Declaração de Voto

Projeto de Lei Gestação de Substituição

Projeto de Lei Gestação de Substituição

"A regulamentação da gestação de substituição levanta um conjunto de questões que não podem deixar de ser ponderadas em todas as suas dimensões. Esta é uma matéria, que envolve quem recorre à gestação de substituição, quem aceita fazê-lo e a criança.

Nas audições realizadas no âmbito do grupo de trabalho da Comissão de Saúde que se debruçou também sobre esta matéria, não se verificou um consenso generalizado em torno da gestação de substituição. Foram suscitadas diversas preocupações sobre as implicações da gestação de substituição, não só relativamente às pessoas que possam recorrer a esta técnica mas também relativamente às crianças geradas.

Em geral, reconhece-se que a gestação de substituição enquanto técnica de procriação medicamente assistida introduz enormes complexidades e especificidades que devem ser devidamente ponderadas e que não podem ser desprezadas.

Ao contrário das demais técnicas de procriação medicamente assistida previstas no quadro jurídico, a gestação de substituição exige a participação ativa e direta de uma terceira pessoa na gestação, o que exige a avaliação e a ponderação dos seus impactos nas diferentes dimensões. A gestação de substituição tem implicações físicas e psíquicas que não podem ser ignoradas e que exigem uma reflexão acrescida – a intervenção direta de uma terceira pessoa, uma outra mulher que intervém profundamente no processo de gravidez, introduz um conjunto de potenciais conflitos e questões éticas que têm de ser consideradas, não só relativamente à relação entre as pessoas envolvidas na técnica mas também à relação entre as mesmas e a criança gerada.

Suportar uma gravidez durante nove meses é algo que conduz a enormes transformações na mulher e no seu corpo, em que se tecem ligações afectivas e emocionais da grávida com o ser que está a gerar. Na verdade seria profundamente errado considerar que, pelo facto de uma mulher aceder a ter uma gestação de substituição, é como se nada tivesse ocorrido no que a gravidez tem de biológico, psicológico e afectivo.

Nas audições realizadas foram levantadas preocupações quanto aos critérios para aceder à gestação de substituição propostos pela presente iniciativa legislativa. Propõe-se que, além das mulheres sem útero ou com lesão ou doença no útero, tenham também acesso à gestação de substituição as mulheres noutras “situações clínicas que o justifiquem”. Este critério tem uma natureza subjetiva, permitindo o alargamento do recurso à gestação de substituição sem ser em função de um critério objetivo.

Há igualmente preocupações, que não podem ser subestimadas ou ignoradas, com a instrumentalização da vida e do corpo humano, neste caso do corpo da mulher e dos seus órgãos reprodutores. Apesar do texto proibir a existência de contratos com motivações económicas, a verdade é que não é possível fiscalizar e assegurar que assim seja de facto.

Além disso, estas preocupações relativas à não instrumentalização da vida e do corpo humano não são exclusivas desta técnica, são igualmente critério geral para a utilização das técnicas de procriação medicamente assistida para que não seja permitida a sua utilização para fins indesejados.

Foram colocadas também preocupações com a mulher que suporta a gravidez, nomeadamente no que se refere à salvaguarda do seu bem-estar, integridade física, bem como a garantia dos seus direitos, não só durante a gravidez mas também no período posterior.

A qualquer momento pode ocorrer o incumprimento do contrato. Quando é quebrado por vontade dos beneficiários, quem fica responsável pela criança? Ou quando é quebrado pela gestante que se nega a entregar o bebé? E noutras situações, como a de os beneficiários rejeitarem um bebé com deficiência ou uma doença grave e incapacitante, que soluções deve prever a lei? A imprevisibilidade de situações é bastante, quando já há um novo ser que nasceu que tem direito a ser desejado e amado e o texto aprovado não assegura resposta adequada.

De resto, o facto de o texto legislativo ter sido alterado no próprio dia da votação, suprimindo-se o n.º 10 do art. 8.º que dispunha que “No caso previsto no número anterior [celebração de contratos de gestação em violação do disposto na lei], caso a gestante de substituição assim o declare no período de 48 horas após o parto, é a mesma havida como mãe da criança nascida, aplicando-se o estabelecido no n.º 7 se essa declaração não for prestada nesse prazo.”, revela a necessidade de melhor ponderação de todas as implicações desta possibilidade agora permitida pela lei.

O Conselho Nacional de Ética para a Ciências da Vida (CNECV) manifestou em audição preocupação relativamente ao facto de a presente iniciativa não conter qualquer referência à proteção da criança. O superior interesse da criança é algo que deve prevalecer sobre tudo o resto, deve ser incondicionalmente assegurado e nunca pode ser colocado em causa.

O parecer do CNECV de 11 de março de 2016 entende que “o texto proposto não responde à maioria das objeções e condições que o Conselho, já no seu parecer 63/CNECV/2012, tinha considerado cumulativamente indispensáveis, de que se destacam:

- A informação ao casal beneficiário e à gestante de substituição sobre o significado e consequências da influência da gestante no desenvolvimento embrionário e fetal;

- Os termos da revogação do consentimento, e as suas consequências;

- A previsão de disposições contratuais para o caso de ocorrência de malformações ou do enças fetais e de eventual interrupção da gravidez;

- A decisão sobre quaisquer intercorrências de saúde ocorridas na gestação, quer a nível fetal, quer a nível materno”.

O âmbito de utilização desta técnica não se resume às situações em que mulheres motivadas por genuínos sentimentos de solidariedade e até laços familiares se disponibilizam a gerar uma criança que não será tida como sua filha. O âmbito é muito mais alargado e os problemas e dúvidas que coloca devem ser devidamente ponderados e solucionados legalmente. O Grupo Parlamentar do PCP vota contra a presente iniciativa não por insensibilidade perante o legítimo desejo de ser mãe, por parte do universo de mulheres a quem esta iniciativa legislativa se destina, mas por considerar que o texto aprovado não reflete a necessidade de ponderação de todas essas implicações nem responde de forma adequada aos problemas identificados.

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