Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Serviços de Informações não podem violar direitos constitucionais dos cidadãos

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Declaração política, a propósito de notícias relativas à actuação dos serviços de informação da República, chamando a atenção para a gravidade dessas notícias, para a necessidade de investigação política e criminal e para a criação de mecanismos legais que permitam à Assembleia o exercício dos seus poderes

Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
Os serviços de informações da República estão de novo na agenda política pelas piores razões. Não é a primeira nem a segunda vez que a credibilidade destes serviços é posta em causa na praça pública, mas, nos últimos meses, as notícias vindas a público através da comunicação social quanto a actuações ilegais e ilegítimas por parte do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa sucedem-se e assumem particular gravidade.
Primeiro foram as notícias de que o SIED, em vez de trabalhar única e exclusivamente ao serviço do Estado português, trabalhava para empresas privadas, fornecendo-lhes informações estratégicas para a sua internacionalização. Depois, foi a transferência do Director do SIED para a empresa Ongoing, levando para a actividade empresarial um conhecimento e uma experiência de mais de duas décadas nos serviços de informações. Depois, foi a notícia de que o mesmo ex-Director, após a sua transferência para o mundo empresarial, terá mantido um relacionamento ilegal com os serviços de informações que configura, no mínimo, conforme foi publicamente admitido pelo Conselho de Fiscalização do SIRP, uma violação de deveres
funcionais. Agora, no epicentro de uma turbulência relacionada com eventuais «danças de cadeiras», lamentáveis mas recorrentemente associadas à alternância dos partidos da tróica no exercício do poder, somos confrontados com a notícia de que o SIED se ocupou em devassar ilegalmente as comunicações telefónicas do jornalista Nuno Simas com o propósito de detectar eventuais fugas de informação de dentro dos próprios serviços.
Tudo isto, mas muito especialmente este último facto, ultrapassa os limites do tolerável e exige da parte das instituições democráticas uma atitude firme de defesa do Estado de direito e dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Temos de ser muito claros a este respeito e dizer três coisas.
Em primeiro lugar, há que dizer o que é óbvio: os serviços de informações não podem, em caso algum, ter acesso a dados de comunicações telefónicas dos cidadãos. Essa prerrogativa é exclusiva das autoridades judiciárias em processo criminal e reveste particulares cuidados de adequação e controlo. Se os serviços de informações, como tudo indica, tiveram acesso aos dados telefónicos do jornalista Nuno Simas, estamos não apenas perante uma ilegalidade cometida por esses serviços mas perante um ilícito criminal que não pode deixar de ser investigado e cujos autores não podem deixar de ser responsabilizados até às últimas
consequências.
Está em causa a idoneidade dos serviços de informações, está em causa a privacidade dos cidadãos, está em causa a liberdade de imprensa, está em causa a credibilidade do Estado
democrático.
Em segundo lugar, este escândalo tem de ser cabalmente esclarecido perante o País com total
transparência e não é legítimo invocar o secretismo inerente aos serviços de informações para ocultar actuações ilegais desses serviços. A actividade de recolha de informações e as informações recolhidas no âmbito dessa actividade estão a coberto do segredo de Estado, mas a garantia dos cidadãos de que os serviços de informações não recorrem a métodos ilegais e não incorrem em actuações violadoras dos direitos fundamentais dos cidadãos tem de ser dada com toda a transparência.
Perante tudo o que estamos assistir, não há hoje um único cidadão português que «ponha as mãos no fogo» pela legalidade da actuação dos serviços de informações e esse problema só é resolúvel se houver um esclarecimento público cabal sobre as ilegalidade cometidas e se forem criados mecanismos que garantam com razoável segurança que tais ilegalidades não se repitam no futuro.
A este respeito, os indícios não são animadores. A recusa do Primeiro-Ministro em facultar à Assembleia da República as conclusões da averiguação que solicitou sobre o caso que envolve o ex-Director Silva Carvalho, com a invocação do segredo de Estado, e a recusa pelos partidos da maioria em fazer depender a audição do Secretário-Geral do SIRP e do Director do SIED da conclusão de averiguações, cujas conclusões serão provavelmente ocultadas com igual invocação do segredo de Estado, são péssimos sinais quanto a uma real vontade política de esclarecer todos estes casos.
Existe hoje a convicção fundada dos cidadãos de que os serviços de informações não respeitam a lei e funcionam em «roda livre» com a «complacência activa» do poder político (para usar uma expressão ontem inventada pelo Ministro da Defesa Nacional). Perante uma situação destas, a obrigação das instituições democráticas é mostrar claramente que o seu propósito é defender os cidadãos de práticas ilegais dos serviços e não defender os serviços do escrutínio democrático dos cidadãos.
