Requerimento

Pedido de Fiscalização da Lei nº 83-C/2013 - Orçamento Retificativo

Pedido de Fiscalização da Lei nº 83-C/2013 - Orçamento Retificativo

Exmo. Senhor Presidente do Tribunal Constitucional,

Os Deputados da Assembleia da República abaixo-assinados, em número superior a um décimo dos Deputados em efetividade de funções, ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 1 e na alínea f), do n.º 2, do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 51.º e 62, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 143/85, de 26 de novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 de setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de setembro, e pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro), requerem ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma contida no artigo 2.º da Lei n.º 13/2014, de 14 de março, que procede à primeira alteração à Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2014).

Introdução

1. O Orçamento de Estado para 2014, aprovado pela Lei n.º 83-C /2013, de 31 de dezembro, contém um conjunto de normas que os requerentes, oportunamente, requereram que fossem submetidas a fiscalização abstrata sucessiva, por considerarem que estavam feridas de inconstitucionalidade.

2. Nove dias após a publicação do Orçamento do Estado para 2014 o Governo aprovou, em Conselho de Ministros, a proposta de lei que procede à primeira alteração à Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2014) a fim de, alegadamente, dar “resposta à necessidade de dar cumprimento ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 862/2013” o qual teria colocado “em risco o cumprimento das metas orçamentais para 2014”.

3. Outras dimensões de justificação e fundamentação para as medidas restritivas consagradas nesta lei são avançadas na exposição de motivos que a antecede sendo, inclusive, efetuado um ensaio da aplicação do princípio da proporcionalidade no qual o Governo, enquanto proponente desta lei, conclui pela conformidade constitucional destas normas.

4. No entanto, os requerentes acreditam, pelo contrário, que a desconformidade com a Constituição é manifesta e é exatamente essa convicção que justifica o presente pedido de fiscalização.

5. O art.º 2 da Lei n.º 13/2014, de 14 de março, que procede à primeira alteração à Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2014) procede à alteração da redação do art.º 14.º e do art.º 76.º.

6. Através da alteração à redação do art.º 14.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, procede-se ao estabelecimento da transferência de 50% da receita da entidade empregadora pública resultante das contribuições desta para o financiamento da ADSE e, através da alteração da redação do art.º 76.º da referida lei, prevê-se o alargamento da base de incidência da Contribuição Extraordinária de Solidariedade para os 1.000€ e à redefinição dos seus escalões superiores.

7. O Governo pretende justificar estas medidas, de uma maneira geral, na sua excecionalidade e transitoriedade. A este propósito se reafirma a ideia de que a vigência anual das Leis do Orçamento do Estado está a ser utilizada para, em termos formais, emprestar um caráter transitório a medidas que possuem (e como tem sido afirmado e confirmado por membros do Governo), caráter tendencialmente permanente e definitivo.

8. Contra este argumento da “transitoriedade” e “excecionalidade” das medidas ora sindicadas depõe a própria exposição de motivos que acompanhava esta lei na sua fase de proposta de lei que afirmava, relativamente à Contribuição Extraordinária de Solidariedade, que esta se assume “quer como uma medida complementar às reformas estruturais já em curso no sistema (…) quer como antecipadora de outras reformas duradouras”.

9. Depõe também contra esta linha de argumentação justificativa, entre outras, a intervenção do Sr. Primeiro-ministro no debate quinzenal de 05 de março na Assembleia da República, no qual este afirma que “Não podemos regressar ao nível salarial de 2011 nem ao nível das pensões de 2011”, assim bem ilustrando que a utilização desta fundamentação para as medidas de austeridade perdeu qualquer operatividade.

Da inconstitucionalidade da alteração da redação do art.º 14.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, pela Lei n.º 13/2014, de 14 de março, que procede à primeira alteração à Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2014)

1. A ADSE, enquanto organismo e sistema, foi criada em 1963 com a denominação de “Assistência na Doença dos Servidores Civis do Estado”. Atualmente corresponde à Direcção-Geral de Proteção Social aos Trabalhadores em Funções Públicas, sendo um serviço integrado do Ministério das Finanças, dotado de autonomia administrativa, que tem a responsabilidade de gerir o sistema de proteção social aos trabalhadores do sector público administrativo.

