Intervenção de

Finanças Locais - Intervenção de Honório Novo na AR

Lei das Finanças Locais

 

Sr. Presidente,
Sr. Ministro de Estado e da Administração Interna,

Ouvi-o apresentar este pacote legislativo, reflecti comigo mesmo e a primeira sensação que tenho é a de que não esperava que um eminente jurista tivesse dado luz verde e assinado por baixo uma proposta de lei que está, ela própria, na opinião de constitucionalistas reputados deste país, cheia de elementos claramente anticonstitucionais.

Começa por ser, Sr. Ministro, a retroactividade da aplicação dos limites de endividamento.

Afirma que serão excluídos do cálculo dos limites de endividamento os empréstimos já celebrados e que, na altura, não contavam para esse cálculo. Mas, Sr. Ministro, uma coisa é a sua interpretação, aquilo que acaba de dizer daquele púlpito, outra coisa é o que a lei diz.

E a lei diz exactamente o contrário daquilo que o senhor acaba de afirmar aqui! Portanto, impõe, de facto, a retroactividade na aplicação dos limites do endividamento.

Mas há mais normas claramente anticonstitucionais, Sr. Ministro! Por exemplo, a consignação de receitas de acordo com as conveniências do Governo. Por exemplo, a «cenoura» demagógica que é lançada ao poder local para ele poder intervir e decidir sobre a aplicação da taxa variável de 3% em sede de IRS. Enfim, um mar de normas anticonstitucionais que deveriam, na minha opinião, ter merecido da parte de V. Ex.ª, um eminente jurista, uma outra reflexão.

Aliás, esta questão da taxa variável do IRS é uma espécie de «lei das sesmarias», com quase 700 anos de atraso e, ainda por cima, com o objectivo de tentar não repovoar o interior mas, ao contrário, povoar ainda mais o litoral. Até se percebe qual é a intenção do Governo: o Governo, já se sabe, não vai querer, de facto, diminuir os impostos e, portanto, esta será uma oportunidade para virem a terreiro, o Sr. Ministro, o Sr. Primeiro-Ministro e o Sr. Ministro das Finanças, dizer: «É por causa daqueles malandros dos autarcas que o IRS não vai descer!» Estou mesmo a ver os senhores desculparem-se com os autarcas para justificar que não vão diminuir os impostos...!

Mas há mais, Sr. Ministro, quanto à proposta de lei. Por que é que esta proposta revela tanto desprezo pelos autarcas e pelo poder local em Portugal?

Gostava que o senhor dissesse isto aqui. Será que é porque o poder local, com 11% das receitas públicas, com 10% da despesa pública e com 5% de endividamento público, consegue realizar mais de 40% do investimento público em Portugal?

É por isso? É por despeito? É por inveja, Sr. Ministro, que o Governo apresenta esta proposta? É para que os autarcas sejam obrigados a fazer tão pouco quanto os senhores fazem - e é, de facto, muito pouco - para a resolução dos problemas das populações?

Sr. Ministro, se não é isto, só vejo uma razão: com esta proposta de lei, o senhor e o Governo a que pertence estão a tentar vingar-se, com um ano de atraso, dos resultados eleitorais de Outubro de 2005.

(...)

Sr. Presidente, uma vez que julgo ser público, ou, pelo menos, julgava, tenho todo o gosto em oferecer ao Sr. Ministro António Costa cópias dos pareceres relativamente a várias inconstitucionalidades da proposta de lei - uma, insisto, a da retroactividade da aplicação dos limites de endividamento; a outra relativa ao IRS, a da aplicação da taxa variável dos impostos nacionais, a que o Sr. Ministro chama reforço da autonomia do poder local; finalmente, a que diz respeito à questão da consignação das receitas - dos distintos Professores Marcelo Rebelo de Sousa, Diogo Leite de Campos e António Lobo Xavier.

Oiço vozes da bancada do Partido Socialista dizendo que já os conhecem. Não queria concluir que o Sr. Ministro é a única pessoa deste país que os desconhece... De qualquer maneira, vou entregar-lhe os pareceres.

