Intervenção de Ana Oliveira, Encontro «Os comunistas e o movimento sindical – uma intervenção decisiva para a organização, unidade e luta dos trabalhadores»

Tecnologia e novas formas de exploração capitalista

Tecnologia e novas formas de exploração capitalista

Camaradas,

A capacidade do ser humano de imaginar e transformar as suas ideias em realidade é algo de extraordinário. Ao longo de toda a História da Humanidade, esta alcançou conquistas absolutamente formidáveis no domínio da ciência, da técnica e da tecnologia para resolver os seus problemas, e assim melhorar as suas condições de vida.

Os últimos 100 anos têm sido avassaladores na velocidade a que novos avanços científicos e a sua disseminação têm sido alcançados, e desafiam as concepções de tempo, de distância e de velocidade até então vigentes.

A capacidade humana de sonhar, e de materializar as ideias por via da ciência, tem hoje a potencialidade de eliminar a esmagadora maioria das doenças, permitir prolongar a vida em condições de qualidade, e de ultrapassar a penosidade de grande parte das tarefas laborais. E uso a palavra “potencialidade”, porque o grande obstáculo entre as soluções oferecidas pela ciência e a sua concretização efectiva é a exploração capitalista.

O capitalismo tem feito de refém:

(1) a forma como se faz ciência - veja-se como determinadas áreas científicas foram preteridas face à ciência aplicada para que se possa garantir lucros rápidos;

(2) a forma como as conquistas científicas são distribuídas - vejam-se os impedimentos colocados aos países pobres na vacinação à COVID19 devido à existência de patentes, e

(3) a forma como a tecnologia é usada contra as próprias pessoas, nomeadamente para agravar os níveis de exploração dos trabalhadores.

Começar por valorizar a ciência e o desenvolvimento tecnológico é fundamental para que saibamos apontar o dedo aos reais responsáveis dos problemas derivados da adopção de mais tecnologia no trabalho. A substituição de uma máquina por um trabalhador que cai no desemprego, o controlo dos comportamentos pessoais de trabalhadores e da população em geral com recurso a ferramentas tecnológicas, e a alienação do trabalhador pela máquina – ou, na versão mais recente, pelo algoritmo – derivam do facto da propriedade da ciência, da tecnologia e das máquinas ser privada, e estar altamente concentrada em colossais grupos económicos.

Em 2019, a confederação dos patrões da indústria anunciou que em 10 anos Portugal poderia perder até 1.1 milhões de postos de trabalho para a automação. O anúncio do apocalipse para os trabalhadores não é uma originalidade, e desde que “digitalização”, “robotização” e “4ª Revolução Industrial” passaram a ser temas quentes no debate público, inevitavelmente vêm associados a anúncios de desemprego em massa, à perda de rendimentos, deixando a cargo do Estado e dos próprios trabalhadores o dever de se adaptarem, de se flexibilizarem perante a desregulação das condições de trabalho, de transformarem rapidamente as suas qualificações – de operário a programador informático, de professor a performer educacional no Zoom, de agricultor a designer de multimédia, de administrativo de escritório e gestor de grande empresa.

Mas se a necessidade de requalificar as competências dos trabalhadores e até a redução de horários de trabalho ficam lindamente quando escritos nas páginas deste relatório da CIP, bem sabemos como nem sequer as 35 horas de formação anuais previstas na lei e na contratação colectiva são muitas vezes cumpridas. Bem sabemos como o patronato estica horários de trabalho. Bem sabemos que tipo de Estado é que este patronato, as suas confederações e os partidos ao seu serviço querem – pequeno, expurgado das suas funções sociais, que saia baratinho aos bolsos cheios das grandes empresas.

Entre o que o que está escrito neste e noutros relatórios semelhantes, o que é defendido pelas confederações patronais, e o que é feito nas empresas, podemos resumir que sempre que o aumento dos lucros o justificar, o trabalho dos homens e das mulheres será substituído por máquinas, mas são esses homens e essas mulheres a terem de pagar os custos de uma transição digital que joga contra os próprios.

