Intervenção de Paula Santos na Assembleia de República

«A descentralização não pode pôr em causa a universalidade de funções sociais do Estado»

Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Sras. e Srs. Deputados,

Fazemos hoje um debate com a consciência daquele que falta fazer.

O debate sobre a organização administrativa do Estado e a descentralização democrática revela a absoluta necessidade da criação das regiões administrativas, que a Constituição preconiza e que continua por concretizar.

Olhar para a organização administrativa do Estado tendo em conta as regiões administrativas possibilita uma abordagem mais coerente sobre qual o nível de poder mais adequado para o exercício de cada uma das atribuições e competências.

Avançar com a regionalização é o que cria as condições para uma política de desenvolvimento regional com a activa participação das autarquias e dos agentes económicos e sociais.

Sr. Presidente,
Sras. e Srs. Deputados,

A Constituição da República Portuguesa destaca como princípio da organização administrativa do Estado a descentralização.

Como já afirmámos aqui “um processo de descentralização de competências exige a recuperação e a afirmação da autonomia do Poder Local; exige um quadro claro e sustentado de condições que enquadrem a transferência de competências; exige um regime de financiamento com os meios necessários, estabilidade de execução e previsível evolução e exige a reposição de condições organizacionais, materiais e humanas.”

Queremos contribuir para este debate com propostas concretas.

Apresentamos hoje o projecto de lei quadro que estabelece as condições e requisitos de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais.
Num processo desta natureza antes de se definir o quê, tem de se definir o como, em que condições, com que objectivos e que princípios deve obedecer. É isto que o PCP procura dar resposta, porque não podemos decidir quais as competências a transferir para as autarquias sem considerar as condições para o seu exercício.

Consideramos que a transferência de competências deve respeitar os seguintes princípios:
- A preservação da autonomia administrativa, financeira, patrimonial, normativa e organizativa interna das autarquias locais;
- A garantia do acesso universal aos bens e serviços públicos necessários à efectivação de direitos constitucionais;
- A coesão nacional, eficiência e eficácia da gestão pública;
- A unidade do Estado na repartição legal de atribuições entre as entidades públicas e administrativas e a adequação do seu exercício aos níveis da administração central, regional e local;
- A adequação dos meios às necessidades;
- E a estabilidade de financiamento no exercício das atribuições que lhes estão cometidas.

Descentralizar não é sinónimo de desconcentrar nem de delegar.

Descentralizar significa o poder de executar, mas também o poder de decidir, por isso propomos que a tutela a que as autarquias estão sujeitas seja a de mera legalidade, respeitando o seu quadro de autonomia. Propomos também que as autarquias que recebam novas atribuições e competências tenham os poderes de planeamento, programação, execução, conservação e manutenção, fiscalização e que sejam acompanhadas de todos os meios que lhes estão afectos.

Em matéria de finanças locais, propomos que, de acordo com a normas constitucionais, as autarquias tenham receitas próprias e participem por direito próprio no produto dos impostos e demais receitas cobradas pelo Estado; que haja reversão das atribuições se houver redução das correspondentes dotações financeiras e que quando se verificar uma participação nos impostos no Orçamento de Estado inferiores ao previsto na lei de Finanças Locais, o Estado fique vinculado à reposição dos valores em causa nos três anos seguintes.

A plena realização e exercício das atribuições e competências exige que os meios financeiros tenham em conta não só a despesa associada a cada atribuição em concreto; mas também o grau de execução entre o programado e o realizado e os montantes necessários para executar o programado; e ainda a identificação de carências, em particular de meios humanos e técnicos; acrescido de 5 a 10% para despesas de administração.

Sr. Presidente,
Sras. e Srs. Deputados,

A descentralização não pode corresponder à desresponsabilização do Governo, nem à transferência de encargos e de descontentamentos da administração central para a administração local, transferindo o ónus negativo e problemas que persistem para as autarquias. E em estamos em profundo desacordo com a pretensão de transferir competências para as entidades intermunicipais, porque não são autarquias nem fazem parte da organização administrativa do Estado.

A descentralização não pode pôr em causa a universalidade de funções sociais do Estado, nem de direitos fundamentais. A descentralização de competências deve contribuir para combater assimetrias e desigualdades e não para as aprofundar. No limite, não é admissível que passem a existir 308 políticas de educação ou 308 políticas de saúde, ou que a estratégia de preservação do património cultural classificado varie em função da localização geográfica sem uma orientação nacional. O Estado tem de assegurar que nenhum cidadão é discriminado em função da zona do território onde vive. O direito à educação, à saúde, à segurança social, à cultura tem de ser garantido a todos os cidadãos em igualdade.

No âmbito desta discussão procura-se dar centralidade à proximidade. A proximidade e o conhecimento da realidade concreta são aspectos que assumem uma enorme importância, mas não são a questão central. Qual o valor da proximidade quando esta não tem correspondência em termos de condições e meios para responder aos problemas identificados? Com os contratos de execução e os contratos interadministrativos ficaram resolvidos os problemas relativos ao parque escolar ou à carência de assistentes operacionais? Não. E não foi por falta de proximidade, mas sim pela não criação das condições e dos meios adequados.

Sr. Presidente,
Sras. e Srs. Deputados,

Um verdadeiro processo de descentralização de competências deve romper com as opções políticas do passado, de ataque ao Poder Local Democrático, desrespeitando e violando os seus princípios constitucionais e de não alocação dos meios adequados às autarquias.

Um verdadeiro processo de descentralização só de facto assim o é se daí resultar uma melhor e maior capacidade para responder aos anseios da população, a prestação de serviço público de qualidade, o respeito pelo direito dos trabalhadores e a sua valorização e a afirmação da autonomia do Poder Local Democrático.

Disse!

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