Intervenção de João Ferreira, membro do Comité Central e Deputado ao Parlamento Europeu, Seminário «O Euro e a União Económica e Monetária. Constrangimentos e Rupturas»

O Euro foi e é uma autêntica declaração de guerra aos trabalhadores dos países da Zona Euro e de toda a UE

Muitas coisas já lhe chamaram. No princípio, era a crise do subprime nos EUA, qual tsunami financeiro cujas ondas de choque atravessaram o Atlântico; foi o tempo das crises bancárias e das intervenções dos Estados para salvar a banca privada em toda a Europa; uma crise financeira, a que se seguiu a sua expressão concentrada ao nível das economias periféricas, a crise das dívidas soberanas, finalmente transformada em crise da Zona Euro.

Tudo isto não são senão diferentes expressões de um mesmo fenómeno: a crise estrutural do capitalismo. Crise que na União Europeia é uma crise da própria União Europeia, dos seus pilares e fundamentos, enquanto projecto de integração capitalista que é. E entre os principais pilares desta integração contam-se, indiscutivelmente, o Euro e a União Económica e Monetária.

Já lá vão quase 17 anos. Vale a pena confrontar com a realidade as promessas feitas em Maio de 1998, quando foi aprovada a lista dos 11 países fundadores da Zona Euro.

Afirmava-se então que o Euro traria taxas de crescimento económico elevadas. Na Estratégia de Lisboa apontava-se para taxas de crescimento de 3% ao ano. Na realidade, o crescimento médio anual não foi além de 1%, entre 2001 e 2010.

Afirmava-se então que o Euro traria um forte crescimento do emprego, contribuindo para a redução dos elevados níveis de desemprego já então verificados na União Europeia. O emprego não cresceu mais de 0,6% ao ano em termos médios, com uma taxa de desemprego média de 8,7% e que, em 2010, já tinha atingido os dois dígitos, ultrapassando os 10%, ou seja, quase 16 milhões de desempregados na Zona Euro. Mas, como bem sabemos, não se ficou por aí.
Prometia-se a convergência das economias. À convergência nominal em torno dos critérios de Maastricht e do seu Pacto de Estabilidade juntar-se-ia, mais cedo que tarde, a convergência real das economias. Na verdade, porém, os desequilíbrios macroeconómicos agravaram-se. Tal pode ser constatado pelas disparidades crescentes dos saldos das balanças comerciais entre os países que compõem a Zona Euro, com a existência de países “importadores líquidos” e, por isso devedores, com um nível de dívida crescente, e de países “exportadores líquidos” e, por isso credores.

Estas foram algumas das consequências do Euro, particularmente sentidas na periferia, nos denominados “países da coesão”. As dificuldades da União Económica e Monetária, decorrentes da aplicação de uma política monetária única a países com profundas disparidades nos níveis de desenvolvimento económico e social e, por isso mesmo, com necessidades de políticas diferenciadas ao nível monetário e cambial, estas dificuldades, inicialmente escondidas ou ignoradas, acabam por se tornar evidentes.

É nesta altura, e perante o risco de implosão do Euro, que recrudescem, com matizes diversificados, as teorias do aprofundamento.

A ponte ficou a meio, dizem. É necessário pois construir a outra metade. A União é monetária, mas não económica. Há que completá-la, afirmam. Sob pena de todo o edifício poder implodir. Os federalistas mais convictos retornam mesmo ao sonho da unificação política – uma moeda, um Estado, um governo económico.

Surgem o Pacto para o Euro Mais, a chamada Governação Económica, o Tratado Orçamental, o Semestre Europeu. Mecanismos de ingerência política, económica e social, que criam um quadro de constrangimento quase absoluto a quaisquer projectos soberanos de desenvolvimento económico e social.
Ao mesmo tempo regressam as teorias do núcleo super-integrado, chegando alguns a defender possíveis reconfigurações da Zona Euro, com a “expulsão” das economias mais débeis e periféricas.

Aqui chegados, há uma pergunta que se impõe: será que o Euro falhou?

Uma coisa é para nós certa: não é possível responder a esta pergunta, nem é possível compreender o papel que o Euro teve e tem na sua década e meia de vida, sem reconhecer o Euro e a União Económica e Monetária como instrumentos de classe; instrumentos ao serviço de um projecto político, de classe.

Em termos económicos, todos sabiam à partida que a Zona Euro não era uma Zona Monetária Óptima, nem uma inevitabilidade decorrente de necessidades económicas objectivas, da evolução das forças produtivas. O Euro foi e é uma decisão política, uma opção do grande capital europeu, no contexto do aprofundamento da integração capitalista europeia. Vale a pena lembrar quais os principais impulsionadores do Euro, desde o início: a Mesa-Redonda dos Industriais, as grandes confederações do patronato europeu, as grandes multinacionais europeias e os milionários fundadores da então chamada Associação dos Amigos do Euro.

Por detrás do objectivo da política monetária – a dita estabilidade dos preços, encontra-se o objectivo, hoje cada vez mais claramente assumido e repetido, de reduzir os custos unitários do trabalho, garantir a transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para o capital, contribuindo para a aumentar a taxa de exploração e com ela garantir sustentação das taxas de lucro.