Em terceiro lugar, é preciso dizer que estes factos demonstram a absoluta falência do modelo de
fiscalização dos serviços de informações que a tróica partidária PS/PSD/CDS instituiu.
Não há nesta afirmação qualquer processo de intenções ou qualquer juízo de valor quanto à idoneidade pessoal de quem, ao longo dos anos, tem vindo a integrar o Conselho de Fiscalização do SIRP. O que dizemos é que o modelo de fiscalização instituído está muito longe de garantir ao Parlamento os meios de intervenção necessários para investigar denúncias de actuações ilegais dos serviços de informações e para prevenir a ocorrência de tais factos.
Se perante a denúncia de que os serviços de informações devassaram as comunicações telefónicas de um cidadão, jornalista, sem que o Conselho de Fiscalização tenha podido
detectar tamanha ilegalidade, a Assembleia da República se vê impedida de esclarecer o caso, porque as matérias relacionadas com os serviços de informações estão a coberto do segredo de Estado e a Assembleia da República não tem meios legais para ultrapassar a invocação do segredo de Estado por parte do Governo, estamos perante dois problemas graves: a potencial impunidade dos serviços de informações quando actuam à margem da lei e a ineficácia do Parlamento enquanto órgão fiscalizador da actuação do Governo.
A discussão sobre esta questão está já agendada para o próximo dia 8, quando for aqui discutido o projecto de lei do PCP sobre a fiscalização do SIRP e o acesso da Assembleia da
República ao segredo de Estado. Não queremos antecipar essa discussão, até porque o tempo de que hoje dispomos se está a esgotar e temos de terminar, mas temos de chamar a atenção para a grave responsabilidade que impende sobre o Parlamento nesta matéria.
O que hoje queremos deixar muito claro, para finalizar, é que as acusações que existem quanto a
actuações ilegais do SIED são gravíssimas e não podem deixar de ser investigadas em sede política e em sede criminal; que os cidadãos têm o direito de saber o resultado dessas investigações e as suas consequências; que a Assembleia da República deve usar todos os meios de que dispõe para esclarecer este caso até ao fim e tem o dever de criar mecanismos legais que permitam o cabal exercício dos seus poderes constitucionais, e que a saúde do regime democrático exige garantias suficientes de que os serviços de informações se conformem com a lei e não incorram em práticas violadoras dos direitos constitucionais dos cidadãos.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.ª Deputada Cecília Honório,
Agradeço as questões que suscitou e procurarei responder a cada uma delas.
Em primeiro lugar, entendemos que as escutas telefónicas são um meio excepcional, só utilizável em processo criminal e com as cautelas que a Constituição e a lei prevêem — e só nessas condições.
De facto, dada a excepcionalidade desta grave intromissão na vida privada dos cidadãos, só uma suspeita fundada da prática de um ilícito criminal, uma investigação criminal em curso e o necessário controlo e fiscalização por parte das autoridades judiciárias constituem a única forma admissível de realização deste tipo de diligências.
Neste sentido, pronunciamo-nos frontalmente contra quaisquer propostas que visem generalizar, de uma forma descontrolada, esse tipo de devassa, designadamente permitindo que serviços de informações possam proceder a escutas telefónicas.
Rejeitamos completamente essa possibilidade, em nome da salvaguarda dos mais elementares direitos dos cidadãos.
Relativamente à posição do Sr. Primeiro-Ministro, Sr.ª Deputada, também consideramos que não é aceitável que, perante uma questão como a que estamos a discutir, o Governo recuse à Assembleia da República qualquer informação acerca das averiguações que o Governo mandou
efectuar com a mera invocação de que se tratam de matérias sob segredo de Estado.
Sabemos que, ao abrigo da lei, as informações detidas pelos serviços de informações estão a coberto do segredo de Estado. Mas, tendo em conta as competências constitucionais do Parlamento, de fiscalização da actividade governativa, o Governo deve, a esta Assembleia, uma explicação satisfatória sobre por que razão considera que aquela informação não deve ser concedida à Assembleia da República.
Não basta a mera invocação do segredo de Estado, porque assim a Assembleia da República ver-se-á impedida de ter qualquer possibilidade de averiguar uma qualquer matéria relacionada com os serviços de informações, a menos que altere o quadro legal vigente.
