Intervenção de Bernardino Soares na Assembleia de República

"Esta moção de censura traz ao Parlamento a indignação, o protesto e a luta que se sente junto dos trabalhadores e da população"

Sr. Presidente,
Peço a palavra para interpelar a Mesa.
Sr. Presidente,

O Sr. Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações acabou de sair da Sala para dar uma conferência de imprensa lá fora. Pergunto se é respeitoso para com a Assembleia da República, quando se está a debater uma moção de censura, o Governo mandar um Ministro fazer uma conferência de imprensa a propósito de um assunto que também aqui está em discussão.

(…)
Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:

Diz o Sr. Deputado Francisco de Assis que os governos não escolhem as circunstâncias que encontram no momento da sua governação.

Pois não, Sr. Deputado, mas escolhem as medidas, e este Governo poderia ter escolhido outras medidas: medidas para introduzir maior justiça social, medidas para introduzir um maior crescimento económico e criação de emprego. E, afinal, de contas, que medidas foram? Foram medidas para cortar o investimento, para penalizar os salários, para roubar salário todos os meses aos trabalhadores, para penalizar as reformas, para cortar nas prestações sociais.

Esse é o problema: cada um governa segundo as circunstâncias do momento, mas faz opções segundo as suas circunstâncias políticas. E a circunstância política do PS e do Governo tem sido sempre a de tomar as opções políticas de direita.

A sua intervenção foi muito eloquente, choca é com a realidade, Sr. Deputado Francisco de Assis. Disse que foi um grande sucesso a governação do PS neste Governo e no anterior, quando, na realidade, temos o maior nível de desemprego da história da democracia, quando, na realidade, temos o País a divergir da União Europeia, quando, na realidade, temos a maior precariedade de sempre na história da democracia. Não sei que sucesso é esse, Sr. Deputado Francisco de Assis!

O Sr. Deputado disse nesta intervenção, e já o tinha dito há uns dias, que a grande vantagem das soluções que agora se encontraram é o governo económico europeu estar a avançar. Pois bem, esta Europa comandada pelas suas grandes potências, que nos impõe as medidas que prejudicam a nossa economia, que nos impede de produzir aquilo que sempre produzimos, que nos impede de investir em infra-estruturas de que precisamos, é a Europa que vai agora, ainda mais, governar a política económica do nosso País. A isso damos a resposta de uma Europa de cooperação, mas em que se respeita a soberania dos Estados e em que cada Estado possa conduzir a política económica que interessa ao seu país e não a política económica que interessa a Berlim e que, pelos vistos, tanto seduz o Sr. Primeiro-Ministro.

(…)
Sr. Presidente,
Srs. Deputados,
Sr. Primeiro-Ministro,
Srs. Membros do Governo:

Ao longo deste debate ficou amplamente demonstrado que esta moção de censura não só é justa como oportuna, como indispensável. O estado a que chegou o nosso País, vítima de décadas de política de direita e, em especial, da desastrosa política dos últimos anos, assim o exigia.

Um país a divergir da União Europeia há quase 10 anos; um país com 730 000 desempregados e muito mais de 1 milhão de precários.
Um país onde os direitos dos trabalhadores são crescentemente atacados; um país em recessão ou estagnação, em que o investimento público diminuiu brutalmente e a produção nacional se restringiu.
Um país em que os serviços públicos e a administração pública em geral se desagregam e deterioram continuamente.
Um país onde os salários e as reformas perdem sistematicamente valor, onde os pobres aumentam a sua pobreza e os ricos aumentam a sua riqueza, é um país que tem de reagir, que tem de lutar contra esta política.
Por isso, é justa esta moção de censura.

Ainda assim, o Governo, acolitado pelo PSD, quer dar um novo salto na desigualdade, no atraso, na degradação da vida dos portugueses. Quer aplicar medidas que penalizam outra vez os mesmos, os de sempre, os que nunca ganham e perdem sempre com as medidas do Governo. Por isso, esta moção de censura é oportuna, porque dá resposta a esta ofensiva do Governo, do PSD e da política de direita, uma resposta que, antes e depois deste debate, particularmente na manifestação do dia 29 de Maio, convocada pela CGTP, continua lá fora, nas empresas e locais de trabalho, nas praças e avenidas do nosso País.

Mas esta moção é mais do que isso, é indispensável. É uma moção de censura indispensável. É que já se percebeu que a gula do grande capital e a submissão do Governo e do PSD, seus acrisolados seguidores, não tem limites. Já se percebeu que as medidas contra os direitos, contra os salários, contra as reformas, contra o investimento e o desenvolvimento, contra os serviços públicos vão continuar, a não ser que encontrem uma forte resposta de todos os portugueses. Esta moção é, por isso, indispensável para mostrar ao Governo e ao PSD, para mostrar aos grandes grupos económicos, que há vontade para enfrentar essa ofensiva e para a derrotar no campo político e no campo social.