2. O seu principal propósito é garantir o acesso efetivo dos trabalhadores da Administração Pública e alguns dos seus familiares à proteção social no âmbito dos cuidados de saúde e prestar o apoio devido aos beneficiários, especialmente num quadro de grave e continuada carência económica.

3. As alterações introduzidas pela modificação da redação do art.º 14.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, procedem à inscrição no Orçamento do Estado para 2014, da reversão para os cofres do Estado de 50% da receita da entidade empregadora pública prevista no artigo n.º 47.º-A do Decreto-Lei n.º 118/83, de 25 de fevereiro.

4. Na exposição de motivos apresentada juntamente com a proposta de lei que deu origem à presente lei (proposta de lei n.º 193/XII) não é adiantada nenhuma justificação individualizada para esta alteração ao artigo 14.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, a não ser a suposta necessidade de proceder em conformidade com o decidido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 862/2013, de 19 de dezembro.

5. No entanto, o artigo 47.º-A do Decreto-Lei n.º 118/83, de 25 de fevereiro, determina que a contribuição das entidades públicas empregadoras para a ADSE é de 1,25% das remunerações dos trabalhadores e que “A receita prevista no número anterior é receita própria da ADSE e destina-se ao financiamento do sistema de benefícios assegurados pela ADSE, incluindo os regimes livres e convencionados”.

6. Também o artigo 48.º do referido Decreto-Lei estabelece que: “As importâncias descontadas nos termos dos artigos anteriores constituem receita da Direcção-Geral de Protecção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública, afeta ao financiamento dos benefícios do presente diploma.”

7. Pode, consequentemente, afirmar-se que no regime legal vigente, as contribuições dos trabalhadores e da entidade empregadora para os regimes de proteção social se tratam de verdadeiras contribuições, cuja receita se encontra consignada ao fim específico em nome do qual foi criada.

8. No entanto, na situação que ora se coloca, tudo leva a crer que estamos fora do campo das “demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas”, previsto na alínea i) do n.º 1 do art.º 165.º de Constituição da República Portuguesa e que estamos mais próximos da figura do imposto.

9. Pela sua construção, as “demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas”, correspondem a impostos especiais, que apresentam a especificidade de se basearem numa contraprestação de natureza grupal, funcionando de forma mais próxima das taxas, como um preço público. Encontram-se sujeitas, portanto, ao teste da proporcionalidade, entre o preço a pagar e a contraprestação específica, desde que se mantenha uma estrutura sinalagmática.

10. Quanto aos impostos, estes podem ser definidos com recurso a determinadas características - uma prestação pecuniária, unilateral, definitiva e coativa, exigida a detentores de capacidade contributiva, a favor de entidades que exerçam funções públicas, destinando-se à concretização ou realização dessas mesmas funções públicas.

11. Enquanto no Acórdão n.º 187/2013, o Tribunal Constitucional entendeu que a CES não poderia ser considerada um imposto, na medida em que estava “estreitamente associada aos fins da segurança social”, beneficiando os pensionistas da solvabilidade do sistema, nesta situação encontramos a situação inversa, de uma receita obtida por via da contribuição dos trabalhadores para a ADSE e destinada a esse fim específico, ser convertida em receita geral do Estado, suscetível de ser mobilizada para os seus fins gerais.

12. Acresce ainda que, a referência que se fazia no referido Acórdão à unilateralidade enquanto elemento caracterizador do imposto, apenas vem confirmar a conversão desta contribuição num imposto pois, na presente situação e fruto do destino de parte da contribuição dos trabalhadores, é posta em causa a relação sinalagmática intrínseca às contribuições.

13. Contudo, esta alteração tem de ser analisada conjuntamente com a Proposta de Lei n.º 211/XII, que deu entrada na Assembleia da República após o veto presidencial do Decreto do Governo, mantendo o mesmo conteúdo, na qual são avançadas algumas explicações.

