Declaração de Ângelo Alves, membro da Comissão Política do Comité Central, Conferência de Imprensa

A Cimeira de Roma, o Livro Branco da Comissão Europeia e os 60 anos dos Tratados de Roma

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[Os chefes de Estado e de Governo da União Europeia a 27 irão reunir-se no próximo dia 25 de Março em Roma para assinalar os 60 anos da assinatura dos Tratados que instituíram o processo da Comunidade Económica Europeia, hoje União Europeia. Como anunciado, aprovarão uma Declaração sobre o futuro da União Europeia.]

No momento em que se promove a nível oficial uma onda de celebração e de propaganda em torno dos 60 anos dos tratados fundacionais do processo de integração capitalista europeu, a situação dos trabalhadores e dos povos do continente europeu e as crises com que se confronta este processo de integração são testemunho da verdadeira natureza de classe da União Europeia, do aprofundamento das suas contradições e da sua incapacidade em dar resposta aos inúmeros problemas dos povos da Europa.

A crise em que está mergulhada a União Europeia é de tal forma profunda que os seus responsáveis e instituições são obrigados a reconhecê-la. Contudo esse reconhecimento é acompanhado de uma tentativa de branqueamento das responsabilidades próprias, apontando-se a crise económica e social, a crise dos refugiados, o crescimento dos nacionalismos reaccionários e xenófobos e o terrorismo como factores exógenos ao processo da CEE/UE.

A realidade é exactamente a oposta. Os gravíssimos problemas e os enormes riscos com que os povos nos diferentes Estados membro da União Europeia estão confrontados são eles próprios produto da sua natureza, objectivos, pilares, políticas, e instrumentos, são consequência directa de décadas de um processo contrário aos interesses dos povos da Europa.

O processo que hoje conhecemos como União Europeia não é – como se tenta fazer crer - um processo de cooperação. Pelo contrário. Nunca esteve determinado pelos interesses dos trabalhadores e povos da Europa, ou pelos valores da solidariedade, da convergência no progresso social ou da paz. É antes - e a realidade demonstra-o - um processo de domínio económico e político, de concentração de capital e de poder, desenhado de acordo com os interesses dos monopólios europeus e do directório das principais potências capitalistas na Europa, com destaque para a Alemanha.

É impossível esconder a realidade das grandes e crescentes assimetrias no desenvolvimento económico e social entre os Estados. É impossível esconder que, em vez da proclamada solidariedade e convergência, o que marca hoje a União Europeia é a imposição, a ameaça, a chantagem e a divergência. É impossível ocultar os problemas sociais gravíssimos na generalidade dos países da UE, como o desemprego, a precariedade, a pobreza e a polarização social. A própria Comissão Europeia é obrigada a reconhecer no seu Livro Branco a tendência geral da regressão das condições de vida na União Europeia, nomeadamente das novas gerações, e mesmo que mitigadamente, a crescente contestação popular à União Europeia e aos seus instrumentos de domínio como o Euro.

A União Europeia não é um projecto com dimensão social e democrática. É antes um processo que no seu desenvolvimento confirmou o enfeudamento das instituições europeias e dos governos nacionais aos interesses e chantagens do grande capital, como aliás o comprovam os conteúdos dos programas da troika, as recomendações no âmbito do semestre europeu com as suas privatizações, reformas estruturais, intensificação da exploração e ataque aos direitos sociais e laborais, ou os sucessivos escândalos financeiros demonstrativos da completa promiscuidade entre as instituições europeias e o capital financeiro.

Os discursos em torno das ditas liberdades, da democracia e dos alegados “valores europeus” estão esmagados pela realidade de políticas desumanas – como no caso dos refugiados -, de desrespeito pela democracia e de ataque à soberania dos Estados, e por uma afirmação cada vez maior do militarismo e do intervencionismo numa ininterrupta pulsão imperialista da União Europeia.

A verdade que as manobras de propaganda em curso tentam ocultar é a de que a União Europeia é um processo esgotado, corroído por insanáveis contradições e que arrasta a Europa para uma situação insustentável e perigosa.

É na base desta análise que o PCP afirma que toda a discussão em torno do “futuro da Europa” deve partir de um pressuposto oposto ao que hoje é apresentado pelas instituições europeias e que em Portugal é apoiado por PS, PSD e CDS.

