Lançamento do livro «Encontro do PCP sobre os direitos das mulheres» - Intervenção de Catarina Pires, Jornalista

Primeiro é preciso mudar o mundo

Não conheci o país onde segundo o artigo 5.º da Constituição da República, todos os cidadãos eram iguais perante a lei, «salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família» e onde, por trabalho igual, as mulheres ganhavam menos cerca de quarenta por cento do que os homens, que segundo o Código Civil em vigor até 1975 eram os chefes de família, cabendo a elas o governo doméstico.

Não conheci o país onde os homens estavam habilitados a dispor do salário das mulheres, a proibi-las de trabalhar fora de casa ou a rescindir-lhes o contrato. Não conheci o país onde as mulheres tinham legalmente o domicílio do marido e eram obrigadas a residir com ele, que tinha o direito de abrir a correspondência delas. Não conheci o país onde uma mulher apanhada em flagrante adultério era como que condenada à morte por um Código Penal que, nestas circunstâncias, sentenciava o marido homicida a pena nunca superior a um desterro de seis meses. Não conheci o país onde, talvez para evitar tais despautérios, a mulher não podia viajar para o estrangeiro sem autorização do marido, o planeamento familiar era proibido, os médicos não estavam autorizados a receitar contraceptivos orais, a não ser para fins estritamente terapêuticos, e o aborto era punido em qualquer circunstância, com pena de prisão de dois a oito anos.

Pouca coisa comparada com a sentença de morte a que muitas - mais de cem mil por ano - se arriscavam ao fazer um aborto clandestino por já não poderem ter mais filhos para criar. Não conheci o país onde certas carreiras estavam vedadas às mulheres e o direito delas ao voto, ele próprio uma farsa, era restrito.

Também não conheci o país que Maria Lamas percorreu de norte a sul, do litoral ao interior e ilhas, indo aos lugares mais recônditos, para saber como vivia a mulher portuguesa do seu tempo. Quais os seus sonhos, aspirações, pensamentos, sentimentos, destinos. E que era este no plano dos direitos, mas outro ainda mais sombrio, se possível, no plano da realidade. Sobre a camponesa, que lhe deteve a atenção e a quem dedicou mais de trezentas páginas diz, em jeito de conclusão: «Não nos iludamos com a animação das romarias ou com o esplendor da mocidade que canta, ri e parece desafiar a própria vida na hora culminante e fugaz do seu desabrochar. Cada uma dessas jovens se transformará em mulher que apenas trabalha e procria, sem outro horizonte, sem estímulo nem esperança, fechando-se mais e mais no desamparo e amargura da sua servidão. (...) O seu trabalho, tanto ou mais rendoso do que o do homem, tem remuneração muito inferior. A sua submissão ao marido vai ao ponto de se deixar espancar por ele sem reagir. A falta de gosto e consideração pela sua pessoa, juntamente com as privações e fadiga de todas as horas, leva-a ao abandono de si própria, logo que casa e lhe nasce o primeiro filho.»

Um destino não muito diferente do da «mulher do mar» ou da «operária», embora em relação a esta última Maria Lamas tenha verificado já existir, em algumas, uma sólida consciência social. Maria Lamas, a mulher que não se resignou ao papel que lhe era atribuído, que lutou contra a ditadura, pela paz e pelos direitos das mulheres, que conheceu os calabouços da PIDE e a prisão de Caxias e que foi obrigada ao exílio em França, sublinhava já, em As Mulheres do Meu País: «A vida profissional concorre muito para despertar a consciência da mulher, quanto ao seu dever de partilhar a vida geral e procurar valorizar-se moral, social e intelectualmente.»

Tive a felicidade de não conhecer este país porque nasci dois meses depois da Revolução de Abril de 1974 e, graças a ela, nos meus primeiros anos de vida todos, quase todos, estes absurdos foram expurgados da letra da lei. No país em que cresci, a Constituição da República passou a garantir que todos são iguais perante a lei PONTO FINAL. E, no entanto, 34 anos depois, apesar de todas as conquistas e de todos os avanços, os homens continuam a ganhar, em média, mais 25 por cento do que as mulheres, que continuam a ser as mais afectadas pelo desemprego e pelo trabalho precário, a ter as reformas mais baixas e a ser mais vulneráveis à pobreza.

Foi preciso esperar 17 anos para ver aprovada, em 1991, uma lei, por proposta do PCP, de protecção às vítimas de violência doméstica, que mais uma vez apesar disso, continua a ser uma tragédia entre nós. Quanto ao aborto, como todos os aqui presentes sabem, porque muito lutaram por esta causa, só no ano passado é que a IVG a pedido da mulher até às dez semanas foi despenalizada, tendo eu, já com 33 anos depois do 25 de Abril, tido o privilégio entre aspas, porque preferia não ter tido que o ter, de me juntar a essa luta. É sobre este país, o de hoje, e de como ele trata as mulheres, que versa este livro que aqui apresentamos e que resulta do Encontro do PCP sobre os direitos das mulheres, realizado em 10 de Maio deste ano e ao qual tive a oportunidade de assistir.

