Intervenção de João Ferreira, membro do Comité Central e Deputado ao Parlamento Europeu, Sessão «A libertação do país da submissão ao Euro, condição para o desenvolvimento e soberania nacional»

O Euro e a crise na e da União Europeia

O Euro e a crise na e da União Europeia

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Passaram duas décadas desde que, em finais de 1995, numa Cimeira de chefes de Estado e de governo da União Europeia, em Madrid, a moeda única europeia foi baptizada: Euro, seria o seu nome.

O primeiro-ministro português à época, António Guterres, saudando a decisão, haveria de proclamar: “Euro, tu és o euro e sobre este euro edificaremos a União Europeia”.

A lembrança serve não tanto para assinalar o ridículo a que o correr do tempo expôs o triunfalismo da proclamação mas mais para evocar a ofensiva política e ideológica que desde a primeira hora acompanhou o nascituro.

Afirmou-se então, repetidamente, que o Euro traria estabilidade, crescimento, emprego, convergência das economias. Que seria um escudo contra a crise. Afirmações, todas elas, fragorosamente contrariadas pela realidade.

A aplicação de uma política monetária única a países com profundas disparidades nos níveis de desenvolvimento económico e social e, por isso mesmo, com necessidades de políticas diferenciadas ao nível monetário e cambial, agravou, como era expectável, desequilíbrios macroeconómicos; acentuou a dinâmica de divergência das economias, já antes incutida pelo mercado único e pelas políticas comuns; repercutiu-se de forma particularmente grave na periferia, nos denominados “países da coesão”.

Perante o risco de implosão do Euro, recrudesceram as teorias do aprofundamento.

A arquitectura foi incompleta, a ponte ficou a meio, afirmaram. Logo acrescentando ser imprescindível construir a outra metade. A União é monetária, mas não económica. Há que completá-la, sentenciam, é necessário um governo económico europeu, uma fiscalidade europeia, uma “União Bancária”. Os federalistas mais convictos retornam ao sonho da unificação política.

Surgem o Pacto para o Euro Mais, a chamada Governação Económica, o Tratado Orçamental, o Semestre Europeu. Formas de concentração do poder no seio da Zona Euro. Mecanismos de ingerência política, económica e social, que criam um quadro de constrangimento quase absoluto a qualquer projecto soberano de desenvolvimento económico e social. Obviamente não para todos: o que se aplica aos pequenos e médios países, não se aplica aos maiores e mais poderosos. Uma dolorosa confirmação da tese de que à dependência económica sempre sobrevém a subordinação política.

A resposta da União Europeia à crise da Zona Euro não resolveu nenhuma das contradições que lhe estão subjacentes, antes as agravou. As dinâmicas de tensão e de confronto – inerentes à imposição de uma moeda única a situações tão assimétricas – são permanentes, contradizendo as teses sobre a estabilidade e durabilidade do processo.

A Alemanha (o capital alemão) não está disposta a assumir perdas nem a partilhar ganhos para lá do estritamente necessário à sobrevivência deste seu instrumento e à manutenção do seu papel hegemónico na zona de influência do Euro, o que é susceptível de acirrar contradições entre potências.

Conjunturalmente relegadas segundo plano, não foram abandonadas, longe disso, as teorias do núcleo super-integrado, com possíveis reconfigurações da Zona Euro, envolvendo a “expulsão” das economias mais débeis e periféricas.

Na periferia da Zona Euro, os Estados encontram-se desprotegidos para lidar com uma recidiva da crise, com uma recaída em recessão.

As taxas de juro – a zero ou mesmo negativas (como sucede com as taxas sobre os depósitos dos bancos no BCE) – dificilmente podem baixar mais, dificultando os estímulos monetários.

A liquidez fornecida pelo BCE serve para insuflar uma nova bolha obrigacionista, mas não chega à economia real, não se traduz em investimento, nem em consumo.

