Intervenção de Alma Rivera, Membro do Comité Central, Conferência «II Centenário do nascimento de Karl Marx – Legado, Intervenção, Luta. Transformar o Mundo»

Marx e a educação

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No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels inscreviam a reivindicação “Educação pública e gratuita para todas as crianças". A actualidade da exigência mostra-nos porque disse Lénine, que o Manifesto expõe, com clareza e vigor geniais, uma nova concepção do mundo: o materialismo dialéctico, presente em todas as suas esferas” e, acrescentamos, naturalmente num domínio tão determinante como a educação”. Há 170 anos, no contexto da época, de generalizado trabalho infantil, Marx e Engels perceberam que a educação podia ser um instrumento de libertação dos explorados e atribuíam-lhe grande papel na tomada de consciência, no combate à alienação.

Outros autores, sem compromissos transformadores ou com a classe operária, na abordagem ao tema, defenderam que a Educação era o “grande equalizador” da sociedade ou argumentando mesmo no sentido de que desarmaria os pobres da sua hostilidade face aos ricos. Foi seguramente com essa ideia que o Fascismo Português avançou com as escolas do Plano dos Centenários, cabal demonstração de que um regime opressor pode também beneficiar que o povo receba um determinado tipo de aprendizagens. Vejam-se os livros a exaltar os feitos da pátria, Salazar, o Regime Fascista e a opressão dos povos colonizados.

E Hoje, uma tal “geração mais bem preparada de sempre” contradiz, com os seus enormes níveis de precariedade, baixos salários, desemprego e emigração uma tese simples e moderna de que, educação, por si só, é a emancipação do homem, não olhando assim de frente a necessidade de um sistema alternativo que radicalmente resolva os grandes problemas da humanidade.

O legado de Marx ajuda-nos muito nesta análise: ao situarmos a Educação nas construções sociais pertencentes à superestrutura (o tal edifício construído na base das relações sociais de produção) compreendemos que a 1a não pode estar senão de acordo com as 2as. E esta é desde logo uma luz sobre o problema. Portanto, a educação (que não se esgota no ensino) é determinada pelo modo de produção vigente, sendo este que define a forma como a humanidade vive, pensa e transmite o conhecimento que tem sobre a realidade social e natural.

De facto, quase 2 sécs depois da enunciação das leis e instrumentos científicos que o marxismo desvendou, as grandes questões em torno da relação sistema-educação mantêm-se dialéctica e substancialmente as mesmas, chegando ser impressionante o exercício de olhar a realidade actual face aos debates com que se confrontaram Marx e Engels então. De facto, a luta de classes sempre a manifestar-se.

A Escola que hoje temos no nosso país (no sentido mais abrangente dos vários graus de ensino) é maioritariamente pública, embora com um financiamento cada vez mais insuficiente e que, em larga medida, vai sendo encaminhado para o particular e tenham sido dados grandes passos para a sua privatização. O aspecto fundamental da formação do presente e que comporta uma profunda carga ideológica, é o sistema binário: a crescente divisão entre ensino regular e ensino tecnológico/vias profissionalizantes já a partir do ensino básico. Os obstáculos à frequência e sucesso escolar no ensino regular como os preços dos manuais, os exames nacionais, as condições materiais existentes, conjugados com a exclusiva existência de subsídios de alimentação, alojamento, transporte no ensino profissional, funcionam como incentivo a que os filhos dos trabalhadores sejam encaminhados para esta via, sob pena de nem concluírem a escolaridade obrigatória.

As chamadas vias profissionalizantes preparam desde cedo os jovens para a exploração com pesadas cargas lectivas, a ultrapassar mesmo 40h semanais e estágios desde os primeiros anos, que mais do que ajudar a desenvolver competências significam mão-de-obra gratuita para empresas e mesmo serviços do Estado, como cantinas escolares. No Ensino Superior, já elitizado com as propinas e outros custos associados, também há oferta formativa adequada aos filhos dos trabalhadores que conseguiram aí chegar (com percursos, inclusive, mais baratos!): os cursos do Ensino Politécnico que, numa outra escala, mantêm as mesmas características do ensino profissional. Exemplo maior são os cursos de baixo custo, de 2 anos, com vista a formar semi-técnicos, semi-licenciados mas plenamente aptos a satisfazer as necessidades tecnológicas das empresas.

