Intervenção de Miguel Tiago na Assembleia de República

"Quem nos quer submissos, quer-nos incultos"

Ver vídeo

''

Senhora Presidente,
Senhores Deputados,

Quem nos quer submissos, quer-nos incultos.

Uma das mais belas conquistas da Revolução de Abril foi a da democratização da criação e fruição cultural e artística, alcançada pela luta das populações e pelas estruturas de criação artística que levaram a todos os cantos do país a arte sob as mais variadas expressões. A música, as artes plásticas, o teatro, a dança, a literatura, o cinema, não só conheceram um gigantesco impulso na produção como começaram a chegar a quase todos os pontos do país pelas mãos e esforço de quem se dedicou à criação e difusão da cultura e o fim da censura permitiu a difusão de filmes, livros e peças de teatro até então proibidas.

Mas para a estratégia de saque e esbulho em curso, o Governo quer reverter essas conquistas, quer uma cultura atordoante, de entretenimento e diversão, jamais uma cultura resistente, libertadora e independente.

Quem nos quer submissos, quer-nos incultos.

O orçamento em vigor, de PSD e CDS, não atribui um único euro proveniente dos impostos para o apoio às artes ou para a produção cinematográfica. Na verdade, para as Artes, uma mísera fatia dos jogos da santa casa e para o cinema, uma taxa sobre a publicidade e os canais por subscrição. Nem mesmo o reconhecimento internacional em festivais de muitos realizadores portugueses sensibiliza o Governo e alguns têm de assegurar deslocações e participação nesses festivais por meios próprios.

As funções culturais do Estado subsumem-se na propaganda de regime, na promoção de um ou outro rosto da cultura pop, e enquanto se afundam milhares de euros em eventos semi-publicitários e na criação de marcas tendo como pretexto a arte, aplica-se à criação artística democrática uma censura financeira.

Tal como o Partido Comunista Português vem denunciando, o resultado dos concursos de apoio às artes, revela a justeza das críticas que têm sido feitas a um Governo que pretende a aniquilação da liberdade artística em Portugal. Pela forma: com atrasos, alteração de regras a meio dos concursos – nos apoios directos e indirectos -, arbitrariedades técnicas e estéticas, revelação dos resultados aos soluços; pelo conteúdo: com cortes de praticamente metade dos valores de financiamento e diminuição do número de candidaturas financiadas. De 2009 a esta parte, o cortes no apoio directo às artes é superior a 75%.

Para o PCP, que fique claro, não se trata de um subsídio bondoso do Governo como querem fazer crer PS, PSD e CDS: trata-se do financiamento devido àqueles que são os verdadeiros criadores e actores da cultura em Portugal, do seu salário, dos seus direitos.

Estas estruturas integram plenamente o Serviço Público de Arte e Cultura que o Estado deve assegurar e que cada vez menos garante. Vejam-se as privatizações e concessões na área dos Palácios e Monumentos, o abandono do património, a apropriação de teatros históricos por bancos, o encerramento de centenas de salas de cinema por todo o país, a asfixia dos cineclubes, a destruição da Tobis, o estrangulamento da cinemateca, a penúria forçada das estruturas de criação.

No cinema, o Governo não abriu os concursos durante um ano inteiro e este ano já está a incumprir prazos. Na literatura, desde 2009 que não se realizam quaisquer concursos. Nas restantes artes, a liquidação prossegue com corte após corte e sacrifica a criação por uma cada vez maior burocratização e desmantelamento da DGArtes. Que será das companhias e estruturas das mais diversas disciplinas, do teatro ao design? Que será dos trabalhadores das artes e do espectáculo, dos técnicos, autores, intérpretes?

Da precariedade laboral no sector, da sua desprotecção social, na maternidade, paternidade e doença, do roubo imposto pela Segurança Social, que são já a regra, passaremos ao desemprego massivo. Da produção artística e cultural, livre, alternativa, passaremos à monocultura dominante e entorpecedora.

Senhora Presidente,
Senhores Deputados

No ano em que comemoramos o centenário do nascimento de Álvaro Cunhal, comunista, intelectual, também homem das artes e da cultura, relevamos a sua concepção da arte como valor humano, mas mais do que isso, como valor social. Um valor social que a censura financeira que este Governo de traição nacional não calará.

Não aceitamos uma cultura marginal quando marginal é o Governo. Cada vez menos faz sentido disputar migalhas ou esmolas a que um qualquer Governo chama subsídios. Urge uma política de financiamento com recursos suficientes: 1% para a Cultura! Queremos concursos, mas não quaisquer concursos. Concursos transparentes, democraticamente escrutináveis, que saibam distinguir entre as companhias de repertório e as de experimentação e investigação, que garantam o direito a elevar a nossa consciência enquanto seres humanos, em todas as suas dimensões. Por isso mesmo, hoje no parlamento, amanhã na rua, estaremos com as estruturas, criadores, autores e actores que se manifestarão por uma outra política cultural.

Neste “tempo mau para lirismos” não é vergando a dignidade e a cultura de um povo que se ultrapassam as dificuldades.

É tomando-as como bandeiras e afirmando-as na luta todos os dias, com o trabalho, as artes e a cultura, lado-a-lado, que encontraremos os valores de Abril, porque a liberdade passa pela Cultura. Não há democracia sem direito ao trabalho, sem direitos sociais, sem saúde, sem educação. Não há democracia sem cultura, sem o direito a criar e o direito de todas as pessoas a fruírem dessa criação. Rasgar o pacto de agressão, demitir o governo, acabar com a alternância entre PS, PSD, CDS, é o primeiro passo para repor os valores de Abril no futuro de Portugal.

  • Assuntos e Sectores Sociais
  • Cultura
  • Regime Democrático e Assuntos Constitucionais
  • Trabalhadores
  • Assembleia da República
  • Intervenções
  • Álvaro Cunhal