Intervenção de

Sistema de Informações da República Portuguesa, do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) e do Serviço de Informações de Segurança (SIS) - Intervenção de António Filipe na AR

Orgânica do Secretário-Geral do Sistema de Informações da República Portuguesa, do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) e do Serviço de Informações de Segurança (SIS) e revogação do Decreto-Lei n.º 225/85, de 4 de Junho, e do Decreto-Lei n.º 254/95, de 30 de Setembro

 

Sr. Presidente,
Srs. Ministros,
Srs. Deputados:

Passam hoje precisamente dois anos sobre o debate que aqui realizámos, na generalidade, acerca da proposta de lei que daria lugar à Lei-Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa, que está em vigor e que resultou, também ela, de um pacto entre o PSD e o PS alargado, dessa vez, ao CDS-PP, por obrigações decorrentes da composição da coligação governamental da altura.

Também esse diploma resultou de um pacto entre os partidos do «neo-rotativismo» vigente, que, autoproclamados donos do regime, trataram de substituir o debate parlamentar plural por um acordo celebrado à margem do Parlamento, o qual foi mais um episódio de um pacto de muitos anos entre o PS e o PSD em torno dos serviços de informações da República.

Esse pacto tem-se traduzido na total ausência de uma fiscalização credível sobre a actividade dos serviços de informações, na total impunidade dos desmandos praticados por esses serviços, no silenciamento de todos os casos que os descredibilizaram, na paralisia do papel fiscalizador da Assembleia da República sobre as suas actividades.

Os serviços de informações portugueses têm vindo a funcionar, ao longo das últimas décadas, ao abrigo de um pacto entre o PS e o PSD. Um pacto de silêncio, um pacto de impunidade, um pacto de cumplicidade, um pacto de opacidade!

Foi esse pacto que impediu qualquer averiguação séria, por parte da Assembleia da República, quando o SIS foi publicamente acusado da prática de actuações ilegais e violadoras dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Foi esse pacto que impediu qualquer averiguação, por parte da Assembleia da República, acerca dos serviços prestados ao SIS por um ex-agente dos serviços secretos do apartheid, condenado judicialmente por crimes cometidos em Portugal.

É esse pacto que impede a Assembleia da República de tentar averiguar se os serviços de informações portugueses tinham ou não conhecimento dos voos secretos e das escalas efectuadas em território nacional por aviões da CIA.

Foi ao abrigo desse pacto que a Lei-Quadro do SIRP, aprovada em 2004, manteve o princípio da total governamentalização dos serviços de informações - não são da República, mas do Governo -, com a quase total marginalização dos demais órgãos de soberania.

Foi ao abrigo desse pacto que a Lei-Quadro de 2004 manteve e confirmou a manifesta ausência de mecanismos credíveis de fiscalização democrática.

Em 6 dos últimos 12 anos não houve, sequer, Conselho de Fiscalização e nos outros 6 o Conselho remeteu-se à inutilidade da emissão de pareceres anuais, indiciadora de uma total ausência de fiscalização real sobre o funcionamento dos serviços.

Finalmente, foi ao abrigo desse pacto que a Lei-Quadro de 2004 deu passos significativos no sentido de uma maior concentração dos serviços, destinada a redundar, na prática, num verdadeiro processo de fusão.

O que não deixa de ser curioso é que, há dois anos, o Governo, supostamente em nome de um acordo com o PS, que afirmava o seu desacordo com a fusão dos serviços de informações, desistiu de consagrá- la formalmente mas não deixou de dar passos nesse sentido: substituiu as tutelas diferenciadas pela tutela conjunta, por parte do Primeiro-Ministro, a exercer por um Secretário-Geral da sua confiança, equiparado a membro do Governo.

O SIED e o SIS têm funções que devem ser claramente diferenciadas. A fusão de ambos, implicando a recolha de informação conjunta em matéria de defesa nacional e de segurança interna, é tributária de uma lógica de fusão de missões entre forças militares e forças de segurança, a qual não tem acolhimento constitucional.

É óbvio que a acção dos serviços de informações não pode deixar de ser coordenada a nível superior, mas essa necessidade de coordenação não implica que tenha de haver uma fusão de serviços que têm lógicas e missões distintas, seja essa fusão explícita ou implícita, como é o caso, através da direcção única de serviços apenas formalmente distintos.