14. Na verdade, apenas com este aumento da taxa de contribuição dos beneficiários e a correspondente revisão em alta das receitas provenientes da ADSE é possível o estabelecimento da entrega de metade da contribuição da entidade empregadora aos cofres do Estado, daqui se percebendo que o efeito útil em termos orçamentais está dependente da aprovação conjunta de ambas as normas que, ainda que juridicamente autónomas, são estruturalmente dependentes.

15. Assim, o aumento da contribuição dos trabalhadores é justificado, em primeira linha, como uma forma de “preencher o problema orçamental criado sem baixar dos € 1.000 na aplicação da referida CES”.

16. Em segunda linha, é referido o objetivo do autofinanciamento dos subsistemas de proteção social no âmbito dos cuidados de saúde, assentando exclusivamente nas contribuições dos beneficiários e visando, no médio e longo prazo, a sua autossustentabilidade.

17. Quanto a estes argumentos, cumpre realçar a inaptidão e desadequação desta medida ao cumprimento dos objetivos a que se propõe, uma vez que, a determinado nível, são contraditórios. Se a pretensão é caminhar no sentido da auto sustentabilidade de um subsistema, não se pode desorçamentá-lo, de forma a financiar o Orçamento do Estado.

18. A consideração destes dois elementos, ou seja, o efeito conjugado da alteração ao Orçamento de Estado e da emissão de um diploma com aquele aumento da contribuição dos beneficiários, corresponde à repercussão sobre os trabalhadores de maiores encargos e despesas com o financiamento do Estado, cosmeticamente mascarado de contribuição para os subsistemas de proteção social.

19. De uma maneira geral, significa que a comparticipação do beneficiário passará a corresponder a 3,5%, ou seja, mais 1 ponto percentual relativamente à previsão inicial inscrita na Lei n.º 83-C/2013. Importa ainda recordar os sucessivos aumentos da contribuição dos trabalhadores para a ADSE, que passaram de 1% para 1,5% em 2006, de 1,5% para 2,25% em Agosto de 2013, de 2,25% para 2,5% no Orçamento do Estado para 2014 e, finalmente, de 2,5% para 3,5%, no Orçamento Retificativo, aprovado pela Lei n.º Lei n.º 13/2014, de 14 de março.

20. A tradução orçamental do aumento da taxa de contribuição dos trabalhadores de 2,5% para 3,5% determina um aumento de 133 milhões de euros de receita face ao previsto na versão inicial do Orçamento do Estado para 2014. Relativamente ao 1.º semestre de 2013, portanto em cerca de 8 meses, verifica-se uma subida de 133% contribuição dos trabalhadores e dos aposentados da Função Pública para a ADSE.

21. Segundo dados constantes do Plano de Atividades da ADSE para 2013, é possível verificar que em 2011 os beneficiários suportavam 39,6% do financiamento da ADSE, enquanto o Estado suportava 60,4% mas, em 2013 os beneficiários suportavam já 63% do financiamento, contra os 37% suportados pelo Estado.

22. Se no primeiro semestre de 2013 e com uma taxa de contribuição de 1,5%, os beneficiários assumiam 63% do financiamento é fácil concluir que um aumento de 133%, para uma taxa de 3,5%, é claramente excessivo. Senão, vejamos: em 2013 a ADSE já teve um excedente de 55,2 milhões de euros; em 2014 prevê-se que esse excedente seja de 284,7 milhões de euros, sendo desses 140,7 milhões de euros fruto das contribuições excessivas dos beneficiários, trabalhadores e aposentados da Função Pública.

23. Com este aumento da taxa de contribuição para 3,5%, a ADSE obtém 579 milhões de euros de receita, sendo esse valor 140,7 milhões de euros superior à despesa orçamentada para o ano de 2014, que se cifra em 438,3 milhões de euros.