As dívidas públicas dispararam e são colossais, dificultando novo endividamento, nomeadamente junto dos mercados financeiros. A combinação perversa do aumento da liquidez e da instabilidade, mundial e europeia, alimenta a dimensão e a volatilidade dos fluxos financeiros, com a escalada fácil das taxas de juro.
Os estímulos orçamentais são dificultados pelos férreos constrangimentos impostos pelas regras da União Económica e Monetária. O Euro continua a desfiar o infindável novelo da dita austeridade, com os Estados cada vez mais desamparados, cada vez mais desprovidos dos poucos instrumentos que lhes restavam para gerir as dificuldades.

Uma situação que talvez ajude a explicar porque é que a maioria dos países da União Europeia que não integram a Zona Euro tenham decidido prolongar indefinidamente a derrogação que os mantém fora do Euro.

Sem moeda própria, sem um banco central emissor e prestamista de último recurso, que possa assistir financeiramente o Estado (e a banca) em situações mais complicadas, a dependência dos mercados financeiros ou, igualmente grave, do BCE, da União Europeia e do FMI é total.

O Euro encurralou a periferia entre a espada e a parede: ou a chantagem dos especuladores, ou a chantagem da troika.

O exemplo grego é, por agora, a mais viva demonstração deste facto. Um retrato do que pode suceder, e de facto sucedeu, a um país periférico do Euro. Uma experiência da qual se impõe retirar lições evidentes.

Uma primeira lição: a de que uma mudança de políticas a favor dos trabalhadores e do povo, mesmo que apenas para fazer frente a uma crise humanitária, confronta-se inevitavelmente com os constrangimentos da União Económica e Monetária e do Euro.

Uma segunda lição: nesse confronto, a União Europeia revela-se completamente inamovível, respondendo com arrogância, com ameaças, pressões e chantagens a qualquer intenção de mudança.

No caso grego, o confronto assumiu a gravidade da opção entre claudicar ou romper.

O que nos traz a uma outra lição: o implacável desfazer das ilusões de que é possível a um país submetido e devastado crescer e desenvolver-se satisfatoriamente dentro do colete-de-forças do Euro.

E, finalmente, uma lição fundamental: a indispensabilidade de preparar um país que queira crescer e desenvolver-se satisfatoriamente, que queira concretizar um projecto soberano de desenvolvimento, para a introdução de uma nova moeda nacional.

O caso grego confirma ainda a profunda interligação entre o Euro, a banca e a dívida. A importância do controlo de capitais, impedindo as fugas de depósitos. A importância de afirmar de forma soberana o direito de renegociação da dívida. A importância de não deixar o sistema bancário refém do fornecimento condicionado de liquidez pelo BCE.

A tragédia grega – da qual, por estes dias, nos são dados a ver novos episódios – não resultou de se querer sair do Euro. Resultou sim da opção por se ficar no Euro.

Perante este quadro, importa ainda não perder de vista uma característica matricial do Euro e da União Económica e Monetária: a sua natureza de classe; a sua natureza de instrumentos ao serviço de um projecto político, de classe.

O Euro foi e é uma decisão política, uma opção do grande capital europeu, no contexto do aprofundamento da integração capitalista europeia. Entre os seus impulsionadores e mais acérrimos defensores estão, desde o início, as confederações do grande patronato europeu, as grandes multinacionais europeias.

Por detrás do objectivo da política monetária – a dita estabilidade dos preços, encontra-se o objectivo, cada vez mais claramente assumido, de reduzir os custos unitários do trabalho, garantir a transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para o capital, contribuindo para a aumentar a taxa de exploração e com ela sustentar as taxas de lucro.

Retirando aos Estados a política monetária, cambial, mas também a orçamental e a fiscal, por via das imposições decorrentes do Pacto de Estabilidade, os factores de ajustamento a choques económicos recaem unicamente sobre os salários e o emprego, desvalorizando os salários, aumentando o desemprego – o que força novamente a descida dos salários.