A Sr.ª Deputada colocou ainda uma questão relativamente à posição tomada pela maioria no sentido de inviabilizar a audição, desde já, do Secretário-Geral do SIRP e do Director do SIED. Contestámos essa posição em sede própria, a 1.ª Comissão, porque consideramos que, nesta matéria, é urgente um esclarecimento atempado junto desta Assembleia e que os directores dos serviços de informações devem vir aqui sempre que tal for considerado necessário.
Realizar agora uma audição desses directores não inviabilizaria a realização de uma outra audição, se tal fosse necessário, após o conhecimento de outros elementos.
Mas, desde já, era urgente que esses directores se pronunciassem sobre o que está a ocorrer.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.ª Deputada Francisca Almeida,
Muito obrigado pelas suas questões.
A Sr.ª Deputada diz que o PSD quer ver esclarecidos todos os factos. Mas não parece, Sr.ª Deputada!
Em primeiro lugar, é preciso refutar, com toda a clareza, qualquer ideia de que o PCP pretenda que seja violado o segredo de Estado. Não é isso que está em causa.
Se assim fosse, então, teria de perguntar se os Srs. Deputados, que estão de acordo e consideraram adequado que o Sr. ex-Director do SIED, Silva Carvalho, que também está
vinculado pelo segredo de Estado (porque quem esteve nos serviços de informações está vinculado pelo segredo de Estado até ao fim da sua vida), venha depor à 1.ª Comissão, também estão a querer violar o segredo de Estado!
Não estão, pois não?!
Nós também não estamos quando queremos ouvir o Secretário-Geral do SIRP, que, aliás, já por várias vezes, depôs na 1.ª Comissão e, que eu saiba, nunca violou o segredo de Estado. A questão não é essa.
Se é verdade que a Assembleia da República tem de estar na primeira linha do cumprimento da lei, também é verdade que tem de estar na primeira linha para fazer o cumprimento da lei por parte dos serviços públicos, designadamente serviços com uma tão grande importância democrática como é o caso dos serviços de informações.
Portanto, entendemos que a Assembleia da República tem de fazer tudo o que está ao seu alcance, nos termos da Constituição e da lei, para promover o esclarecimento cabal de tudo o que está em causa.
Ora, compete aos membros do Governo e aos directores dos serviços, havendo matérias que devem estar salvaguardadas pelo segredo de Estado, clarificarem junto desta Assembleia quais são as razões pelas quais determinadas matérias não podem ser divulgadas, tendo em conta esses valores fundamentais que a lei visa proteger.
Também entendemos que o actual quadro legal não é adequado ao exercício cabal das competências constitucionais da Assembleia da República, por isso propomos a sua alteração. Mas não o fazemos por mediatismos. A Sr.ª Deputada sabe muito bem que o PCP apresentou o
projecto de lei que vamos discutir na próxima semana antes destes acontecimentos.
Portanto, não há aqui imediatismo algum. Infelizmente, o que está acontecer é que os factos estão a dar razão às nossas preocupações.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado Filipe Neto Brandão,
Coloca duas questões pertinentes. A primeira delas é a de saber se o eventual comportamento delituoso de um elemento do serviço de informações compromete, ou não, o próprio serviço. Sr. Deputado, tendo em conta a natureza do serviço em causa, inevitavelmente que sim.
Não sabemos, porque não temos de saber, os cidadãos não sabem, porque não têm de saber, quem são os elementos que integram os serviços de informações, dada a especial natureza e sensibilidade destes serviços.
E é por isso que os cidadãos que integram esses serviços têm uma responsabilidade acrescida, uma vez que qualquer actuação ilegal da sua parte não pode deixar de se reflectir, inevitavelmente, em perda de credibilidade dos serviços aos olhos dos cidadãos e das instituições democráticas.
Daí a especial sensibilidade deste problema, daí a necessidade inquestionável de haver mecanismos de fiscalização que permitam prevenir situações como estas. Daqui parto
para a segunda questão que o Sr. Deputado coloca, que tem a ver com o órgão fiscalizador.
Com toda a consideração que temos para com os cidadãos que têm integrado o Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República, dizemos, em primeiro lugar, que este modelo de fiscalização não é o adequado para o cabal exercício das funções constitucionais da Assembleia da República enquanto Parlamento responsável pela fiscalização da actividade governativa — e os serviços de informações e a sua tutela não podem ser exceptuados desta responsabilidade política que o Governo e a Administração têm perante a Assembleia da República — e, em segundo lugar, que os factos com que estamos confrontados demonstram a ineficácia deste mesmo modelo.