O Livro Branco da Comissão Europeia, com os seus cinco cenários, bem como o cronograma e objectivos nele proposto, tem como objectivo central salvar a União Europeia como instrumento de domínio das transnacionais e das grandes potências, mantendo intocáveis os seus pilares neoliberal, federalista e militarista e alguns dos seus principais instrumentos como o Mercado Único, a União Económica e Monetária e a chamada política externa e de defesa.

O que está verdadeiramente em discussão com a Declaração de Roma, e com o que comportará de caminho a seguir, não é a essência das políticas da União Europeia nem a sua natureza, mas sim o arranjo institucional e de distribuição de poder que permita continuar o rumo que conduziu a Europa à actual situação.

Na realidade, os cinco cenários do Livro Branco da Comissão convergem num único objectivo de continuidade e aprofundamento da União Europeia por via de novos saltos de natureza federalista, no todo ou em parte, da União Europeia, nomeadamente pela acentuação daquilo que os Tratados já prevêem e que a realidade já confirma existir – Uma União Europeia assente na divergência e desigualdade, a duas ou mais velocidades, sempre determinadas pelo directório de potências e em torno dos seus interesses.

Mais uma vez a União Europeia tenta impor um pensamento único na reflexão sobre os caminhos da Europa. Mais uma vez, e a exemplo de outros momentos históricos, é utilizada a teoria do inimigo externo para branquear as responsabilidades próprias da União Europeia, para levar mais longe a concentração de poder e acentuar a vertente militarista, securitária e de afirmação imperialista da União Europeia. É aliás elucidativo da visão contida nas reflexões da Comissão Europeia, o facto de esta considerar o desenvolvimento económico e social de vários países não europeus com crescente peso económico, comercial e demográfico, como uma ameaça à Europa.

O PCP rejeita a visão ensejada para a Declaração de Roma. O que os povos da Europa necessitam não é mais do mesmo, ainda que com novas roupagens, com novos arranjos de poder ou com novas profissões de fé em torno de uma falsa “dimensão social” do Mercado Comum e da UEM ou da “legitimação democrática” da União Europeia.

O que a discussão até agora realizada demonstra, e a realidade comprova, é que, na sua essência, a União Europeia não é reformável. A necessidade que se coloca é a de questionar todo o processo de integração capitalista. É a de questionar a União Económica e Monetária e discutir seriamente a sua dissolução organizada; é a de questionar o núcleo da integração capitalista – o mercado único – e a sua dinâmica de divergência e assimetria; é a de questionar a política comum de pescas e a política agrícola comum, com todas as consequências que tiveram para países como Portugal; é a de rejeitar uma política comercial da União Europeia assente na liberalização do comércio mundial e na imposição de tratados como o CETA, profundamente lesivos de vários sectores produtivos, de direitos e de soberania; é inverter o rumo militarista e intervencionista da União Europeia que, mesmo num contexto de contradições, se confirma como pilar europeu da NATO e empurra os Estados para inaceitáveis aumentos das despesas militares; é abandonar uma política dita de migrações profundamente desumana que, a par com a crise social, alimenta as agendas reaccionárias e xenófobas.

Os cenários contidos no livro branco da Comissão Europeia não dão resposta aos reais problemas dos trabalhadores e dos povos da Europa. Pelo contrário instrumentalizam alguns desses problemas – como o crescimento da extrema direita – para ensaiar novas fugas em frente de natureza neoliberal, federalista e militarista. São disso exemplo as linhas já conhecidas da proposta de Declaração de Roma que para lá da fraseologia em torno da “União Europeia social” definem como prioridades o avanço do militarismo, dos gastos militares e da indústria armamentista; o prosseguimento da política da Europa fortaleza e da política de migrações; o aprofundamento do mercado comum e da União Económica e Monetária com as suas “reformas estruturais” e o avanço na concentração capitalista em áreas como o ambiente e a energia, entre outras.

O PCP rejeita este caminho. Porque aprofundará ainda mais as desigualdades e o retrocesso. Porque no plano político acentuará as causas do populismo, do nacionalismo e da extrema direita. Porque prossegue a linha do ataque à soberania e ao direito ao desenvolvimento. E porque, assente numa afirmação militarista e imperialista da União Europeia, contribuirá para uma ainda maior instabilidade e insegurança no plano internacional com grandes riscos para os povos da Europa.