O Euro oleou os circuitos do mercado único, facilitou a colonização de mercados, nomeadamente os da periferia; acentuou a liberalização dos movimentos de capitais e, consequentemente, o grau de mobilidade do capital multinacional que opera no mercado interno europeu. As deslocalizações são mais fáceis e juntam-se ao desemprego para forçar a concorrência entre a força de trabalho e a sua desvalorização geral.

Podemos afirmar que o Euro não falhou. O Euro cumpriu e cumpre o papel para o qual foi criado.

Agora, mais do que diagnósticos, a situação que vivemos exige respostas. Mais do que identificar constrangimentos – que hoje são por demais visíveis – é necessário enunciar as linhas de ruptura que nos permitam libertarmo-nos desses constrangimentos.

Desde 2007 que o PCP tem vindo a propor a dissolução da União Económica e Monetária. Uma dissolução programada e organizada, que reduza ao mínimo as perturbações económicas e financeiras resultantes da constituição das novas moedas nacionais e estabeleça programas financeiros de apoio aos países com economias mais débeis e mais endividados.

Este objectivo deve justificar a procura de uma conjugação e articulação de esforços, desde logo, dos países que enfrentam dificuldades semelhantes, tendo em vista, para além da dissolução da União Económica e Monetária, a convocação de uma Conferência Intergovernamental destinada a debater o problema das dívidas públicas e a suspender e revogar o Tratado Orçamental.

É óbvio que a solução ideal seria fazer reverter as causas da grave situação em que nos encontramos.

Porém, nada indica que passem por aqui as intenções da União Europeia e dos seus órgãos. O quadro de medidas necessário é exactamente o oposto daquele que a União Europeia vem impondo.

Apesar disso, é necessário e é possível romper o espartilho que constrange o desenvolvimento económico, o progresso social, a soberania nacional. O que não é viável é prolongar a submissão aos ditames do Euro e aceitar a sentença de empobrecimento perpétuo que lhe está associada.

A libertação da submissão do país ao Euro resolveria todos os nossos problemas? Obviamente que não. O mercado único, as políticas comuns, as disposições dos Tratados, constituem pesados constrangimentos que não podem ser ignorados.

A recuperação da soberania monetária – e por arrastamento da soberania cambial, orçamental e fiscal – é condição necessária, ainda que insuficiente por si só, para garantir um desenvolvimento soberano do país.

Uma condição que permitiria libertar o Estado da dependência exclusiva dos mercados financeiros para o seu financiamento de último recurso. Ou, vedado o acesso aos mercados pelas taxas de juro agiotas, libertar o Estado da chantagem permanente e da condicionalidade política associada aos empréstimos da União Europeia e do FMI.

Uma condição que permitiria ajustar a gestão monetária, financeira e orçamental do Estado à situação e necessidades específicas do país – muito distintas das de outros países.

Uma condição para abandonar o Pacto de Estabilidade e as consequentes restrições ao investimento e ao cabal financiamento das funções sociais do Estado.
Assim criando outras e melhores condições para o investimento, a criação de emprego e a dinamização da produção nacional.

Neste processo de recuperação de soberania, é de admitir que a institucionalidade europeia, as regras e as disposições dos tratados possam conflituar com os interesses nacionais. Mas não esqueçamos que estas regras não são, nunca foram, “escritos sagrados”. O recente caso Brexit e as negociações que envolveu são exemplares a este respeito (independentemente do seu conteúdo e resultados). Na União Europeia, as regras são o resultado em cada momento de uma determinada relação de forças, são fruto de uma negociação permanente. Negociação em que é muito forte a vontade e a determinação de um povo ganho para defender o seu direito ao futuro.

Não existem saídas no actual quadro que não passem por uma ruptura com as políticas vigentes. Essa ruptura é necessária para libertar os povos da subalternidade, da dependência e do atraso.

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