(...)

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:

A proposta de lei vem coroar uma monumental campanha de descrédito e de desacreditação lançada sobre o poder local em Portugal, cuja violência não tem precedentes desde o 25 de Abril.

Em vez de se isolarem e eliminarem os autarcas cujo comportamento tem servido de pasto para essas campanhas de descrédito, de se reforçarem os mecanismos de gestão colectiva nos órgãos executivos autárquicos e de se alargarem os poderes e competências dos órgãos de fiscalização e de acompanhamento da actividade autárquica, o Partido Socialista e toda a direita, contando sempre com a oposição do PCP, têm apostado sempre no presidencialismo autárquico e votaram os órgãos municipais a funções quase decorativas.

Foram estas orientações perversas e erradas que, no fundamental, permitiram o aparecimento e a acção de alguns que, sendo excepção e não regra, como alguns pretendem, contribuíram em muito para minar o prestígio do poder local. Mas não são, não podem ser, recusamos que possam ser, meia dúzia de maus exemplos a ensombrar o papel insubstituível que os autarcas desempenharam e desempenham em Portugal.

E basta citar alguns números que muitos arautos da desgraça e outros tantos escribas de serviço intencionalmente omitem ou deturpam para percebermos o papel fundamental do poder local em Portugal.

A administração local arrecada 11% do total das receitas públicas; representa apenas 10% da despesa pública anual do País; realiza quase 44% do investimento público total em Portugal; e, em 2004, o saldo global municipal foi positivo em cerca de 25 milhões de euros e a dívida global dos municípios era de 4200 milhões de euros, enquanto a restante administração com papel relevante para a administração central tinha uma dívida superior a 83 000 milhões de euros. Estes, Sr. Presidente, Sr. Ministro António Costa e Srs. Deputados, são os números que mostram bem a dimensão da mistificadora campanha montada para desacreditar o poder local. E é à boleia e a reboque destas campanhas que o Governo apresenta a sua proposta de lei, peça central de um pacote onde também se inclui um novo enquadramento legislativo para o sector empresarial local, onde só falta, Sr. Ministro, nomear os futuros conselhos de administração das «holdings municipais».

Esta proposta de lei não é apenas um ataque feroz e sem precedentes à autonomia do poder local é também uma proposta de lei tão repleta de inconstitucionalidades que o PCP volta a reiterar a sua intenção de se associar e apoiar qualquer iniciativa para proceder à verificação da sua conformidade constitucional.

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:

A proposta de lei dá ao poder local um presente envenenado e claramente inconstitucional de poder arrecadar ou prescindir de receitas até 3% do IRS.

O Governo quer, contra tudo o que mandam os preceitos constitucionais, introduzir retroactividade na determinação dos limites de endividamento; arroga-se o direito de alargar a consignação de receitas; consagra em lei a intervenção do Orçamento do Estado na definição dos limites de endividamento e dos limites das despesas com o pessoal das autarquias; estabelece sanções para incumprimentos diversos e inaceitáveis, desde o incumprimento dos limites de endividamento até - vejam lá! - ao das obrigações, quase obsessivas, de informação unilateral que impõe; e cria mecanismos inaceitáveis para a autonomia do poder local, ao criar auditores externos permanentes, ao impor a assinatura prévia de três, repito, três ministros para contratar certos empréstimos ou ao sujeitar à participação prévia da Inspecção-Geral de Finanças actos normais da gestão financeira municipal.

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:

 Não sei se hoje, um ano depois da profunda derrota autárquica que o PS sofreu, o Governo pretende penalizar as populações e o poder local pelas opções tomadas em 2005, mas a verdade é que esta proposta de lei vai, de facto, penalizar fortemente os municípios portugueses.