24. Quanto ao grau de adequação ou aptidão há que ter em consideração que o efeito decorrente destas medidas envolve um elevado grau de incerteza, na medida da eventual ajustabilidade do comportamento dos beneficiários, nomeadamente pela possibilidade de saídas voluntárias, o que implicará um acréscimo das despesas do SNS, para o qual estes beneficiários também contribuíram por via do IRS.

25. Assim, é lícito concluir que é desde logo posta em causa a adequação, idoneidade e aptidão desta medida à realização do fim a que se propõe, ou que pelo menos há um determinado grau de incerteza na medida do seu contributo para o alcançar.

26. No entanto, do efeito conjugado destas medidas é possível extrair outro tipo de afetação constitucional, desta senda de natureza tributária.

27. O aumento de 1 ponto percentual da contribuição dos trabalhadores tem, supostamente, como destino o financiamento do subsistema de proteção social (ADSE, ADM e SAD).

28. Ao mesmo tempo, 50% da contribuição da entidade empregadora, calculada em 1,25% da remuneração dos trabalhadores, tem como destino os cofres do Estado.

29. Parece, então, lícito concluir que 0,625% da contribuição dos trabalhadores que passa a dar entrada nos cofres da ADSE está a ser retirada por outra via, pela via da transferência de metade da contribuição da entidade empregadora pública para os cofres gerais do Estado.

30. Assim, do aumento de 1 ponto percentual dos trabalhadores, 0,625% tem como objetivo colmatar a retirada, para os cofres do Estado, de 50% da contribuição da entidade empregadora pública, ou seja, 0,625% da remuneração dos trabalhadores, está a ser utilizada, por esta via, para o financiamento geral do Estado.

31. Face a esta percentagem, estamos em face de um imposto sobre o rendimento pessoal diverso do IRS, que atinge apenas uma categoria de pessoas, os beneficiários destes subsistemas de proteção social, o que se mostra violador do princípio da unidade fiscal, previsto no artigo 104.º da Constituição da República, que afirma que os cidadãos são tributados sobre o seu rendimento pessoal através de um imposto único e progressivo, que terá necessariamente em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar, e nunca constituído em função das categorias sociais ou funcionais em que o sujeito passivo se insere.

32. Faz-se assim repercutir a incidência subjetiva deste imposto, que visa o financiamento geral do Estado, ainda que de forma indireta, sobre os trabalhadores e aposentados.

33. Estando perante um imposto que incide sobre o rendimento pessoal, distinto do IRS e que atinge apenas uma categoria de pessoas é violado o princípio da unidade tributária, previsto no art.º 104.º/1 da Constituição da Republica, bem como o princípio da igualdade inscrito no art.º 13.º/2 da Constituição da Republica Portuguesa, a respeito do qual se recupera a seguinte consideração tecida pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 353/2012:

“O princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, enquanto manifestação específica do princípio da igualdade, constitui um necessário parâmetro de atuação do legislador. Este princípio deve ser considerado quando o legislador decide reduzir o défice público para salvaguardar a solvabilidade do Estado. Tal como recai sobre todos os cidadãos o dever de suportar os custos do Estado, segundo as suas capacidades, o recurso excecional a uma medida de redução dos rendimentos daqueles que auferem por verbas públicas, para evitar uma situação de ameaça de incumpri-mento, tam¬bém não poderá ignorar os limites impostos pelo princípio da igualdade na repartição dos inerentes sacrifícios. Interessando a sustentabilidade das contas públicas a todos, todos devem contribuir, na medida das suas capacidades, para suportar os rea¬justamentos indispensáveis a esse fim.”

34. Conclui-se assim, pela violação do princípio da igualdade, consagrado no art.º 13.º/2 da Constituição da República Portuguesa.

Da inconstitucionalidade da alteração da redação do art.º 76.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, pela Lei n.º 13/2014, de 14 de março, que procede à primeira alteração à Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2014)

1. Na parte que se refere à alteração da redação do art.º 76.º da Lei n.º 83-C/2013, cumpre tecer um conjunto de considerações acerca da matéria em causa, a Contribuição Extraordinária de Solidariedade, e do seu alcance e extensão.