Coisa bem distinta era a Politecnia que os precursores do ideal comunista defendiam em meados do séc XIX. Numa época em que afirmar que a sociedade não pode permitir que pais e patrões empreguem crianças e adolescentes, a menos que se combine este trabalho produtivo com a educação, já era extremamente avançado, Marx defendeu uma concepção revolucionária de ensino que, combinando educação intelectual, física e tecnológica -uma formação integral- juntando teoria à prática, garantiria ao proletariado as condições para superar a classe dominante e assim inverter a ordem vigente. Ao suplantar o hiato historicamente existente entre trabalho manual e trabalho intelectual proporcionar-se-ia a compreensão integral do processo produtivo e, por conseguinte, a classe trabalhadora fica em vantagem perante a burguesia. É este o Ensino Politécnico na sua acepção inicial, marxista. Chega a ser deplorável a deturpação deste conceito.

Já no início do século XX depois da grande revolução socialista de Outubro, perante o desafio de erguer uma sociedade nova e por isso conceber também um Ensino novo, os bolcheviques depararam-se com o sistema educativo dual do czarismo: por um lado, a escola técnica, voltada para o trabalho manual e a execução – estritamente necessária para a formação de mão-de obra e mesmo assim reservada a uma pequena minoria, por outro, a escola de elites em que se aprendia a teoria, o acumulado da ciência, o trabalho intelectual, virada apenas para os filhos da aristocracia e da burguesia, garantindo a continuação do conhecimento nas suas mãos, e assim também a sua condição dirigente. Aqui radica a divisão do trabalho: produção material para uns, produção intelectual para outros. “só pode haver uma educação possível para cada classe” dizia Hitler mais tarde.

Os revolucionários utilizaram então o conceito marxista de educação, experimentando uma “escola única do trabalho”- um único sistema que fosse revolucionário tanto nos conteúdos como na forma em que a participação das massas, a comunidade escolar (em que os estudantes têm enorme peso ) define o processo educativo e a gestão da escola. Curiosamente hoje, no que toca a gestão democrática, embatemos num Estatuto do Aluno e Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior que, como linhas mestras, para além de fazer caminho à privatização, concentram poderes nos directores/reitores, auxiliando-se de maior capacidade punitiva, e simultaneamente retiram voz aos estudantes e trabalhadores nos órgãos de governo e gestão.

Obviamente distantes do ponto de vista da divisão técnica-teoria, o fosso da educação para a exploração e educação para a libertação manifesta-se em inúmeros outros aspectos. As leis do mercado, parte da infraestrutura, como vimos, vão influenciar toda a esfera da superestrutura, escola e esfera cultural. Marx dá-nos o método de análise que podemos convocar em cada momento e em cada realidade concreta, seja a Inglaterra do séc. XIX ou Portugal do séc XXI, para interpretar o que nos rodeia com vista à sua transformação. A partir daí temos um precioso instrumento que ajuda a destrinçar uma realidade complexa e com várias nuances.

Em primeiro lugar, se aparentemente é mais vantajoso para a burguesia manter os filhos dos trabalhadores longe da escola a verdade é que é o próprio sistema a precisar que o trabalho seja mais e melhor instruído de um ponto de vista técnico. Fruto das próprias contradições do sistema capitalista, do desenvolvimento produtivo e tecnológico que a constante concorrência, novas técnicas, invenções e inovações obriga, necessitam de uma alta especialização e actualização do conhecimento dos trabalhadores para própria sobrevivência na corrida ao lucro. Formam-se assim exércitos de reserva altamente preparados, com amplas capacidades, que, mesmo com licenciatura ou mestrado, serão igualmente proletarizados, resultando em enorme mais-valia para o patrão. No mesmo sentido, a composição curricular de um curso profissional do secundário pode passar ao lado de matérias essenciais como a História e a Matemática, tornando muito fraca esta componente, e ao mesmo tempo exige dos alunos conhecimentos hiper avançados e especializados nas áreas técnicas respectivas, seja mecânica, design ou restauração.

A chamada “oferta educativa”, isto é, como é concebida a rede de ensino, do básico ao superior, revela também os interesses que lhe subjazem. Uma rede desadequada às reais necessidades de desenvolvimento do país e ao processo produtivo globalmente considerado (como defendera Marx) mas sim às necessidades das empresas privadas e do capital transnacional com vista à divisão internacional do trabalho. A organização da mesma não tem em conta o desenvolvimento integrado do país e estas opções contribuem para a dependência e submissão tecnológica de uns países face a outros, o plano de Bolonha para a União Europeia. Assim assistimos à abertura de cursos profissionais à medida de interesses privados ou à ingerência destas entidades nos Conselhos Gerais das universidades, definindo opções curriculares a troco de financiamento. Só por ingenuidade poderíamos ignorar os impactos desta subjugação no conteúdo curricular, no que de facto se ensina, no que se aprende e no que se cria.

