Intervenção de Eugénio Rosa, Economista, Sessão Pública «Por uma política fiscal ao serviço do povo e do País»

Uma sistema fiscal de classe que agrava desigualdades, favorecendo o capital e prejudicando o trabalho, e não respeita a Constituição da República

Uma sistema fiscal de classe que agrava desigualdades, favorecendo o capital e prejudicando o trabalho, e não respeita a Constituição da República

A repartição primária do rendimento entre o Trabalho e o Capital em Portugal é cada vez mais desfavorável ao Trabalho. Em 2008, os “Ordenados e salários” representavam 36,6% do PIB e, em 2016, essa percentagem tinha diminuído para apenas 34,2%, enquanto o Excedente Bruto de Exploração, de que se apropriam as empresas, aumentou, no mesmo período, de 40,6% do PIB para 42,8% do PIB.

Se analisarmos a evolução da parte dos “Ordenados e salários” no Rendimento Nacional Bruto chegamos à mesma conclusão. Entre 2008 e 2016, a parte de “ordenados e salários” no Rendimento Nacional Bruto diminuiu de 38,8% para apenas 34,4%. Mesmo em 2016, em que houve uma certa recuperação dos rendimentos, a parte de salários no RNB desceu de 35,1% para 34,9%. E isto apesar dos trabalhadores por conta de outrem representarem 82,7% da população empregada, enquanto os patrões, que empregam trabalho assalariado, representarem apenas 4,8%.

Portanto, os trabalhadores embora constituem a esmagadora maioria da população produtiva do país, recebem uma parte cada vez mais reduzida da riqueza que criam

Os rendimentos resultantes desta repartição primária do rendimento ainda não são aqueles que são recebidos pelas diferentes classes sociais. Esta repartição primaria ainda é sujeita a uma segunda que resulta do sistema fiscal.

Segundo o nº1 do artº 103º da CR , “ O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas, e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza”. No entanto, esta 2ª parte do preceito constitucional tem sido violada de uma forma continua.

O que tem acontecido é o que o sistema fiscal português, contrariamente ao que dispõe a Constituição da República, no lugar de contribuir para uma repartição mais justa dos rendimentos e da riqueza, tem sido um instrumento utilizado para agravar ainda a repartição primária dos rendimentos, penalizando as classes de menores rendimentos, e protegendo e favorecendo os mais ricos.

A prova-lo está a própria estrutura das receitas fiscais. Podemos dividir os impostos em dois grandes grupos. Um primeiro, constituído pelos Impostos Indiretos que são, em principio, muito mais injustos porque não atendem ao rendimento do contribuinte. Paga-se o mesmo valor de imposto, seja-se pobre ou rico, quando se adquire um bem ou um serviço. E um segundo, constituído pelos Impostos diretos, que são teoricamente mais justos porque o imposto depende do rendimento: quanto maior é este mais imposto se paga.

Em Portugal, por cada 100€ de receitas fiscais, em 2012 57,4€ tinham como origem impostos indiretos; portanto, impostos mais injustos; em 2013 esse valor desceu para 52,7€ devido ao enorme aumento do IRS, mas rapidamente recuperou. Em 2015 esse valor aumentou para 53€ e, em 2017, a previsão é de que 56,1€ em cada 100€ de receitas fiscais tenha como origem os impostos indiretos. E certamente mais de 70% das receitas de impostos indiretos são pagas pelas classes médias e baixas da população, incluindo os trabalhadores.

Em relação aos impostos diretos que teoricamente são mais justos, porque atendem ao rendimento do contribuinte – paga mais quem aufere mais – a situação é também de grave injustiça. E vamos explicar as razões.

Os impostos diretos são fundamentalmente o IRS e o IRC; em conjunto, representam cerca de 97% das suas receitas totais dos Impostos diretos. No entanto, o IRS contribui com 68,4% do total, ou seja, com 2,4 vezes mais do que a contribuição do IRC, que incide, sobre as empresas e que representa apenas 29% das receitas totais dos impostos diretos.