2. Assim, o que está aqui fundamentalmente em causa é uma alteração que se materializa no acréscimo da sua base de incidência e a redefinição dos limites dos escalões superiores. Alargando-se a base de incidência, passa-se a atingir um conjunto de pensionistas que anteriormente ficava excluído da aplicação desta medida, pelo que se mostra a ser necessário efetuar um novo confronto constitucional, na medida em que o universo dos sujeitos afetados pela medida restritiva sofreu uma alteração considerável.

3. O alargamento da base de incidência da Contribuição Extraordinária de Solidariedade passa a atingir cerca de mais 110 mil pensionistas, o que representa uma alargamento de 40,6% do universo dos sujeitos afetados.

4. Avança ainda o Governo, enquanto proponente das normas, motivos relacionados com a “sustentabilidade e funcionamento do próprio Estado”, bem como a “ameaça de rutura do sistema previdencial (…) num contexto de emergência social e económica”, colocando ainda a necessidade de “satisfação dos compromissos assumidos pelo próprio Estado”.

5. Partindo do pressuposto de que o alargamento da base de incidência da contribuição extraordinária de solidariedade não altera o seu figurino ou a sua fisionomia constitucional e de que é assegurada a garantia do mínimo a uma existência condigna, o Governo concluiu pela adequação, necessidade e proporcionalidade desta medida e, assim, pela sua adequação proporcional.

6. Os requerentes não creem que assim seja pelo que pretendem proceder ao confronto da norma com a Constituição e dos seus princípios estruturantes, de forma a concluir pela sua desconformidade com estes e, portanto, pela sua inconstitucionalidade.

7. Vejamos, então, qual a afetação do direito fundamental à segurança social, nomeadamente na sua vertente de direito à pensão.

8. O Direito à segurança social corresponde a um direito social de natureza positiva, podendo ser reconduzido ao direito que os indivíduos e as famílias têm à segurança económica e concretizando-se fundamentalmente em prestações pecuniárias que visam garantir as necessidades de subsistência que derivam da interrupção dos rendimentos do trabalho, tentando garantir de modo e de forma o mais aproximada possível, rendimentos de substituição dos rendimentos do trabalho perdidos.

9. A sucessiva jurisprudência constitucional tem considerado o direito à proteção na reforma como um direito ao repouso (“alternativa de repouso com garantia de um sucedâneo da retribuição, antes percebida pela prestação de trabalho” ), como um direito à segurança económica das pessoas idosas (como estabelecido no art.º 72.º/1 da Constituição da República Portuguesa e no sentido do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 435/98) e como uma manifestação do direito à segurança social radicada no principio da dignidade da pessoa humana (“visando assegurar, designadamente àqueles que terminaram a sua vida laboral ativa, uma existência humanamente condigna” ).

10. Também para as pensões de invalidez e de sobrevivência se aplica esta ideia de proteção e da garantia de rendimentos substitutivos dos rendimentos do trabalho, para aqueles que deixaram de ter capacidade de trabalho, na primeira situação e para assegurar a proteção dos familiares sobrevivos face a uma diminuição dos rendimentos do agregado, na segunda situação.

11. O Tribunal Constitucional, no seu mais recente Acórdão sobre a matéria afirmou que caberia ao legislador ordinário “em função das disponibilidades financeiras e das margens de avaliação e opções políticas decorrentes do princípio democrático, modelar especificamente esses elementos de conteúdo das pensões.”

12. Assim, o legislador possui margem para conformar o conteúdo concreto do direito à pensão desde que respeitados os limites constitucionais, pelo que afirmar o direito constitucional à pensão não é o mesmo que afirmar o direito constitucional àquele valor de pensão. O direito a determinado valor de pensão é determinado através de lei ordinária, sendo então a sua vinculatividade jurídica de valor infraconstitucional.