É que hoje somos confrontados com notícias de que o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa teve acesso aos dados relativos às chamadas telefónicas de um cidadão, no caso concreto um jornalista, e o Conselho de Fiscalização não teve condições para o detectar. Estamos plenamente convencidos de que se o Conselho de Fiscalização tivesse tido alguma suspeita de que isso ocorria o teria investigado. Não o fez, seguramente, porque não teve condições para o fazer, o que nos obriga a questionar o actual modelo de fiscalização.
Como é que estas coisas acontecem? Como é que um órgão de fiscalização se vê impedido de tomar conhecimento, de ter qualquer suspeita de que isso tenha ocorrido? Isto é motivo de reflexão, por isso entendemos que a Assembleia da República deve discutir com a máxima
seriedade a adopção de um modelo de fiscalização que lhe permita, não por interposto órgão mas, sim, pela própria Assembleia, ao mais alto nível, assumir responsabilidade de fiscalização e controlo quer dos serviços de informações quer do acesso ao segredo de Estado, que é uma questão que, como se compreende, está intimamente relacionada com essa.
(…)
Sr.ª Presidente, vou conter-me no tempo.
Sr. Deputado Telmo Correia, é com muito gosto que respondo às questões que me colocou. Quero dizer-lhe, em primeiro lugar, que quem pediu o relatório que o Sr. Primeiro-Ministro diz não poder enviar foi a 1.ª Comissão, consensualmente; foi, portanto, uma exigência de todos.
O Sr. Primeiro-Ministro considera que a matéria está em segredo de Estado e não o envia. Podíamos discutir os fundamentos constitucionais desta invocação mas, aceitando que possa
haver matéria sob segredo de Estado, sempre dizemos que, como é evidente, não queremos ter acesso a dados nominativos e o Sr. Primeiro-Ministro, se houver informação que considere ser segredo de Estado, deve afirmá-lo perante a Assembleia, podendo esses dados ser ocultados no documento. Ou seja, é perfeitamente possível enviar à Assembleia da República, como a qualquer outra entidade, documentos com reserva de alguns dos dados neles constantes.
O Sr. Primeiro-Ministro devia, no mínimo, ter dado uma explicação mais detalhada à Assembleia da República.
Agora, relativamente ao caso do jornalista Nuno Simas, os senhores não querem ouvir nem o director do SIED à altura nem o secretário-geral dos serviços de informações antes do relatório de averiguações.
Estão à espera de quê? Estão à espera que, daqui a uns tempos, nos seja dito que aqueles relatórios são segredo de Estado e que, portanto, não podem ser facultados à Assembleia da
República?!
Sr. Deputado, a questão é esta: os factos com que estamos a lidar são muito graves e a Assembleia da República não funciona em circuito fechado, apenas para sua auto-satisfação,
funciona porque é importante que os cidadãos tenham confiança no cumprimento da lei por parte dos serviços públicos.
Perante a denúncia de uma situação com esta gravidade, a Assembleia da República não pode protelar uma intervenção sobre esta matéria para as «calendas gregas», à espera que os cidadãos se esqueçam disto. É necessário que, em tempo útil, a Assembleia da República dê um sinal muito claro de que quer averiguar o assunto, de que quer ouvir os responsáveis pelos serviços onde estes factos ocorreram, e que o fará as vezes que forem necessárias.
A Assembleia da República deve também uma intervenção ao País e aos cidadãos perante um facto como este, e nós entendemos que esta responsabilidade não pode alienada.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.ª Deputada Heloísa Apolónia,
Agradecendo as questões colocadas, terminaria dizendo-lhe que o mais grave em tudo isto é que quando temos indicações de que há um cidadão cujas comunicações telefónicas são expiadas ilegalmente pelos serviços de informações, nenhum cidadão está em condições de «pôr as mãos no fogo» pelo cumprimento da lei por parte destes serviços.
É que, a partir daqui, ninguém sabe quem está, ou não, sob vigilância ilegal dos serviços de informações, e isto é gravíssimo. E por isto ser extraordinariamente grave é que se exige que
haja um esclarecimento cabal do que ocorreu no que respeita ao caso do jornalista em causa, que sejam apuradas responsabilidades, que quem tiver de ser responsabilizado o seja até às últimas consequências e que se criem mecanismos fiáveis para garantir que isto não ocorre, que os cidadãos portugueses possam usar as suas comunicações telefónicas no uso da sua liberdade sem terem a suspeita de que estão a ser ilegalmente devassados.
Esta é uma questão fundamental, é uma questão transcendente ao Estado democrático e é uma responsabilidade indeclinável do Parlamento criar condições para que efectivamente assim seja.

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