Camaradas,

Ainda no artigo da CIP, é previsto que a quebra do emprego sobretudo na indústria e no sector administrativo, onde os trabalhadores ainda são remunerados ao nível do salário médio, pode ser compensada por criação de emprego noutras áreas. Ora os sectores apontados como trabalhos de futuro são na construção e no apoio social, sectores tradicionalmente pagos ao nível do salário mínimo.

Além disso, o que se verifica há mais de uma década em países mais avançados em termos de automação de processos – e o que se começa a ver em Portugal também -, é que a maior parte dos novos empregos criados são empregos de tal forma desregulados que chamar-lhes de “precários” soa a elogio. São os trabalhos desenvolvidos a partir de plataformas digitais, em que a aparência de ausência de um patrão procura enganar os mais distraídos, e o trabalho independente é a regra que não permite excepções. Total ausência de horários de trabalho; ausência de uma remuneração mínima; ausência de direitos laborais; ausência de contribuições patronais para a Segurança Social; ausência de condições de segurança no trabalho ou seguros de acidentes pessoais; total desconhecimento das regras subjacentes à captação de tarefas laborais, escondidas atrás de algoritmos mantidos em segredo e alterados quando as empresas querem.

Numa divisão simplista e incompleta da realidade do trabalho em plataformas, distingo entre as plataformas de micro-tarefas e as plataformas de logística (como a Uber Eats e a Glovo). Na falta de direitos e na absoluta precariedade são em tudo iguais, pelo que a distinção é apenas útil porque sobre as plataformas de microtarefas prevalece um enorme desconhecimento da sua importância em Portugal, e no geral sobre as condições de pagamento dos trabalhadores nelas envolvidos. A plataforma de microtarefas mais relevante é da “pequenina” Amazon, e as microtarefas são pagas ao cêntimo. Um relatório da OIT – publicado ainda antes da COVID19, e por isso incapaz de retratar as consequências da pandemia neste domínio – relata que parte importante dos trabalhadores de plataformas de microtarefas depende em exclusivo da plataforma, que recebe abaixo do salário mínimo, e que por cada três horas de trabalho pago, passa mais uma à procura de tarefas. Tempo, naturalmente, não pago.

Características comuns ao trabalho desempenhado pelos milhares de trabalhadores de mochilas verdes e amarelas que nos últimos meses invadiram as ruas. “Vais precisar de... um sorriso de orelha a orelha, um veículo próprio, e um smartphone”, diz a Glovo. “Aproveite para descobrir novos recantos da sua cidade”, diz a Ubereats. E ambas dizem que os entregadores trabalham apenas o que querem. Por esquecimento, com certeza, é que omitem que têm mecanismos para forçar o trabalho nocturno e ao fim de semana (as chamadas “horas de alta procura”), que para atingir mínimos de salário digno exige um número indigno de horas trabalhadas, que não terão férias nem fins de semana, que não terão refeições nem casas de banho para utilizar, que trabalharão à chuva e ao frio sem local onde se abrigar, que estarão nas mãos das avaliações, tantas vezes arbitrárias, dos que encomendam refeições, e que nunca poderão compreender como funciona um algoritmo que determina quanto recebem naquela semana.

A ideia de criar legislação especial para regulamentar o trabalho em plataformas está já em marcha em vários países europeus, e tem como pecado original assumir que há diferenças substantivas nestas ocupações em relação às restantes relações laborais. Não há, camaradas. Entregas de refeições ao domicílio, por exemplo, é algo que existe há décadas. Onde reside a novidade – mas não a surpresa -, é na utilização de processos tecnológicos avançados para diluir a ideia de “patrão”, e transformar os trabalhadores em agentes exploradores deles próprios, e assim garantir assegurar maiores margens de lucros para quem detém essa tecnologia, os patrões. Patrões que, afinal, são de carne e osso.

Obrigada

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