Efectivamente, manter os filhos dos trabalhadores integrados neste sistema educativo o maior tempo possível, num sistema que apesar de não estimular a formação integral é altamente exigente, ocupando-os sem estimular o sentido crítico pode ser vantajoso também. Na escola e nas universidades, novas gerações de professores que já foram formados para reproduzir a propaganda, nomeadamente no que ao reescrever da história diz respeito, transmitem-no aos jovens num ciclo que o povo e a juventude terão de romper.

Por força de uma grande pressão económica e de uma escola assim concebida, esta é vista apenas como o caminho para estar preparado para o trabalho, recuando no processo histórico de garantir o gosto pela aprendizagem e auto-instrução ou seja, a tal “cultura integral do indivíduo” de que Bento de Jesus Caraça falava, seja do ponto de vista físico, técnico e intelectual mas também da moral e valores colectivos.

Contribui também o Processo de Bolonha que, ao concentrar conteúdos e provocar pressão acrescida, trouxe constrangimentos ao envolvimento associativo dos estudantes e, (também) por isso, à sua luta. Estes conteúdos vocacionados para a formação para a profissão, sem custos para o utilizador, de mão de obra qualificada barata, e, ademais amestrada para aceitar a exploração, são parte integrante da perpetuação da ideologia dominante como pensamento único.

Outro aspecto, não exclusivo da educação, mas que nela muito se manifesta, é o estímulo do individualismo e competição, como moral colectiva, reproduzindo entre os trabalhadores e os seus filhos a moral burguesa. Tal como Marx apontava, fruto da contaminação das relações humanas pelas leis do mercado, é comum encontrar-se um ambiente competitivo nas escolas, em torno dos exames, das médias, na luta por um posto de trabalho, no fundo, por um futuro dentro dos status vendidos.

Última e breve reflexão devemos dedicar ao ensino particular, não podendo deixar de merecer interrogação que os ricos e poderosos estejam sempre na primeira linha da defesa e canalização de fundos públicos para a escola privada mas depois façam questão de colocar os seus filhos na escola pública, alimentando um sistema paralelo.

Chegados aqui importa descortinar os caminhos para a construção de um sistema educativo que esteja à altura da tal formação completa, emancipadora, garante de instrumentos para a libertação do homem da sua própria exploração - a educação de base marxista para hoje. Uma educação para a inclusão e combate a qualquer tipo de discriminação e um ensino com os meios e pedagogias necessários à verdadeira educação para todos, estejamos a falar da criança com deficiência, ou qualquer outra diferença que possa causar entrave. Um sistema único e rico, por ter como base o espaço, o tempo, a valorização do trabalho e de quem trabalha, tendo como objectivo alimentar o gosto pelo conhecimento, pela vida e construção de um mundo justo.

Sendo dialéctica a relação entre a educação e o sistema económico não serão os exploradores a entregar o pote aos explorados, ou por outra, os que dominam materialmente em dado momento, dominam também como produtores de ideias, regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo. E isto significa que suas ideias são as ideias dominantes da época.

Não queremos com isto dizer que é preciso esperar pelo socialismo para reivindicar o ensino a que temos direito: muito pelo contrário, precisamos contribuir agora para a luta geral da classe operária e de todos os trabalhadores na superação do capitalismo também através da resistência aos golpes na escola de Abril, a mais avançada que Portugal conheceu. Precisamos simultaneamente organizar a luta por cada conquista que signifique uma escola mais livre, com mais meios, mais igualdade, mais discussão - a educação pública, gratuita democrática e de qualidade para todos, por oposição à escola que nos quiseram e querem impor.

Perante estes desafios, que nos sirva saber que já foi aberta a era de passagem ao socialismo e que, também no que toca à educação, podemos contar com preciosos ensinamentos das experiências de primeira edificação do mesmo. Esses contributos para a marcha da história são indeléveis: basta ver que ainda hoje, quase 200 anos sobre a sua concepção e 100 sobre a execução, não conseguiram fazer desaparecer o conceito de escola politécnica inventado por Marx, ainda que profundamente desvirtuada.

Como vimos, a importância da educação, dos níveis de instrução da Humanidade, apesar de ser uma ideia aparentemente consensual e aclamada por todos, depende de quem a constrói, para quê e para quem é concebida e fundamentalmente das relações sociais de produção da sociedade envolvente.
Aristóteles, homem absolutamente insuspeito nesta discussão, disse que “as raízes da educação são amargas mas os seus frutos são doces”. Daqui dizemos que é preciso é fazer cair os frutos para o nosso lado, questão que encontra a sua própria resposta todos os dias, na luta, nas escolas e nos locais de trabalho, na construção de um mundo onde nenhum homem seja explorado por outro, só possível dando vida e movimento ao legado de Marx.

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