Assim, por cada 100€ de receitas de impostos diretos arrecadados em 2012, 66,5€ tinham como origem o IRS, e apenas 31,6€ o IRC; em 2013, a receita de IRS aumentou para 72,8€ e a de IRC baixou para 27,2€; e, em 2017, a previsão é que por cada 100€ de receita de impostos diretos, 68,4€ tenha como origem o IRS e apenas 29€ o IRC; portanto, a maior parte da receita de impostos diretos tem como origem o IRS.

E, segundo dados divulgados pela Autoridade Tributária, do Ministério das Finanças, em 2015, último ano em que existem dados disponíveis, 92,2% dos 82.475 milhões € de rendimentos declarados para efeitos de IRS eram rendimentos do Trabalho e pensões. Os rendimentos do Capital, de Propriedade e Mais-valias representavam apenas 2,8% do total dos rendimentos declarados para efeitos de IRS nesse ano; portanto, os rendimentos do Capital e da Propriedade fogem em larga escala ao pagamento do IRS, apesar deste imposto ser um imposto único sobre o rendimento. E a situação atual não é diferente.

Por outro lado, se comparamos as taxas a que estão sujeitos os rendimentos do Trabalho e as pensões com as que incidem sobre os rendimentos do Capital e da Propriedade, concluímos que as taxas máximas a que estão sujeitos os primeiros são consideravelmente superiores às que incidem sobre os segundos.

As taxas de IRS que incidem sobre os rendimentos do Trabalho e pensões variam entre 14,4% e 48%, enquanto as taxas a que estão sujeitos os lucros das empresas é de 21% a que acresce a derrama estadual, apenas para a parte do rendimento tributável superior 7,5 milhões€ que é uma taxa que varia entre 3% e 7% (os 7% só aplica à parte do lucro superior a 35 milhões€). A taxa máxima que incide sobre os rendimentos de Capital, Propriedade (rendas) e Mais-valias mobiliárias (especulação na bolsa) é 28%, ou seja, quase metade (58%) da taxa máxima que incide sobre os rendimentos do Trabalho. Por ex., um rendimento tributável do Trabalho entre 20.000€ e 40.000 está sujeita a uma taxa média de IRS de 30%, enquanto se a origem for uma mais-valia, resultante da especulação bolsista paga de IRS apenas 28% se for uma pessoa singular, mas se for uma empresa já paga apenas 21%. O sistema fiscal português penaliza os fortemente os rendimentos do trabalho, mas protege os rendimento do Capital e Propriedade, e promove a especulação mobiliária e imobiliária

No entanto, uma coisa são as taxas nominais referidas anteriormente, que são as que constam dos Códigos, e outra coisa bem diferente são as taxas reais que o Capital e Propriedade acabam por pagar. E estas são muito inferiores devido a inúmeras isenções e benefícios.

Em 2015 (são os últimos dados disponibilizados pela Administração Fiscal), o lucro das empresas constantes das Demonstrações Financeiras, ou seja, aquele que é distribuído aos acionistas, somou 32.214 milhões €. No entanto o lucro sujeito a IRC – a chamada matéria coletável – foi apenas 19.031 milhões €, o que significa que 13.183 milhões € de lucros não foram sujeitos a impostos devido a inúmeras isenções e benefícios fiscais. Como consequência a taxa real de IRC em 2015 foi apenas de 11,3%, portanto uma taxa muito inferior à taxa de 21%+7% que consta do Código do IRC. Portanto, tão ou ainda mais importante que as taxas são as isenções e benefícios fiscais que, devido à sua complexidade, passam despercebidos à opinião pública e não só, e que beneficiam fundamentalmente os grandes grupos económicos.

Estes lucros que pagam uma taxa real de IRC que é menos de metade da constante do Código do IRC, são depois distribuídos aos acionistas como dividendos. Se for um pequeno acionista tem de pagar 28% de IRS, mas se for um grande acionista transfere para o estrangeiro e não paga nada de imposto. A lei fiscal atual permite isso.

Durante o governo do PSD/CDS, foi introduzida no Código IRC uma norma importante designada por “Participação isenta” (“Participation exemption”) que determina elevados benefícios para os grandes acionistas, a qual não tem sido dada a devida importância.