A proposta de lei que hoje debatemos avança, de forma decisiva, para a fusão dos serviços de informações. Em vez de dois serviços distintos, passaremos a ter duas divisões de um mesmo serviço.

O poder que é conferido ao Secretário-Geral do SIRP, sobre todos os serviços de informações, não tem precedentes na República Portuguesa. Nunca ninguém deteve tanto poder em matéria de informações estratégicas e de segurança.

O Secretário-Geral do SIRP dirige tudo: conduz, inspecciona, superintende e coordena a actividade do SIS e do SIED; preside aos conselhos administrativos de ambos os serviços; dirige as actividades dos centros de dados de ambos os serviços; nomeia e exonera livremente o pessoal, desde os directores até aos contínuos; exerce o poder disciplinar; orienta a elaboração dos orçamentos; aprova os relatórios anuais; orienta o planeamento estratégico; dirige as relações internacionais; regula a organização interna, a composição e as competências de ambos os serviços e das respectivas estruturas comuns; preside ao Conselho Consultivo do SIRP; autoriza a realização de despesas; aprova os regulamentos internos; autoriza as deslocações ao estrangeiro; determina os meios de identificação dos membros do seu gabinete e dos funcionários e agentes do SIED, do SIS e das estruturas comuns; todas as suas actividades, bem como todas as actividades do seu gabinete, tal como as do SIED, do SIS e das estruturas comuns, ficam a coberto do segredo de Estado.

Perante tais poderes, não é possível continuar a falar da existência de dois serviços de informações distintos.

O Partido Socialista, que, há dois anos, afirmava discordar da fusão dos serviços, vem agora propor que se avance nesse sentido, ainda mais além do que permite a Lei-Quadro de 2004.

Na verdade, a Lei-Quadro do SIRP é uma lei de valor reforçado que estabelece a orgânica dos serviços.

Essa lei prevê, como órgãos do SIRP, a existência de um conselho de fiscalização, de um conselho superior de informações, de uma comissão de fiscalização de dados e de um secretário-geral.

Quanto ao SIS e ao SIED, prevê que possam existir estruturas comuns na área da gestão administrativa, financeira e patrimonial, o que não é pouco.

Porém, o que o Governo propõe é que seja criado, para além disso, um único conselho consultivo do SIRP, em substituição dos Conselhos Consultivos de cada um dos Serviços. Ora, a Lei-Quadro não permite sustentar a criação de um tal conselho, que não pode, em caso nenhum, ser considerado como uma estrutura de gestão administrativa, financeira ou patrimonial.

Trata-se de um conselho onde participam os mais altos responsáveis das forças e serviços de segurança. A existência de um tal conselho, se aprovada, será inconstitucional, por violação do valor reforçado da Lei-Quadro do SIRP e será uma clara demonstração da real fusão dos serviços de informações. Sr. Presidente, Srs. Deputados: Como último apontamento, importa sublinhar que, no momento em que o Governo, em nome da contenção orçamental, obriga a generalidade dos funcionários públicos a apertar o cinto até ao último furo e põe em causa o direito à reforma, aos serviços de saúde e à protecção social de tantos funcionários, a avaliar pela presente proposta de lei, a austeridade não chegará aos serviços de informações e muito menos às suas chefias.

Quando o Governo propõe que o Secretário-Geral do SIRP, o seu chefe de gabinete, os directores e os directores adjuntos do SIS e do SIED tenham direito a casa mobilada, para sua habitação, ou a subsídio de compensação, a expensas do Estado, independentemente do local onde residam, o escândalo é tão evidente que mais nada é preciso dizer.

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Numa situação mundial como a que vivemos, em que, a pretexto da luta contra o terrorismo, começamos a assistir, em diversos países, à generalização de regimes de excepção, de carácter securitário, que entram em conflito directo com as liberdades públicas e com garantias dos cidadãos, que constituem o património civilizacional das democracias, esta proposta de lei vai num sentido preocupante.

Repito o que aqui afirmámos, há dois anos, no debate sobre a Lei-Quadro: os serviços de informações devem servir para, em nome da democracia, defender os cidadãos das ameaças à sua segurança, mas não devem poder, em nome da segurança, ser uma ameaça para a própria democracia.

 

 

 

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