Intervenção de

Sessão Solene Comemorativa do 24º Aniversário do 25 de Abril -Intervenção de Odete Santos na AR

Senhor Presidente da República
Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhor Primeiro Ministro
Senhores Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional

Senhoras e Senhores Convidados:
Senhoras e Senhores Deputados:

Chegara um tempo em que a vida era uma ordem, como diria Carlos Drumond de
Andrade.

Um tempo de partir em Liberdade. Um tempo para cumprir a história. A
inevitável história do Futuro.

Abril estava na rua, já sem peias. Na madrugada que conheceu surpresas,
esperanças e certezas, o posto de comando do Movimento das Forças
Armadas devolvia ao povo a alegria usurpada, liberdades espezinhadas. Inventando
o amor com carácter de urgência, na profecia de Daniel Filipe.

"O Movimento das Forças Armadas, que acaba de cumprir com êxito
a mais importante das missões cívicas dos últimos anos da
nossa História, proclama à Nação a sua intenção
de levar a cabo, até à sua completa realização, um
programa de salvação do País e da restituição
ao Povo Português das liberdades cívicas de que tem sido privado."

E conhecemos então os Capitães de Abril, os homens que daqui
saudamos com veemente comoção.

Que jamais serão esquecidos. Que não deixaremos esquecer. Que
fazem parte da memória colectiva de todos os que lutaram contra o fascismo.
De todos os que guardam a memória vivida ou aprendida de quase meio século
de tristeza.

Mas uma saudação especial, uma muita particular e terna homenagem,
embargada mesmo com lágrimas furtivas, pode ser ouvida nas ruas e praças
onde o Povo festeja os 24 anos de Abril.

Uma saudação no feminino. Das mulheres que souberam que não
voltariam ao cais a acenar amargas despedidas aos homens forçados a partir
para a guerra colonial. Das mulheres que souberam que mais nenhuma se teria de
deslocar, em segredo, com a dor amordaçada, ao local onde receberiam um
caixão ou um companheiro estropiado.

Das mulheres de Abril que conheceram especiais humilhações nas
masmorras da Pide.

Das mulheres que sempre se empenharam na luta que desaguaria em Abril.

Das mulheres que reforçaram a luta no estertor do fascismo. Que fizeram
greves desafiando a repressão.

Uma saudação no feminino, porque se houve o reencontro do povo
com a liberdade, a verdade é que o 25 de Abril e os seus capitães
criaram as condições para um verdadeiro encontro das Mulheres com
a Liberdade.

Por isso, e como diz Maria Velho da Costa, elas encheram a rua de cravos. Elas
trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua. Elas estenderam a
roupa a cantar " com as armas que temos na mão".

Elas souberam que era possível viver aqui sem a necessidade de demandar
Paris. Sem que a Pátria fosse um lugar de exílio.

E elas ,logo souberam que era a Abril que deviam o direito à dignidade.
O reconhecimento da valia do trabalho. Porque foi de Abril que nasceu a afirmação
de que a Trabalho igual, salário igual. E o salário mínimo
nacional que de uma maneira especial reparou a exploração no trabalho
do sexo feminino.

E foi ainda em Abril que caíram as barreiras que aos homens reservavam
o acesso a determinadas profissões.

E Abril também abriu o direito à felicidade na família.
Postergado o labéu de ilegitimidade de relações familiares
nascidas do afecto. Eliminadas hierarquias humilhantes que condicionavam o amor.

Abril foi ,e é, a semente da esperança que desabrocha no cravo
vermelho com que as mulheres enchem as ruas.

E nada pode remover a esperança.

Mas elas as mulheres portuguesas, sentem hoje os efeitos das políticas
neoliberais. E por isso lutam pelo acesso ao emprego contra práticas discriminatórias,
mantidas em empresas e em tristemente célebre instituição
bancária, a coberto da inércia do Estado demitido da sua função
fiscalizadora. Lutam contra a usurpação do seu direito à
maternidade. Lutam para que " Ser mãe" deixe de ser uma frase proibida.