Só que o Governo não quer mostrar o jogo todo, esconde-o; esconde os efeitos financeiros com que vai atingir o poder local, e mistifica e manipula números, dizendo que o que se vai passar em 2007 corresponde à aplicação normal da lei, e isto é falso, Sr. Ministro António Costa. E, para sustentar e defender esta proposta de lei e a sua exposição de motivos, o PS e o Governo distribuíram pelos seus Deputados um argumentário especial chamado «Principais inovações da proposta de lei das finanças locais», e só por este argumentário é que se percebe que os Srs. Deputados Renato Sampaio e Pita Ameixa tenham dito aquilo que, obviamente, a proposta de lei não diz e tenham defendido aquilo que a proposta de lei não defende.

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

A verdade é que o Governo auto-suspende a sua própria lei, quer que ela se aplique em pleno só a partir de 2010, isto é, depois de 2009, melhor dizendo, depois do ano eleitoral, onde não quer aparecer com o verdadeiro rosto, o rosto de um Governo que, a partir daí, a partir de 2010, vai, de facto, diminuir de forma muito sensível a capacidade financeira a cerca de 220 dos 308 municípios portugueses.

Destes 220 municípios, Sr. Ministro António Costa, 29 irão perder mais de 40% das transferências do Orçamento do Estado e dos restantes a esmagadora maioria são municípios do interior e são incapazes de gerar receitas para fazer face às responsabilidades e compromissos assumidos. É bem provável que, com diminuições tão acentuadas, haja municípios condenados a uma morte lenta.

Com esta proposta, o Governo, se calhar, pretende fazer, através do garrote financeiro, através desta lei das finanças locais, a reorganização administrativa do País, que tem vindo a anunciar, encerrando compulsivamente freguesias e municípios que está agora a condenar à insolvência por via desta proposta de lei.

Sr. Presidente, Srs. Deputados: O Governo e o PS continuam a invocar a conjuntura orçamental para solicitar a solidariedade.

É pena que a solidariedade seja unilateral, que, quando as receitas fiscais aumentam, o Governo queira ficar com todo o adicional e que pretenda, ainda por cima, diminuir transferências.

É pena que o Governo não perceba que os impostos são nacionais, que são de todos e que não são propriedade própria do Governo.

É pena que o Governo trate o poder local como se fosse uma espécie de rede de serviços administrativos desconcentrados ao dispor do Governo e sobre a qual quer arrogar-se o direito do exercício de coordenação ou de superintendência.

É pena tudo isto, embora ainda suponha que não se quer, por agora - não acredito que o Sr. Ministro António Costa o queira -, regressar ao tempo em que o Governo nomeava presidentes de câmara e regedores de freguesia.

É pena, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que o Governo e o Grupo Parlamentar do PS estejam cada vez mais isolados no País nesta matéria, é que são 95% os autarcas portugueses que estão contra esta proposta de lei e até eminentes autarcas do PS. Quero citar o Eng.º Mário Almeida, anterior Presidente da ANMP, como um daqueles que, dentro do PS, se tem manifestado contra esta proposta de lei e até houve um, Sr. Ministro António Costa, que até é membro do seu Governo - veja lá! -, o Presidente da Assembleia Municipal de Castelo Branco, que não teve a coragem de votar a favor da proposta de lei das finanças locais que o senhor hoje está aqui a defender.

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:

Em síntese, o Governo inclui quatro leis numa só proposta de lei de finanças locais: uma lei que prefigura um regime de contratação de pessoal, congelando e limitando despesas; uma lei que transfere responsabilidades na área da educação, da saúde e da acção social com contrapartidas no fundo social municipal, só garantidas, repito, só garantidas na lei em 2007 e não a partir de 2007; uma lei que institui uma tutela de mérito, com poderes políticos de intervenção, externa à esfera judiciária e ao arrepio da Constituição; e, finalmente, uma lei de finanças locais que retira capacidade financeira e quebra laços de solidariedade e de coesão nacional que, durante anos, tinha sido possível manter.

Por tudo isto, Sr.as e Srs. Deputados, o PCP vai votar convictamente contra esta proposta de lei, contra estas quatro ideias de perversão do poder local democrático em Portugal.

 

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