O PCP rejeita esta tentativa de circunscrever o debate sobre o futuro da Europa a um único caminho cujas consequências estão à vista e que constitui ele próprio uma ameaça para o futuro do continente e dos seus povos. O PCP reafirma que mais União Europeia não significa mais Europa. Pelo contrário, o aprofundamento do processo de integração capitalista é um dos principais factores de regressão social, de aumento da pobreza e do desemprego em massa. Um processo que, nas últimas décadas, fez regressar ao continente europeu a guerra, o terrorismo, o racismo e a xenofobia. É esta realidade que em Portugal, PS, PSD e CDS teimam em escamotear, reavivando os discursos do “Portugal na Europa” ou do “pelotão da frente”.

O PCP considera que é uma perigosa ilusão, ou uma deliberada mentira, afirmar-se que os interesses nacionais se defendem no quadro do reforço da União Europeia. A União Europeia e o Euro significaram e significam brutais constrangimentos contra os interesses nacionais. O reforço da União Europeia e do Euro não trará a solidariedade que nunca existiu, pelo contrário reforçará a prevalência dos interesses das transnacionais e das principais potências da União Europeia no quadro da disputa e negociação internacional, em detrimento, e mesmo sacrifício, dos interesses de Portugal e do povo português.

Num momento especialmente delicado da história do continente europeu a necessidade que se impõe é a de avançar para novas formas de cooperação entre estados soberanos e iguais em direitos. Novas formas de cooperação que articulem rupturas democráticas e progressistas no plano nacional e internacional visando a edificação de um novo quadro político, institucional, de cooperação económica, de solidariedade para o desenvolvimento social e económico, de paz e amizade entre os povos.

Portugal não tem de se sujeitar à brutalidade de mais imposições desencadeadas no âmbito da União Económica e Monetária e dos seus instrumentos e mecanismos de ingerência, chantagem e extorsão. Como as recentes e renovadas pressões do Eurogrupo demonstram esse é um processo ininterrupto e cíclico, de natureza política e ideológica, contrário aos interesses nacionais. Para lá do insulto e de um exercício de xenofobia e arrogância, as declarações do Presidente do Eurogrupo são uma demonstração clara da ideologia que preside ao processo de imposição, colonização económica e concentração de poder em curso na União Europeia.

O País não pode tolerar mais insultos, chantagens e ingerências.

A solução para os problemas nacionais, e em geral dos povos da Europa, passa pela libertação dos instrumentos que constrangem o desenvolvimento dos Estados, desrespeitam a sua soberania, história e cultura e impõem o neoliberalismo como doutrina. Passa pela dissolução da UEM e pela recuperação pelos Estados da soberania monetária e orçamental, adequando as políticas económicas às necessidades específicas de cada povo e Estado, e ao relacionamento económico e comercial mutuamente vantajoso. Passa pela renegociação da dívida, de acordo com os interesses de cada povo e Estado, terminando com o círculo vicioso do endividamento, empobrecimento e asfixia económica. Passa pela definição de políticas de estímulo à produção que assegurem elementos centrais da soberania no plano económico, alimentar, energético, entres outros. Passa pela recuperação do controlo público da banca e dos sectores estratégicos da economia, retirando-os do domínio pelas multinacionais e da lógica do lucro privado colocando-os ao serviço do progresso e desenvolvimento. Passa pela adopção de políticas externas conformes ao interesse de cada povo, que terminem com a subordinação à NATO e aos interesses das suas grandes potências, que projectem nas relações internacionais os valores da paz, do respeito pela soberania e independência dos Estados e a defesa da Carta das Nações unidas

O PCP tem profunda confiança na luta dos trabalhadores e dos povos. Contrariamente ao que hoje se tenta fazer passar, o rumo que foi imposto a Portugal e à Europa não é uma inevitabilidade. O que emerge da realidade nacional e europeia é a necessidade e a possibilidade de outro caminho. Nada nem ninguém pode negar o direito soberano de Portugal de decidir sobre o seu desenvolvimento e afirmação enquanto nação independente. Nesse caminho o PCP continuará a dar firme combate a todas as imposições supranacionais e a lutar em defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo, por um Portugal desenvolvido e soberano.

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