Esta norma aprovada pelo governo do PSD/CDS (artº 14º, nº3 do Código de IRC) dispõe que “ estão isentos os lucros e reservas que uma entidade residente em território português coloque à disposição de uma entidade residente noutro Estado membro da União Europeia, ou num Estado membro do Espaço Económico Europeu que esteja vinculado a cooperação administrativa no domínio da fiscalidade equivalente à estabelecida no âmbito da União Europeia, ou num Estado com o qual tenha sido celebrada e se encontre em vigor convenção” … “desde que essa entidade residente no estrangeiro detenha direta ou indiretamente, uma participação não inferior a 10 % do capital social ou dos direitos de voto da entidade da empresas portuguesa e desde que seja de modo ininterrupto, durante o ano anterior à colocação à disposição”.

Por esta razão, a maior parte dos lucros distribuídos e transferidos para o estrangeiro (entre 2014 e Março de 2017, só os rendimentos de investimentos transferidos para o estrangeiro somaram 37.320 milhões € segundo o Banco de Portugal) estão isentos do pagamento de impostos em Portugal. Um pequeno acionista residente em Portugal, quando recebe dividendos paga 28% de imposto; mas se for um grande acionista com 10% ou mais do capital, cria uma empresa no estrangeiro transferido para elas as ações que possui (ex. Jerónimo Martins, Amorim na GALP, chineses na EDP e na REN, Isabel dos Santos na NOS, etc) e, através dela, recebe os dividendos sem ter de pagar imposto no nosso país. E depois no país para onde fez a transferência não paga também imposto porque há países da U.E. que isentam os rendimentos que não sejam gerados no próprio país, e que têm acordos com paraísos fiscais. Isto para além de ser imoral, determina uma concorrência desleal em relação às empresas portuguesas que não utilizam estes esquemas.

O sistema fiscal português enquanto favorece o Capital e a propriedade penaliza fortemente o Trabalho e os pensionistas. O que tem acontecido com a chamada “dedução especifica”, que tem passado despercebida a muita gente, prova isso.

Segundo o artº 25º do Código do IRS existe uma parcela dos rendimentos do trabalho, designada por “dedução especifica” (uma espécie de mínimo de existência), que não está sujeita a imposto. Até 2010, essa parte estava indexada ao Salário Mínimo Nacional (correspondia a 72% do SMN x 12). Em 2010, o governo de Sócrates desindexou-a e está com o valor de 4.104€ desde 2010, à “espera” que o IAS atinja o valor do Salário Mínimo Nacional de 2010 para depois ser atualizada de acordo com este. O congelamento desta dedução determina que todos os anos a carga fiscal sobre os trabalhadores e pensionistas aumente. Para concluir isso, basta ter presente o seguintes.

Se a dedução especifica tivesse continuada indexada ao Salario Mínimo Nacional, isso determinaria que, em 2017, o rendimento dos trabalhadores e dos pensionistas não sujeito a imposto não seria 4.104€ para cada um, como consta do Código do IRS, mas sim 4.812€. Isto determinaria que 1.116,8 milhões € de rendimentos dos trabalhadores e dos pensionistas, que estão atualmente sujeitos não estariam, e que trabalhadores e pensionistas pagassem, em 2017, menos 161,9 milhões € de IRS. E todos os anos este valor aumenta, porque o Salario Mínimo Nacional aumenta, aumentando a diferença.

Fica assim claro o carater profundamente injusto e de classe do sistema fiscal português, um sistema que penaliza os rendimentos do Trabalho e as pensões, que favorece os rendimentos do Capital e de Propriedade, e que promove a especulação mobiliária e imobiliária, já que a taxa que incide sobre as mais-valias é muito inferior às que incidem sobre os rendimentos do Trabalho e pensões, agravando ainda mais a desigualdade primária do rendimento em Portugal, e não respeitando a Constituição da República. É um sistema fiscal que urge alterar profundamente para respeitar o disposto na Constituição da República e implantar a justiça fiscal em Portugal.

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