Intervenção de

Comemoração do 21º Aniversário da Constituição-Intervenção do Deputado Luís

Senhor Presidente da República,
Senhor Presidente da Assembleia da República,
Senhores Deputados:

 

Comemoramos hoje 21 anos da aprovação da nossa Lei
Fundamental. Aprovada na Assembleia Constituinte por Deputados que aqui
saudamos. Mas escrita também nas ruas, nas fábricas e nos campos, nos
escritórios e nas empresas, nas escolas, nas prisões, na clandestinidade e no
exílio. A todos os que participaram dessa forma na escrita da Constituição da
República Portuguesa queremos também saudar e apresentar a homenagem do Grupo Parlamentar
do Partido Comunista Português.
Esta é a Lei Fundamental da liberdade conquistada, da promessa da igualdade
real de direitos e de estatuto. Acusam-na de ter "marcas semânticas"
do 25 de Abril. Ainda bem que as tem. Não há muitas maneiras de dizer sonho e
liberdade, participação e igualdade, democracia no país e no quotidiano,
direito à educação, à saúde, a reformas dignas, ao ambiente, à habitação, numa
palavra, direito à dignidade de cada um e de todo um país.

Alguns querem, a pretexto do consenso e da modernidade, uma Constituição
mínima, da família das Constituições liberais do século XIX. Nós respondemos
que a modernidade consiste em garantir os direitos e as conquistas obtidas no
penoso caminho das lutas dos povos. Um caminho que permitiu incorporar mais e mais
direitos fundamentais e somar aos direitos, liberdades e garantias clássicos os
direitos dos trabalhadores e os direitos sociais, os direitos de participação,
os chamados "novos direitos", como o ambiente. Aqui reafirmam os que
todos estes direitos devem ser levados à prática. É a política dos governos que
se deve conformar com a Lei Fundamental e não a Constituição que deve ser
reescrita de acordo com as orientações de direita dos governos que a violam.

A Lei Fundamental pode ser o campo da liberdade e de um projecto transformador
e de desenvolvimento de um país, que não confunde abertura à Europa e ao mundo
com dependência e abdicação face ao neoliberalismo e a centros burocráticos
instrumentalizados pelas multinacionais. Definitivamente, somos parte de um
povo que não quer a terra de que falava o médico do Ensaio Sobre a Cegueira de
Saramago: "Somos feitos metade de indiferença, metade de ruindade".
Queremos antes um país livre e de gente livre, em que haja campo para expandir
a generosidade e solidariedade. Um país em que o humanismo esteja no centro das
preocupações dominantes. Um país de empregos dignos, de trabalho com direitos,
de representação eleitoral justa, de Poder Local forte e democrático.

Comemorar a Constituição não é apenas lembrar os caminhos percorridos e os caminhos
prometidos. É também ponderar o momento que vivemos e o que está preparado para
nos ser imposto. Digamos claramente: o espírito da Constituição, que aponta
para uma democracia aberta, real e plural, aparece negado pelo conteúdo e pela
forma do acordo com que o PS e o PSD pretendem condicionar a revisão
constitucional. Digamos ainda mais claramente: o debate público e aberto, o
confronto de ideias e o pluralismo, que constituem das mais importantes
potencialidades dos parlamentos, foram substituídos pela interrupção de 100
dias do funcionamento da Comissão Eventual de Revisão Constitucional e por acordos
secretos de restritos directórios partidários. Secretos para deputados dos
outros partidos, secretos para a opinião pública, secretos porventura para
muitos deputados dos próprios partidos que estabeleceram o acordo. Nem a
dignidade da Assembleia da República, nem dos deputados, nem da vida política,
saíram favorecidas com esta vergonhosa operação negocial. Muito menos poderemos
concordar com muitas das alterações acordadas. Apenas alguns exemplos. É
desvirtuar a ideia de Constituição remeter para leis ordinárias aspectos
centrais do sistema político, como o sistema eleitoral da Assembleia da
República e das câmaras municipais. É igualmente inadmissível, entre outros
aspectos, pretender atentar contra a proporcionalidade da conversão de votos em
mandatos prejudicando a representação de partidos, regiões, sectores e camadas
sociais que assim ficam mais longe dos deputados e do parlamento; liquidar o
pluralismo das câmaras; limitar direitos dos trabalhadores; adulterar o actual
modelo de Estado unitário com regiões autónomas, afectando também o estatuto do
Presidente da República.

Sabemos todos igualmente que foi estabelecido um acordo entre o PS, o PSD e o
PP para criar dificuldades ou mesmo impossibilitar a regionalização. Denunciamos
o manobrismo da proclamação de datas para instituir as regiões por quem fez
acordos para adiar, dificultar ou mesmo impossibilitar esse objectivo. Os
mesmos que proclamaram que os deputados e o referendo orgânico dos municípios do
País não teriam legitimidade para instituir as regiões pretendem inviabilizar a
alteração da Constituição que permitiria o referendo sobre a Moeda Única, uma
das transformações com mais consequências para o nosso futuro colectivo. Nesta matéria,
parece que já não se colocaria a questão da falta de legitimidade política da
Assembleia para decidir.

Em relação a estas e outras alterações negativas da Constituição não vale o
argumento que já foi usado de que, apesar de tudo, com o que sobraria após a
revisão, continuaríamos a ter uma boa Lei Fundamental. O que é importante é que
cada alteração negativa acordada interpela-nos e responsabiliza cada um de nós
e não pode ser branqueada.
Uma Constituição vale na medida em que seja uma Constituição viva e para ser
vivida, para ser invocada no dia a dia, para servir de protecção aos que mais
dela carecem e ser a Carta a seguir no exercício do poder e na luta por
alternativas.
Esta é a Constituição que queremos viva e vivida. Não é certamente intocável. Poderia
ser aqui e ali aperfeiçoada. O que não deve é ser empobrecida e degradada.
Não faz sentido elogiar a Constituição e estar quase em regime de revisão ou
pré-revisão contínua de aspectos fundamentais e que a degradam.
Não é aprofundar a democracia representativa deixar mais eleitores em mais
círculos com uma menor ou com nenhuma representação na Assembleia da República.
Não é favorecer a descentralização dificultar a criação das regiões
administrativas e tornar as câmaras menos democráticas e plurais.

Não é contribuir para a transparência negociar secretamente e nos bastidores um
acordo que tenta confiscar a capacidade real do Parlamento decidirem debate
aberto.
O combate, porém, não terminará aqui. O PCP e o seu Grupo Parlamentar
continuarão a luta pela liberdade e os direitos fundamentais, por uma
democracia genuína, de conjugação da representação política justa e proporcional
com a participação e a democracia directa, de concretização da democracia económica,
social e cultural.
Faremos uso de todos e cada um dos direitos que a Constituição consagra. No
combate político geral e no combate pela própria Constituição.

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