Contra os despedimentos que de uma forma especial as afectam.

Contra o desemprego que as espera à porta da Universidade, aberta por
Abril, onde provam a sua competência e aptidão.

Contra a flexibilização do horário semanal de trabalho,
pela estabilidade do horário de trabalho nas 40 horas semanais. Contra
a usurpação dos tempos de lazer. Porque elas sabem, de uma forma
especial, a importância da disponibilidade de espaços de ternura.

Contra a precarização, contra as ameaças de empobrecimento
do trabalho, lutam elas, as mulheres do nosso país, cuja taxa de actividade
faz inveja à dos outros países do sul da Europa. E que justamente
as torna em protagonistas na batalha pelo desenvolvimento.

E porque simultaneamente, toda a sua vida se empenha também nas tarefas
indispensáveis à estabilidade familiar, substituindo as mais das
vezes o Estado nas obrigações de que este se demite, lutam contra
o aumento da idade de reforma.

Elas sabem que a injusta repartição de riquezas, contra a qual
se fez Abril, as transforma, hoje, aos olhos de alguns, de aliadas na construção
da democracia política, económica, e cultural, em concorrentes na
efectivação de direitos. Elas sofrem os efeitos brutais da desumanização
resultante das políticas neoliberais. Elas são vítimas de
violência.

Mas sabem que nada disto tem a ver com Abril.

E sabem que a Democracia, inseparável do seu direito à igualdade,
impõe o reconhecimento da sua liberdade individual. O direito à
sua autodeterminação. O direito a não sofrer do Estado a
suprema violência da ameaça com penas de prisão obsoletas.
O direito a não ser objecto de uma política criminal assente na
discriminação do sexo feminino.

O 25 de Abril - o dia da liberdade - comemora-se em vésperas de um referendo
sobre a liberdade de consciência da mulher. O referendo sobre o aborto.

O PCP sempre manifestou objecção à discussão de
questões do foro íntimo da mulher na praça pública.

Pelo profundo respeito que tais problemas nos merecem.

Neste 25 de Abril de 1998, num dia de especial significado para as Liberdades
das mulheres portuguesas, queremos no entanto reafirmar que indo realizar-se o
referendo sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez, o PCP
estará na linha de combate pelo sim à despenalização.

Porque nós desde sempre lutámos pelo direito à dignidade
das mulheres.

Contra todas as campanhas de culpabilização das mulheres, empenhar-nos-emos
pelo reconhecimento dos direitos humanos plenos do sexo feminino. Pela destruição
da mais bárbara barreira à liberdade individual da mulher.

Como Partido que tem no seu património o trabalho e luta de muitas mulheres,
e que na vida do Povo e de milhares de mulheres anónimas formou e continua
a formar, esse património.

São esses milhares de mulheres anónimas que hoje saúdam
a liberdade, que sabem que muito de Abril não está cumprido.

Elas registaram do Programa do MFA a garantia de uma nova política social,
tendo em todos os domínios, como objectivo, a defesa dos interesses das
classes trabalhadoras.

E isto diz-lhes respeito. E não está cumprido.

Como lhe diz respeito e se encontra no cerne de Abril a efectiva garantia do
direito à liberdade.

E porque comemoram este 25 de Abril arrostando a exigência referendária
para revogação de uma lei injusta contra a sua liberdade individual,
as mulheres assinalam hoje, de uma forma especial, o dia da conquista de todas
as liberdades.

Abril chega todos os anos.

Com a criança pondo um cravo na metralhadora.

Com a criança que se espantou, porque condenada a entrar no caminho
ignóbil da exploração dos trabalhadores, se tornou protagonista
como futuro de Abril.

Abril chega todos os anos.

E é um Abril jovem.

Como jovens eram todos os que, nesse dia 25 de 1974, trouxemos "alento aos
quartéis e à rua", inundando as ruas de cravos.

Disse.

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