Intervenção de

Referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez - Intervenção de Odete Santos

 

Realização de um referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher nas primeiras 10 semanas

 

Senhor Presidente
Senhores Deputados

 

Tanto quanto foi possível, aos antropólogos, remontar no tempo, sempre se registou em todas as sociedades, desde as mais primitivas às actuais, a prática da IVG.

Os retrocessos e os progressos na forma como as sociedades têm encarado a prática do aborto, estão indissoluvelmente ligados aos retrocessos e aos progressos da condição feminina.

Hoje está definitivamente assente que o problema do aborto tem de ser encarado como um problema de saúde pública e ainda como uma questão interligada com direitos fundamentais da Mulher e com a política criminal.

Veja-se nomeadamente, o relatório da Organização Mundial de Saúde sobre a situação do aborto no mundo, publicado no ano de 2004.

A luta das mulheres pelo direito ao domínio da sua sexualidade, pelo controle dos nascimentos, é uma luta secular que tem passado por perseguições penais que se prolongam no nosso país até aos dias de hoje.

Trata-se de uma luta de séculos porque de séculos é a luta pela igualdade, a luta pela dignidade do sexo feminino, a luta pela afirmação de que a mulher é um ser humano racional, parte integrante da espécie humana, e como tal dotada de capacidade para tomar decisões responsáveis em relação à sua saúde reprodutiva.

O que sempre se quis disfarçar e mesmo esconder por debaixo da violência do aborto clandestino, foi o preconceito contra a mulher. Por isso é que o argumento da protecção da vida humana intra-uterina é um argumento de violenta hipocrisia. Porque se sabe, de um saber de séculos, que não se protege o embrião nem o feto com a criminalização da mulher. Não restando na argumentação procriminalização a não ser esse tal preconceito antifeminino.

Se a Mulher tem o domínio da vida, abrindo as portas ao Conhecimento (e não é por acaso que na Idade Média já o fruto Maçã tinha esse símbolo, significando Conhecimento) então houve que reduzi-la a um útero. Tota muliere in utero, segundo S. Tomás de Aquino, ou, segundo Bonaparte, "A mulher não é senão um ventre". Como muito bem o refere Simone de Beauvoir no "Segundo Sexo."

E foi por isso que se encarceraram mulheres como Margaret Sanguer e Mary Stoppes, apenas por divulgarem o planeamento familiar e o controle dos nascimentos.

É por isso que se cerceia ás mulheres o direito de opção. É por isso que o Estado se arroga o direito a invadir a sua privacidade expondo a sua intimidade na barra do Tribunal e na praça pública. É por isso, porque persiste o preconceito de que a mulher não é capaz de tomar decisões responsáveis, que se age como se o Estado fosse dono da sua fecundidade. É mesmo por isso que se devassa a privacidade das mulheres em processos referendários, para perguntar aos outros, se as mulheres têm capacidade para tomar decisões, se as mulheres têm direito á saúde reprodutiva. Para perguntar aos outros se o Estado em nome de metafísicas concepções de uma parte apenas da sociedade, deve invadir a privacidade dos quartos de dormir, e ordenar às mulheres que tenham filhos não desejados nem planeados, contra o seu direito à maternidade consciente.

Depois de tantos séculos de luta, depois dos extraordinários avanços da década de 60, depois das várias Conferências Internacionais das Nações Unidas sobre a mulher nomeadamente depois da Conferência de Beijing que apelou ao fim da perseguição penal das mulheres que abortassem e que denunciou as graves consequências do aborto inseguro, em Portugal por força da maioria absoluta do PS, ainda se convoca a Praça Pública para perguntar se a mulher que aborta é ou não uma criminosa. Para perguntar se as mulheres portuguesas devem ou não (as mais afortunadas) dirigir-se ao estrangeiro, para interromper a gravidez em segurança. E se as outras, as pobres, que são muitas nos dois milhões de pobres, ou as que estão um pouco acima do limiar de pobreza, que são muitas, têm de remeter-se às agulhas de tricotar, ao vão de escada, à clandestinidade de uma porta que se abre desconfiadamente, por detrás da qual se sente o sofrimento das mulheres que tomaram decisões difíceis, mas morais, como as decisões assentes na sobrevivência da própria família.

As mulheres perante o Partido Socialista, têm fraco poder negocial. Foram sujeitas a 1 referendo em 1998 depois de estar aprovado, na generalidade, um projecto de lei.

Mulheres sentaram-se entretanto, no banco dos réus e sofreram devassas.

Mulheres foram mesmo compelidas a pagar prestações a instituições escolhidas pelo Tribunal, para expiar a sua culpa de ter exercido o direito de opção, naquele famoso instituto da suspensão provisória do processo que os movimentos criminalizadores defendem para escapar à condenação da opinião pública que não hesita, apontando-os com o dedo.

O direito à saúde reprodutiva pode agora ser sujeito a um novo referendo.

É curiosa de resto, a posição do Partido Socialista nesta matéria.

Pois que relativamente a outra área que se prende com as mesmas questões éticas - a destruição de embriões na clonagem terapêutica para formação das linhas de células estaminais embrionárias - tem, ao que parece, e quanto a nós bem, uma posição completamente oposta: é contra o referendo.

Mas aí já não estão em causa apenas os problemas das mulheres. Aí, para além do interesse da Ciência (que defendemos para bem da humanidade) estão os interesses das multinacionais que investem na investigação científica.

Curiosa também é a pergunta que se reporta ao projecto de lei do Partido Socialista.

Por que foram escolhidas as 10 semanas?

Não é verdade que a legislação europeia adopte esse prazo. No mínimo, o prazo é de 12 semanas de gravidez, como, aliás o PCP propõe no seu projecto de lei. Havendo mesmo prazos superiores. E veja-se o dossier que o Senado Francês elaborou quando em 2000 foi discutida a alteração à lei Veil.

Sim, senhores Deputados do Partido Socialista: V. Exªs chegam novamente com atraso. É que, tendo copiado a lei Veil que estabelecia as 10 semanas (aliás sem qualquer justificação científica ou médica) esqueceram-se de estudar o Relatório pedido pelo Governo Francês a Israel Nisand, apresentado em 1999.

Concluindo-se com base no mesmo, que o prazo de 10 semanas era manifestamente insuficiente, pesando, nomeadamente, sobre as mulheres em situação de precariedade e agravando as desigualdades sociais, determinando, para mais que cerca de 5000 mulheres por ano demandassem clínicas estrangeiras, logo o Governo Francês em processo legislativo para que solicitou o regime de urgência, aumentou o prazo para 12 semanas de gravidez na lei de 2001.

Senhor Presidente
Senhores Deputados:

Se, contra a nossa opinião, este referendo passa - culpas, for para diante, nós estaremos com as mulheres portuguesas em mais um marco na luta que haveremos de vencer.

Para provar que se trata de um problema de saúde pública, de um problema social, de um problema de política criminal, e não de um problema de consciência para os Deputados.

Deixem os problemas de consciência para as mulheres que têm de decidir, mas não fujam à responsabilidade de legisladores.

Trata-se de um problema de aplicação do artigo 18.º da CR. E não do problema de determinar quando começa a pessoa humana. Porque aí as opiniões dividem-se. E sendo a bioética antidogmática, não há ninguém que possa exigir ao Estado que imponha as crenças de alguns.

Se querem determinar qual o consenso que existe na sociedade, então reparem que nas zonas mais tradicionais, permeáveis ao não, as mulheres fazem desmanchos.

Se, contra a nossa opinião, este referendo passar, estaremos no combate, para provar que as mulheres não são criminosas.

Disse.

 

 

 

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