Esta moção de censura traz ao Parlamento a indignação, o protesto e a luta que se sente junto dos trabalhadores e da população, face às medidas que têm vindo a ser anunciadas. É a censura de mais de 700 000 desempregados a quem querem cortar o subsídio, dos mais de 5 milhões de trabalhadores que não aceitam o roubo do seu salário, de milhares de reformados com reformas baixas e medicamentos cada vez mais caros, tal como o leite, a carne e outros bens essenciais, de milhares de micro, pequenas e médias empresas que não percebem como é que se pode aumentar outra vez o IVA.

É a censura dos enfermeiros que estiveram em greve, dos trabalhadores da Administração Pública, dos profissionais das forças de segurança, dos trabalhadores dos transportes, das populações a quem querem roubar o centro de saúde ou o serviço de urgência.

É a censura que tem estado presente em dezenas de greves, paralisações e acções de protesto por todo o país.

Esta moção de censura combate o roubo dos salários dos portugueses.

Como se atreve o Governo a vangloriar-se de que não retirou o subsídio de Natal aos trabalhadores, se vai retirar rendimento todos os meses e, no final do ano, nas deduções de quem trabalha ou é reformado?! E vai fazê-lo despudoradamente, à pressa, para apanhar já os subsídios de férias.

Há uma adivinha que se conta às crianças em que se pergunta «qual é coisa qual é ela que antes de o ser já o era?». Já se sabe, é a pescada. Ora, este aumento do IRS é a mesma coisa, antes de ser aprovado já está a ser aplicado.

Mais: o Governo quer obrigar já em Maio a reter o salário dos trabalhadores, quando a proposta do Governo e do PSD só é debatida a 2 de Junho e só poderá entrar em vigor depois disso.

Quanto ao subsídio de desemprego, o Governo quer elogios por não aplicar a proposta do PSD. Mas não foi o Governo que anunciou pretender cortar no subsídio de desemprego, para que os desempregados sejam incentivados a regressar ao mercado de trabalho?! Mas onde estão os empregos no mercado de trabalho?

O que o Governo quer, para satisfazer as grandes associações patronais, é baixar, progressiva e sistematicamente, os salários dos portugueses, a quem nega, em cada vez maior número, o subsídio de desemprego.

Quanto aos sacrifícios dos que lucram sempre, vejamos a questão do IRC. O Governo anuncia uma sobretaxa sobre lucros tributáveis, mas, ao manter os benefícios fiscais à banca, esta vai continuar a pagar muito menos do que todas as pequenas empresas em geral.

Quer propostas, Sr. Primeiro-Ministro? Aplique a taxa efectiva à banca, aquela que está na lei, e verá que tem aí muita receita para combater o défice.
Quer coragem, Sr. Ministro da Defesa? Tenha coragem de enfrentar os fortes, como no sector financeiro, e não a pífia coragem de atacar sempre os fracos, que é o que este Governo faz, com as suas medidas.

Este caminho não só não é inevitável como é absolutamente errado. É errado porque vai manter e aumentar a crise, manter e aumentar o desemprego, cortando o subsídio, bem como muitas prestações sociais, vai pressionar para baixo os salários, prejudicar as pequenas empresas e em geral aumentar as desigualdades e afundar o desenvolvimento do País.

Mas é também errado porque nem sequer vai contribuir para uma saudável consolidação das contas públicas. É que, mesmo sabendo que o Governo dá prioridade aos cortes cegos na despesa pública, só com o aumento das receitas há contas públicas saudáveis. Não o aumento das receitas à custa dos salários e das pensões, nem das pequenas empresas, mas um aumento das receitas com base no crescimento económico.

Como é que se consolidam as contas públicas, afinal? É com mais receita ou com menos receita? É, sem dúvida, com mais receita! Como vamos ter mais receita se não vai haver crescimento? Como é que teremos crescimento se há quebra no investimento, se se penaliza os salários e as reformas, e o consumo interno não progride?

Para termos uma boa consolidação das contas públicas é preciso termos crescimento económico, e para isso é preciso ter mais investimento, melhores salários e melhores reformas. Com as medidas que estão anunciadas, o Governo e o PSD deitaram fora o crescimento económico e no futuro o País continuará a não ter receita suficiente para ter contas públicas saudáveis.

Esta política não resolve o problema económico, nem resolve o problema orçamental.

As medidas que estão apresentadas e outras que certamente o Governo e a direita têm em mente não são só para o presente, visam efeitos estruturais para o futuro. São medidas que querem deixar instituído um País ainda pior. Nem sequer é preciso falar da reaccionária ideia de impor limites ao défice na Constituição. Estas medidas querem instituir a exiguidade do investimento público como regra; querem deixar a Administração Pública de tal maneira degradada que lhes permita (ao PS, ao PSD e ao CDS) defender a privatização de largos sectores de serviços essenciais; querem restringir a protecção social ao mínimo e instituir a caridade e a dependência; e, como sempre, querem ainda menos direitos no trabalho, despedir sem justa causa, ter a precariedade como regra e baixar progressivamente os salários. Essa é a estratégia de fundo que estas medidas trazem consigo.