Retirando aos Estados a política monetária, cambial, mas também a orçamental e a fiscal, por via das obrigações decorrentes do Pacto de Estabilidade, os únicos factores de ajustamento a choques económicos recaem sobre os salários e o emprego, ou melhor dizendo, a desvalorização dos salários e o aumento do desemprego. Desemprego que força ele próprio a descida dos salários.

Com o Euro acentuou-se também a liberalização dos movimentos de capitais e, consequentemente, o grau de mobilidade do capital multinacional que opera no mercado interno europeu. As deslocalizações são mais fáceis e juntam-se ao desemprego para forçar a concorrência entre a força de trabalho e a sua desvalorização geral.

Aqui, o Euro não falhou, cumpriu o papel para o qual foi criado.

Entre 2001 e 2013, os lucros cresceram quase 26 vezes mais que os salários em Portugal, quase 16 vezes mais em Espanha, mais de 5 vezes mais na Alemanha e na Zona Euro, mais de 3 vezes mais na Itália e 2 vezes mais na Irlanda. O caso grego é ainda mais penalizador para os trabalhadores, uma vez que para igual período os lucros acumulados cresceram 60,7% e os salários reais tiveram uma redução acumulada de 7,1%. Este foi o resultado do Euro. O aumento da taxa de exploração na zona euro, com o peso dos salários no produto a ter uma forte redução, para níveis historicamente baixos, em especial em países como Portugal, Espanha e Grécia.

No outro lado da moeda encontra-se o desemprego. Entre 2001 e 2013, o número de desempregados cresceu 49% na zona euro, 147% em Portugal, 131% na Espanha, 101% na Grécia, 174% na Irlanda e 29% na Itália.

Mais do que diagnósticos, a situação que vivemos exige respostas. Mais do que identificar constrangimentos – que hoje são por demais visíveis – é necessário enunciar as linhas de ruptura que nos permitam libertarmo-nos desses constrangimentos.

Este é um debate urgente e inadiável. Um debate presente na reflexão conjunta que temos com forças progressistas e de esquerda na Europa, em especial no quadro do Grupo da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica do Parlamento Europeu.

É para aprofundar esta reflexão que se torna particularmente útil e valiosa a presença hoje entre nós de camaradas de partidos membros do GUE/NGL: de Espanha, da Esquerda Unida-Esquerda Plural; da Irlanda, do Sinn Fein; e de Chipre, do AKEL.

Queremos aqui saudar e agradecer a vossa presença, e dizer-vos que a tomamos como um acto de solidariedade, com o nosso partido, com o nosso país e com o nosso povo. Um acto de solidariedade com a luta – que é a nossa e que sabemos ser também a vossa – pela emancipação e o progresso social. Um acto de solidariedade que aqui queremos retribuir com uma calorosa saudação, que vos pedimos que transmitam aos vossos partidos.

Para o PCP, é possível, é preciso e é urgente romper o colete-de-forças que impede os povos dos nossos países de trilharem um caminho de desenvolvimento económico e de progresso social.

No nosso país, consideramos que a recuperação da soberania monetária – e por arrastamento da soberania cambial, orçamental e fiscal – é uma condição necessária, ainda que insuficiente por si só, para garantir um desenvolvimento soberano do país.

Uma condição que permitiria libertar o Estado da dependência exclusiva dos mercados financeiros para o seu financiamento de último recurso. Ou, vedado o acesso aos mercados pelas taxas de juro agiotas, como sucede actualmente na Grécia, libertar o Estado da chantagem permanente e da condicionalidade política associada aos empréstimos das instituições da União Europeia.

Uma condição que permitiria ajustar a gestão monetária, financeira e orçamental do Estado à situação e necessidades específicas do país – muito distintas das de outros países.

Uma condição para abandonar o Pacto de Estabilidade e as consequentes restrições ao investimento e ao cabal financiamento das funções sociais do Estado.
Assim criando outras e melhores condições para o investimento, a criação de emprego e a dinamização da produção nacional.

Desde 2007 que o PCP tem vindo a propor a dissolução da União Económica e Monetária. Uma dissolução programada e organizada, que reduza ao mínimo as perturbações económicas e financeiras resultantes da constituição das novas moedas nacionais e estabeleça programas financeiros de apoio aos países com economias mais débeis e mais endividados.

Este objectivo deve justificar uma conjugação de esforços, desde logo, dos países que enfrentam dificuldades semelhantes, tendo em vista, para além da dissolução da União Económica e Monetária, a convocação de uma Conferência Intergovernamental destinada a debater o problema das dívidas públicas e a suspender e revogar o Tratado Orçamental.

Esta seria a solução ideal para romper com o atoleiro em que a Zona Euro se converteu.

O Euro foi e é uma autêntica declaração de guerra aos trabalhadores dos países da Zona Euro e de toda a UE. Uma década e meia de desvalorização social e de desemprego crescente assim o demonstra.

Não existem saídas no actual quadro que não passem por uma ruptura com as políticas vigentes. Essa ruptura é necessária para libertar os povos da subalternidade, da dependência e do atraso.

Hoje, como ontem, é necessário que os trabalhadores e os povos tomem nas suas mãos a afirmação confiante do seu destino. É necessário vencer a resignação e o conformismo. Recusar novas e velhas ilusões. E afirmar com coragem e confiança os caminhos alternativos que existem para os nossos países e para a Europa.

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