13. No entanto, como acima se afirmou, a partir do momento em que o legislador ordinário fixou, com elevado grau de precisão e certeza, o conteúdo desse direito, este passa a assumir-se na ordem jurídica como plenamente densificado e definitivo, constituindo-se na consciência jurídica geral com um determinado grau de sedimentação, conferindo-lhe o estatuto de direito materialmente constitucional.

14. Ainda que o Tribunal Constitucional opte por não aderir ao entendimento, defendido por alguma doutrina nacional, de que essa mesma concretização passa a integrar a norma de direito fundamental, visto como um todo, passando a estar abrangida pela proteção específica atribuída aos direitos fundamentais, considerará necessária a sua submissão ao respeito pelos limites constitucionalmente impostos, nomeadamente os que derivam do princípio do Estado de Direito Democrático.

15. Convoca-se assim a confrontação desta norma com os princípios da proibição do excesso (ou proporcionalidade em sentido amplo) e da proteção da confiança.

16. Relativamente ao princípio da proibição do excesso, este reconduz-se à generalidade dos controlos e parâmetros constitucionais relacionados com a adequação substancial de uma medida restritiva da liberdade ou de direitos constitucionalmente garantidos, assumindo-se como referência fundamental na fiscalização da atuação dos poderes públicos num Estado de Direito e como principal instrumento de controlo da atuação restritiva de direitos fundamentais e da liberdade individual.

17. Este princípio decorre inquestionavelmente da própria ideia de Estado de Direito, ínsita na nossa Constituição, que ainda que não se refira expressamente à proporcionalidade como parâmetro de controlo, passou a incluir, a partir da revisão constitucional de 1982, a ideia de proibição do excesso, no seu art.º 18.º/2: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”

18. A qualidade de idoso e/ou de portador de invalidez implica, em regra, limitações e necessidades específicas, inerentes àquela qualidade, nomeadamente uma menor autonomia e uma maior dependência de terceiros. Estas necessidades específicas e os cuidados de saúde imprescindíveis correspondem a despesas, usualmente avultadas, que se somam às necessidades básicas de sobrevivência, como as despesas com a habitação (renda, água, gás, eletricidade, etc…) e com a alimentação, ou seja, este conjunto de sujeitos tem, normalmente, o seu rendimento consignado a uma leque de despesas mensais fixas, que incidem sobre uma única fonte de rendimento – a pensão.

19. Recorda-se que segundo dados disponíveis relativos aos valores de referência para «efeitos de comparticipação familiar em lar de idosos», estabelecidos nos sucessivos protocolos de Cooperação celebrados entre o Ministro da Solidariedade, Emprego e Segurança Social e a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade ou entre este e a União das Mutualidades Portuguesas, em 2013 o valor de referência era de 938,43€. Há assim, uma assunção tácita por parte do Ministro da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, que o valor de referência para a sobrevivência de um idoso com determinadas necessidades de acompanhamento e apoio de terceiros se cifra acima dos 900€.

20. O alargamento da base de incidência da Contribuição Extraordinária de Solidariedade tem impactos significativos na capacidade do titular de uma pensão, em especial quando estiverem em causa pensões de valor mais reduzido, poder desenvolver práticas vivenciais compatíveis com uma existência condigna e independente, bem como dificulta as suas condições económicas de fazer face a um conjunto de encargos, gerais e específicos, da sua condição.

21. Assim, traduzir-se-á num sacrifício especialmente intenso, que ultrapassa em larga medida os limites da proporcionalidade, mostrando-se desrazoável e excessivo no quadro dos sujeitos afetados, que são precisamente aqueles que convocam os valores da solidariedade e da proteção social.

22. Quanto à aplicabilidade do princípio da proteção da confiança, este princípio ainda que não expressamente referido na Constituição da República Portuguesa, corresponde a um princípio essencial na Constituição material do Estado de Direito, retirando-se do art.º 2.º da Constituição e consubstanciando-se na ideia de estabilidade e segurança jurídica.

