam do parque habitacional mais antigo.

- Sexto, demonstraram também que as famílias portuguesas já têm níveis de endividamento superiores a 124% do seu rendimento, a parte muito significativa das quais resulta do esforço financeiro associado à aquisição de habitação.

- Sétimo, demonstraram ainda que os apoios públicos para aquisição de habitação, no fundamental, foram parar aos cofres dos bancos e das construtoras.

- Oitavo, também demonstraram que o sector da construção civil, a montante da promoção imobiliária, tem tido, pelo menos desde meados da década de 90 e até 2002, um empolado crescimento e que se expressa hoje num processo de brutal redução da produção, com um cortejo de falências e de despedimentos. Processo que está longe do seu término.

- Nono, demonstraram igualmente que esta sobreprodução na construção de habitação teve reflexos no necessário investimento noutros importantes e decisivos sectores que acabaram secundarizados com as inevitáveis consequências no disparar do desequilíbrio da nossa balança corrente bem como da continuidade do nosso perfil de especialização.

- Finalmente, ainda demonstraram que o capital estrangeiro está a tomar posse de importantes escalões da cadeia de valor na área da habitação, nomeadamente no que respeita à intermediação imobiliária.

Estes, alguns traços do diagnóstico que foi feito pelos diversos intervenientes durante esta tarde.

Mas mais do que diagnósticos, o que precisamos é de orientações políticas claras, que invertam completamente a actual situação e respondam inequivocamente aos quesitos constitucionais para a habitação.

Julgamos oportuno recordar aqui, mesmo que muito sumariamente, as nossas posições estratégicas concernentes à habitação e constantes do nosso Programa – Portugal: uma democracia avançada no limiar do século XXI – aprovado no XIV Congresso em 1992. Aí afirmávamos que “…o direito à habitação deve concretizar-se pela garantia aos cidadãos e famílias de residência que satisfaça as suas necessidades e assegure o seu bem-estar, privacidade e qualidade de vida…”.

Aí são referidas orientações diversas, como a existência de uma política de solos e de ordenamento do território, pela promoção pública de vastos programas de habitação, pela conjugação da acção de promotores públicos, privados e cooperativos, pelo incentivo à recuperação dos centros históricos e pela promoção do mercado de arrendamento, entre outras.

Nos dias de hoje, entendemos necessário e urgente concretizar pelo menos as orientações que seguidamente apresentaremos e que são parte da nossa Política de Habitação, política que actualizámos no quadro da preparação da Conferência. Trata-se, também, obviamente, de medidas apresentando uma profunda ligação orgânica.

Assim teremos:

- Elaboração, enquanto objectivo estratégico, de uma nova política de solos, que assuma como eminentemente públicas, as competências do ordenamento do território e do urbanismo; só esta nova política permitirá combater no início do processo de criação de renda fundiária a brutal especulação que domina o sector.

- Promover políticas que criem condições para obtenção de solo público municipal, a gerir no regime de direito de superfície, assumindo-se o princípio de que só em situações especiais o solo público poderá ser alienado em direito pleno.

- Obrigar a que todos os processos de licenciamento de médias ou grandes urbanizações obedeçam a uma efectiva e rigorosa programação do uso do solo urbano previsto em sede de PDM; não licenciar para além do comprovadamente necessário à reposição do parque habitacional demolido, devido à impossibilidade da sua recuperação, à necessidade de resposta ao crescimento demográfico ou migrante e à necessidade de responder a novas ofertas de emprego.

- Retomar e reforçar o papel do Estado, nos seus diferentes níveis de intervenção, enquanto directo promotor de habitação, em patamares significativos e crescentes, para os segmentos médio e médio-baixo do mercado de habitação, particularmente na vertente arrendamento.

- Reformular a legislação da renda apoiada de molde a que a taxa de esforço exigida seja suportável pelas famílias de mais baixos recursos, em especial de reformados e idosos. Como aliás decorre de uma iniciativa legislativa do PCP já presente na Assembleia da República.

- Retomar programas habitacionais de custos e preços controlados e reposicionar as cooperativas de habitação económica para este tipo de programas.

- Criar condições legislativas, financeiras, fiscais, urbanísticas e outras, para acelerar fortemente a reabilitação e renovação da habitação degradada, particularmente das grandes cidades, com especial ênfase nas zonas históricas, com respeito pelas suas características urbanísticas e assegurando a permanência das populações aí residentes e das actividades económicas.

- Desenvolver, sobretudo através de entidades públicas ou com privados no quadro de contratos-programa, programas especiais de habitação, com vista à revitalização das zonas históricas das grandes cidades, particularmente com camadas jovens e dominantemente em regime de arrendamento.

- Criar condições legislativas e orçamentais para um desenvolvimento significativo e sustentado do mercado de arrendamento, seja por via privada, seja por via pública.

- Sem esquecer todas as contradições, erros e injustiças sociais decorrentes do programa PER, deverão ser criadas condições para a célere conclusão do mesmo naqueles municípios onde ainda estejam inacabados; serão de corrigir, sem contudo lhe alterar o âmbito e dimensão, as situações que resultem da desadequação face à realidade do inquérito que lhe deu origem, datado de 1993.

- Criar urgentemente as condições legislativas, designadamente nos domínios fiscal e urbanístico, que permitam atenuar e eliminar o grave problema urbanístico, social, económico e financeiro criado com os mais de 550 mil fogos devolutos, articulando esta acção, sempre que possível, com os programas de realojamento.

- No quadro do actual processo de excessivo endividamento das famílias e de sistemático aumento das taxas de juro, o governo português e as autoridades monetárias nacionais não só não podem continuar a anuir à actual política monetária do Banco Central Europeu, como se impõe, cada vez mais, afirmar a necessidade de uma política monetária alternativa. Travar a subida das taxas de juro é hoje um imperativo de uma política dirigida ao combate à degradação crescente dos rendimentos das famílias e à promoção do crescimento económico. Adicionalmente, disciplinar a propaganda profundamente agressiva e muitas vezes enganosa promovida pelos bancos junto da população, com vista a aquisição de casa própria.

- Tornar consequentes, céleres e de competência orçamental restrita dos ministérios que tutelam a habitação, os apoios sociais ao arrendamento, por parte de famílias de menores recursos. Neste âmbito, o PCP acaba de apresentar para incluir no Orçamento de Estado para 2008, uma proposta de duplicação do actual valor destinado a apoiar o arrendamento urbano, no qual se incluem os apoios ao arrendamento jovem.

- Aumentar de forma muito significativa a investigação e o desenvolvimento tecnológico na área da construção civil, com vista a aumentar simultaneamente a produtividade dos processos construtivos e a qualidade da construção, com vista, designadamente, ao abaixamento de preço da construção.

- Tornar mais céleres os processos de licenciamento em todos os níveis de decisão, com vista a reduzir os custos ditos administrativos.

- Relançar um Plano Nacional de Habitação, no qual o Estado assuma a responsabilidade de atribuir a cada família residente no nosso país, uma residência compatível com o rendimento do seu agregado familiar, não ultrapassando o valor do arrendamento 15 % do rendimento líquido mensal médio do agregado familiar.

Eis aqui a essência da nossa política habitacional, bem como algumas das propostas que lhe servem de suporte. Propostas sérias, alicerçadas e que defendem o equilíbrio da economia e das finanças nacionais, a par dos interesses de amplas classes e camadas do povo português.

Contudo, mais uma vez, propostas que só são concretizáveis no quadro de uma outra orientação política geral para o país, opção política que rompa definitivamente com um conjunto de orientações que estão a arrastar o país para o abismo e que só interessam ao grande capital nacional e internacional.

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