Intervenção de Manuel Loff na Assembleia de República, Reunião Plenária

Toda a história está feita de luta por direitos, de resistência à opressão e à exploração

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Aveiro, abril de 1973. Há praticamente 50 anos milhares de ativistas das várias forças da resistência e da oposição democráticas desafiaram a ditadura fascista implantada em Portugal havia quase outros 50 anos e reuniram-se no Congresso da Oposição Democrática. Eram comunistas, republicanos, socialistas, católicos progressistas, democratas de várias correntes de opinião, e até militares já envolvidos no Movimento dos Capitães, que, depois de meses de debates, convergiram em Aveiro, a cidade dos congressos republicanos de 1957 e 1969, para consensualizar aquele que seria o último grande programa de democratização que a oposição democrática produziria antes do 25 de Abril. Aveiro 1973 foi várias coisas ao mesmo tempo: foi a demonstração da capacidade de superar muitas divergências e saber representar a vontade de um povo exausto ao fim de 12 anos de uma guerra colonial iniciada em 1961, que devastava famílias e vidas em Portugal, mas o fazia especialmente entre as populações africanas em Angola, na Guiné-Bissau, em Moçambique, um povo que em Portugal sangrava através da emigração - 1,4 milhão de portugueses abandonaram o país no conjunto dos 13 anos de guerra. Os 4 mil homens e mulheres que corajosamente se reuniram em Aveiro, enfrentando o governo, a PIDE/DGS, a censura e as mentiras da propaganda de Marcelo Caetano e da sua versão final e outonal do fascismo português, fizeram-no bem cientes das permanentes ameaças e intimidações a que estavam sujeitos, e sabendo bem do risco de prisão e tortura que, especialmente os militantes comunistas e os novos sindicalistas da jovem Intersindical, corriam em todas as situações em que saíam à rua à luz do dia, desafiando a ficção de legalidade que a ditadura portuguesa, como todas, alimentava.

Participar sob a ameaça permanente da repressão nos debates do Congresso da Oposição Democrática ou nas ruas de Aveiro, quando congressistas e manifestantes que romavam à campa de Mário Sacramento, o médico comunista que foi um dos organizadores dos congressos republicanos de 1957 e 1969, tiveram que enfrentar uma carga brutal da polícia de choque, foi, em si mesmo, um ato de resistência e de liberdade, uma demonstração prática da participação democrática. É por estas demonstrações de resistência terem antecedido o MFA e o 25 de Abril que se demonstra bem onde está o ADN da nossa democracia. Ela não nos foi outorgada; ela foi conquistada a pulso, em cada greve, em cada manifestação ilegal, em cada edição de um jornal clandestino, em cada preso político que não falou, que não cedeu. Exatamente da mesma forma, sras e srs deputados, como ela é hoje defendida, praticada, exigida, em cada greve (dos trabalhadores dos setores público e privado, professores, médicos, enfermeiros, ferroviários, entre muitos outros) pela defesa de direitos e de dignidade, em cada manifestação contra a degradação dramaticamente acelerada das condições de vida, em cada protesto contra o custo da habitação e a especulação imobiliária.

Cada um destes elementos da nossa memória coletiva, da memória dos resistentes antifascistas portugueses e da luta, permanente, incansável pela democracia, ecoam, como se percebe, nos dias de hoje. Ecoam até nas paredes desta sala, que, diga-se de passagem, ouviram em democracia as vozes de muitos dos congressistas de Aveiro de 1973. Mas ecoam sobretudo na memória dos dias que vivemos. Crise económica e inflacionista com as consequentes lutas sociais que ela provoca, a emigração que permanece como alternativa para quem não vê direitos respeitados nem expectativas num futuro que não passe por precariedade e pelos abusos de um mercado que se nos pretende descrever como estando acima da lei, da democracia, da própria vida. Teimosamente surdo ao que trabalhadores, jovens e pensionistas lhe pedem, deveria o Governo, o atual Governo, aprender com o que o anterior, muitos de cujos membros transitaram para o atual, estabeleceu em 2021 como propósito das comemorações do cinquentenário da Revolução Portuguesa: a necessidade de “conciliar a celebração da memória da resistência e da Revolução com a capacidade de imaginar o futuro da democracia portuguesa”.

Nem a democracia cai do céu - e a portuguesa não caiu mesmo do céu -, nem as ditaduras caem por vontade própria em elegantes processos de desistência e omissão. Toda a história está feita de luta por direitos, de resistência à opressão e à exploração e a todas as formas de violência com as quais se pretende impor uma e outra. Foi essa resistência que retirou todo o espaço de sobrevivência à ditadura salazarista na sua versão marcelista, foi a resistência que, ao combater ativamente as injustiças sociais, a discriminação sem pudor das mulheres, ao combater a opressão política, ao denunciar a violência exercida sobre o povo português, mas especialmente sobre os povos africanos e asiáticos submetidos à dominação colonial, criou as condições para que um movimento militar democrático, o MFA, pudesse fazer cair praticamente sem resistência a ditadura.

Se há democracia em Portugal desde 1974, ela deve-se a quem resistiu e a quem resiste. Sempre. De forma permanente. Sem desistir. E aqui, srs e sras deputadas, não posso, não podemos, deixar de sublinhar o papel central que a História reconhece ao PCP e à sua persistência e resistência à repressão na luta contra a ditadura e pela democracia cujas portas o 25 de Abril abriu e que a Constituição de 1976 veio a consagrar e institucionalizar. Não foi só ele – longe disso – que resistiu e ajudou a resistir. Mas nenhum outro movimento político que lutou pela democracia se manteve ativo, e pagou com o corpo dos seus militantes o preço da repressão, como o PCP se manteve.

Mário Sacramento, o antifascista batalhador que os congressistas de Aveiro 1973 quiseram homenagear, deixara escrito em 1967, numa espécie de testamento político, o apelo a que “Aprendam[os] com os erros do passado. (…) Façam o mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!”, escreveu Não o obriguemos a voltar. No quase meio século da democracia portuguesa, era bom que as e os democratas que se sentam hoje aqui nesta Assembleia se comprometessem a não obrigar os resistentes do passado a voltar para nos ajudar a preservar a democracia em Portugal.

 

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