O Sr. Primeiro-Ministro diz que é irresponsável apresentar uma moção de censura, porque isso pode deitar abaixo o Governo. Não, Sr. Primeiro-Ministro, o que é irresponsável é uma política, que é a sua, que está a deitar abaixo o País.

O Primeiro-Ministro acusa o PCP de ser igual a si próprio. O Ministro da Defesa falou agora, outra vez, de coerência. Ora, coerência não é insulto — pelo menos, para nós, não é. Mas eu percebo que a nossa coerência incomode o PS. É que, do PS, não se pode dizer que esteja cada vez mais igual a si próprio; o que se pode dizer é que o PS está cada vez mais igual ao PSD, nas políticas que defende e pratica no Governo.

O CDS procura passar um pouco despercebido nesta ofensiva da política de direita, que, no fundamental, subscreve e, em muitos aspectos, até propõe. Quis a sorte que, afinal, o CDS vá ter, nesta moção de censura, a mesma posição do PSD, de que tanto se quer demarcar. O certo é que, arrufos à parte, o CDS está de acordo com o fundamental das medidas anunciadas pelo PS e pelo PSD. E, se for preciso, lá estará para viabilizar a continuação da política de direita, como fez com o Orçamento do Estado, ainda há dois meses.

Não quer medidas de esquerda, diz o Dr. Paulo Portas, e, por isso, vai viabilizar o Governo e as medidas de direita que o Governo quer aplicar.

Já o PSD tentou disfarçar o seu total apoio ao Governo e à sua política, com a discussão à volta da questão da alta velocidade. Claro, o PSD bem gostaria que não se percebesse que está de acordo com o Governo, na tentativa de baixa dos salários, nos cortes nos subsídios e nas prestações sociais, nas privatizações, no roubo fiscal dos salários, nos aumentos dos bens essenciais.

Mas está, está de acordo e é responsável por essas medidas.

O PSD bem gostaria de ter mantido a sua cínica posição de deixar o Governo PS continuar a agravar a política de direita, fingindo que nada tem a ver com isso. Não, Srs. Deputados do PSD! O PSD é um membro de pleno direito da coligação que defende esta política — e, hoje, isso vai ficar claro. Com a votação desta moção de censura, o PSD confirma que é um dos progenitores das medidas de ataque aos trabalhadores e ao povo, que estão anunciadas, e formaliza a sua aliança com o Governo de José Sócrates. Fica claro que o PSD não é alternativa de política; é parceiro da mesma política, é o aliado do Governo e do PS na sua execução.

O PS e o seu Governo tentaram desvalorizar esta moção de censura. Disseram, ao mesmo tempo, que era irresponsável, porque podia derrubar o Governo, e era inútil, porque não seria aprovada.

Mas quero alertar os Srs. Deputados do Partido Socialista para uma realidade histórica objectiva: se se confirmarem as votações que estão hoje anunciadas, esta será a moção de censura, na história da nossa democracia, incluindo aquela que foi aprovada, que menos votos contra terá.

Esta moção que o PCP hoje aqui apresenta será a moção de censura em que o Governo conta com menor apoio na Câmara parlamentar, no Parlamento português.

O Sr. Deputado Francisco de Assis discorreu sobre a função histórica útil do PCP. Sr. Deputado, olhe antes para a função histórica do PS, que tem sido, ao longo destes anos, prometer política de esquerda na oposição e fazer política de direita no Governo.

Lá veio o estafado discurso do PS de que, quem à esquerda critica os governos PS, é aliado da direita. A solução seria, por isso, deixar o PS fazer a política da direita, e nada dizer. Aliado da direita, Sr. Deputado, é o Governo e o PS. Selaram, há dias, um acordo para prejudicar os portugueses, uma aliança que hoje aqui vão confirmar. O PS e o PSD é que vivem em união de facto política e governativa.

E quanto a abrir a porta à direita, o PS sabe bem que, quem sempre abriu a porta à direita, foram os governos do PS e a sua desgraçada política.

Esta moção de censura é, por isso, um momento de clarificação: entre quem está com esta política de direita, no Governo ou na oposição, e quem combate este rumo de desastre; entre quem não se conforma com as injustiças e os que as promovem; entre os que defendem os interesses do País e os que aceitam as chantagens dos mercados; entre os que assumem os anseios dos trabalhadores e os que assumem os desígnios do grande capital; entre os que escolhem dar resposta às necessidades do povo português e os que preferem ceder às imposições da União Europeia.

Pode ter a certeza, Sr. Ministro da Defesa, que vão ter uma agenda de luta, porque esta censura não acaba aqui. Podem o PS, o PSD e o CDS «chumbar» esta moção de censura, mas não travarão a luta contra a política de direita. Esta é a luta que continua e continuará, que não desiste, que continua a exigir a mudança de que o País precisa e a que os portugueses têm direito. Esta é a luta que continua a afirmar que é direito dos portugueses terem uma vida melhor e que o que é inevitável não é a desigualdade crescente; o que é inevitável é que, mais tarde ou mais cedo, os trabalhadores e o povo derrotem a política de direita e imponham um novo rumo, uma política patriótica e de esquerda para o País.

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