23. De acordo com o Acórdão n.º 128/2009, do Tribunal Constitucional:
Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da atuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui proteção”

24. As expectativas dos particulares na continuidade do quadro normativo, no âmbito dos regimes de pensões, são especialmente intensas, na medida em que são expectativas que se alicerçaram com o decurso do tempo e com a sucessiva entrega de contribuições, apoiando-se em atividades e atitudes incentivadoras do próprio Estado, através do cumprimento, pelos particulares, da obrigação contributiva. Ainda que o Tribunal Constitucional já tenha afirmado que o direito à pensão não significa o direito a determinado montante de pensão, há que ter em conta que o pensionista efetua descontos percentuais legalmente determinados sobre os seus rendimentos do trabalho, para que adiante, possa usufruir duma pensão que pretende refletir as remunerações que auferia quando no ativo e substituir os rendimentos do trabalho.

25. A partir do momento em que o sujeito se torna titular do direito à pensão, este entra na sua esfera jurídica “com a natureza de um verdadeiro direito subjetivo, um «direito adquirido» que pode ser exigido nos termos exatos em que foi reconhecido” .

26. Os sujeitos a quem se dirige a presente norma fizeram, efetivamente, planos de vida com base na expectativa de continuidade do quadro normativo, mesmo que esses planos de vida, em concreto, apenas se traduzissem na sobrevivência e na manutenção de uma existência condigna.

27. Quanto ao interesse público subjacente à emissão da norma, este corresponde, aproximadamente, ao arrecadar de cerca de 174 milhões de euros, como forma de, através da repercussão sobre a mesma categoria de sujeitos (reformados, aposentados e pensionistas) da necessidade de ultrapassar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Acórdão n.º 862/2013 do Tribunal Constitucional.

28. Ainda que se possa considerar a relevância do interesse público subjacente à diminuição do défice, este não poderá ser feito à custa das condições de sobrevivência e dignidade dos pensionistas, nem do atropelar da confiança que estes foram depositando na atuação do Estado.

29. Acresce a este argumento o facto de, no ano fiscal de 2013, o Governo ter omitido das contas públicas 1.045 milhões de euros, não tendo revelado a totalidade do montante atribuído às SGPS (Sociedades Gestores Participações Sociais) a título de benefícios fiscais, o que comprova que uma ligeira redução dos benefícios fiscais atribuídos em sede de IRC seria suficiente para que o Estado obtivesse a mesma receita esperada pelo agravamento da CES, sendo assim demonstrado que esta violação dos direitos dos pensionistas é desnecessária e, portanto, inconstitucional.
30. É assim de concluir pela violação dos princípios da proporcionalidade (em sentido amplo) e da proteção da confiança inscritos, respetivamente, nos artigos 18.º/2 e 2.º da Constituição da República Portuguesa.

Em conclusão

Pelas razões expostas, os Deputados à Assembleia da República abaixo-assinados, ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 1 e na alínea f), do n.º 2, do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 51.º e 62, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro), requerem ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da alteração ao art.º 14.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, por violação do princípio da igualdade previsto no art.º 13.º/2 da Constituição da República Portuguesa, e da alteração ao art.º 76.º da referida, por violação dos princípios da proporcionalidade e proteção da confiança, inscritos respetivamente nos artigos 18.º/2 e 2.º da Constituição da República Portuguesa, constantes do artigo 2.º da Lei n.º 13/2014, de 14 de Março, que procede à primeira alteração à Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2014).

Mais solicitam os requerentes, ao abrigo do n.º 4 do artigo 65.º da Lei de Organização e Funcionamento do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro), que, tendo em consideração os sérios prejuízos que a incerteza gerada pela pendência de um processo de fiscalização da constitucionalidade de uma Lei que procede à primeira alteração a uma Lei do Orçamento do Estado implica seguramente, quer para o funcionamento do Estado, quer para os cidadãos cuja tutela de direitos se encontra pendente dessa apreciação jurisdicional, V. Ex.ª pondere a atribuição de prioridade à apreciação e decisão do presente processo.

Assembleia da República, 26 de março de 2014

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