Nele é traçado um quadro muito claro da situação da mulher portuguesa, daquilo que conquistou nestes 34 anos, do que está por conquistar e também do que já perdeu. Dos perigos que enfrenta e das formas que tem ao seu alcance para lutar contra eles, entre as quais a acção cívica, política e sindical. Já falei aqui de Maria Lamas e da sua obra As Mulheres do Meu País, um livro que é também uma exortação à união e à luta destas por uma vida mais digna, livre, esclarecida e em pé de igualdade com o homem. Foi muito interessante ouvir e ler as intervenções que, a este encontro do PCP, nos trouxeram informação sobre a situação actual da mulher em vários pontos do país: Madeira, Aveiro, Portalegre, Beja, Montemor-o-Novo.

Como foi interessante despertar para temas sobre os quais nunca tinha pensado, como o das mulheres, o desporto e a forma escandalosamente discriminatória como estas são tratadas neste campo. Ou tornar-se tão claro porque é que, ao contrário do que alguns querem fazer crer, a prostituição nunca, em caso algum, pode ser uma escolha livre. Ou tomar conhecimento do trabalho do grupo parlamentar do PCP, nestes 34 anos, em defesa dos direitos das mulheres, uma prova de que mais importante do que se os lugares de deputados são ocupados por homens ou mulheres, são as políticas por eles defendidas. Embora, e deixem-me fazer esta ressalva, considere que devia haver mais mulheres na Assembleia da República, bancada do PCP incluída. Muito importante foi também ser esclarecida sobre o que se passa no mundo do trabalho, determinante para a emancipação da mulher, as situações concretas em variados sectores e o que significa este novo Código do Trabalho, recentemente aprovado pelo Governo do PS, em termos de regressão de direitos para os trabalhadores e para as mulheres em particular.

Tudo lido e relido, chego ao fim e pergunto-me como é possível? Como é possível termos avançado tanto e no entanto não passarmos muito além da cepa torta? Não sou dada a pessimismos, nem alinho no discurso de que isto afinal não mudou assim tanto. Mudou. A questão é o que fazer para lá chegar, à igualdade de facto entre homens e mulheres. As opiniões divergem e a eloquência das argumentações ajuda à confusão. Há, por exemplo, quem veja o homem como o inimigo.

Em As Novas Cartas Portuguesas, marco do feminismo em Portugal, perguntam Maria Teresa Horta ou Maria Isabel Barreno ou Maria Velho da Costa (nunca se sabe, neste livro, quem escreveu o quê): «O que podemos com elas [as palavras] em nosso favor e de mulher em mulher nos dizermos e contarmos do domínio que ainda somos, despojo hoje de guerreiros que se fingem companheiros em ajudada luta, mas que apenas pretendem montar-nos e serem cavaleiros de Marianas de outros cativeiros presas e monjas de diferentes conventos, sem disso se darem conta?».

Eu, apesar de reconhecer que é fácil ir por aí, prefiro pensar que o caminho não é esse, até porque nunca dormiria com o inimigo. Quero antes acreditar no que nos diz Odete Santos: «Enquanto o tal discreto encanto da burguesia se atira pela igualdade contra os homens, nós estamos ao lado dos homens na luta contra o sistema capitalista, criador da desigualdade das mulheres. Enquanto o discreto encanto da burguesia se basta com algumas pobres conquistas como a da paridade, não cuidando das reais razões que afastam as mulheres da política, assim como outrora não cuidaram de garantir o direito de voto a todas as cidadãs, bastando-se com o reconhecimento desse direito para as que tinham grau universitário ou diploma do ensino secundário. Nós, com as mulheres revolucionárias, gritamos pela efectivação das mais amplas liberdades e sabemos que o inimigo é o poder capitalista.».

Temos, portanto, que mudar o mundo primeiro. Esta ideia não me desgosta, já que o mundo, tal como está, não está bem. Mas enquanto ele não muda e o homem novo - e já agora a mulher nova - não chegam, é preciso mudar as mentalidades. Bem sei, porque li e ouvi, Rui Fernandes, do Secretariado e da Comissão Política do PCP, afirmar que remeter tudo para aqui é outra das linhas de ofensiva ideológica contra os direitos das mulheres. Será. Mas como o próprio reconhece é necessário alterar as mentalidades.

Passo-lhe a palavra: «Temo-lo afirmado e afirmamos não só no que respeita aos vários aspectos de índole social, mas também, com a frontalidade e a fraternidade que nos caracteriza, no que respeita a aspectos do nosso trabalho partidário. Mas não nos iludamos, a alteração de mentalidades é que conduz à consciência de que é no sistema de exploração que está o problema e que sem a sua substituição perdurarão as condições de perpetuação da discriminação e da desigualdade.» É um facto, mas pelo sim, pelo não, vou continuar a ensinar o meu filho João, de quatro anos a cozinhar e a fazer a cama e a arrumar os brinquedos. E a olhar para a irmã Rita, de dois anos, como sua companheira de luta por um outro mundo. E vice-versa. Porque a luta tem de continuar.

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