Intervenção de João Oliveira na Assembleia de República

Uniões de facto

Reforça o regime de protecção das uniões de facto
(projecto de lei n.º 253/XI-1.ª)

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
A discussão que agora fazemos em torno do regime jurídico das uniões de facto é uma discussão em torno do respeito pela vontade das pessoas, do respeito pelas opções de cada um quanto à forma como decidem constituir família. E o respeito por estas
opções exige do Estado a garantia de igual dignidade no tratamento dos cidadãos, independentemente da forma como decidem constituir família.
O PCP orgulha-se do contributo que tem dado ao longo dos anos para o progresso social, e também legislativo, que se tem verificado, contra a vontade daqueles que pretendem impor as suas concepções conservadoras quanto aos modelos de vida e de organização, que pretendem, aliás, impor aos outros o seu modelo de vida, o seu modelo de organização familiar. Infelizmente, já tivemos hoje aqui uma primeira abordagem a este tipo de concepções conservadoras e retrógradas, protagonizada pela Sr.ª Deputada Francisca Almeida. A esta concepção conservadora e retrógrada contrapõe-se a que o PCP tem protagonizado com as propostas que tem apresentado e que não reconhece apenas o casamento como a única forma legítima de organização familiar.
A questão, Sr.ª Deputada Francisca Almeida, é esta: um Estado que queira garantir aos cidadãos iguais condições para exercerem as suas opções relativamente à forma como decidem organizar a sua vida, como decidem constituir família, tem de garantir uma verdadeira igualdade e não pode condicionar as opções dos cidadãos por força da protecção que deixa de conceder a uns enquanto concede aos outros.
Sr.ª Deputada Francisca Almeida, o PCP, desde 1985, já apresentou seis projectos de lei e inúmeras outras propostas, no âmbito de processos legislativos que se têm debruçado sobre o regime jurídico das uniões de facto. Todas estas nossas iniciativas têm, em comum, várias ideias centrais, das quais destaco duas: a primeira é a noção de que o casamento e a união de facto não podem ter o mesmo regime jurídico, porque são realidades distintas, que correspondem a opções distintas, mas às quais tem de ser garantida igual dignidade no reconhecimento por parte do Estado.
Uma segunda ideia fundamental é a noção de que a única forma de garantir a decisão livre de cada um relativamente à forma como decide constituir família é o igual tratamento naquilo
que diz respeito às decisões que, em comum, condicionam a forma como se estabelece essa vida em comum.
Portanto, Sr.ª Deputada Francisca Almeida, não se trata de encontrar um regime jurídico idêntico ao do casamento para as uniões de facto; pelo contrário, trata-se de respeitar as especificidades das uniões de facto, garantindo igual protecção da vida em comum, seja ela estabelecida com base no casamento, seja ela estabelecida com base numa união de facto.
O que se verifica, Sr.as e Srs. Deputados, é que, apesar dos avanços registados ao longo dos anos, o regime jurídico das uniões de facto não garante aos cidadãos a devida protecção em alguns aspectos e por isso se impõe esta discussão.
Impõe-se que o regime jurídico das uniões de facto seja alterado, para que garanta, naqueles aspectos em que, ainda hoje, os membros das uniões de facto se vêem desprotegidos quando não deveriam estar, essa protecção.
O projecto de lei que o PCP apresenta incorpora as propostas que apresentámos no processo legislativo que decorreu na X Legislatura e incide essencialmente sobre três matérias. Por um lado, naquilo que diz respeito à matéria laboral e protecção social, introduzindo alterações ao artigo 3.º da Lei, porque não se justifica que, por terem optado por organizar a sua vida com base numa união de facto e não num casamento, os homens e as mulheres que não se casaram sejam discriminados em matéria laboral e em matéria de acesso à protecção social. Impõe-se o respeito por uma forma diferente do casamento, de decidir organizar a vida.
Em segundo lugar, em matéria de protecção de casa de morada de família e residência comum, introduzimos alterações que permitem garantir, numa questão tão fundamental quanto é a
habitação, a dignidade, o respeito e a protecção ao membro da união de facto sobrevivo. Quando se verificam determinadas circunstâncias, apesar das expectativas que eram comuns, apesar da organização da vida que, em muitos casos, ultrapassa algumas décadas, pretendemos impedir que o membro da união de facto sobrevivo fique desprotegido em relação a uma questão fundamental, como é a casa de morada de família, garantindo, aliás, um regime de protecção que não é muito diferente dos que existem em outros países da Europa.
Por último, em matéria de acesso às prestações por morte, pretendemos tão-só garantir aos membros das uniões de facto o acesso às prestações por morte que resultam não da situação de desprotecção em que se encontra o membro sobrevivo mas do facto de ter havido uma pessoa que, ao longo da sua vida inteira, descontou para a segurança social e que, por força desse desconto, garantiu àquela pessoa com quem vive em comum, seja casado ou não, o acesso a essas prestações.
Portanto, o que fazemos não é equiparar o casamento às uniões de facto. É garantir, nestas três matérias essenciais, aos membros das uniões de facto a protecção de vida que o Estado deve garantir.
Quanto aos projectos de lei do Bloco de Esquerda e do Partido Socialista que estão em discussão, gostava apenas de deixar uma referência. Na anterior Legislatura, votámos favoravelmente a redacção final da lei que resultou do processo legislativo, ou seja, da discussão que foi feita em sede de especialidade, sem prejuízo de termos deixado dois reparos quanto a duas matérias, em relação às quais considerávamos que as soluções poderiam ser diferentes: naquilo que diz respeito à equiparação da união de facto ao casamento para efeito de
perda ou diminuição de direitos ou benefícios, já na altura considerámos que esta não era uma solução correcta, e, aqui, deixamos, uma vez mais, esse reparo; e em matéria de protecção de casa de morada de família, por entendermos que o texto final a que se chegou na anterior Legislatura não ia tão longe quanto poderia e deveria ir nesta questão fundamental.
Os projectos de lei do Partido Socialista e do Bloco de Esquerda recuperam estas duas matérias, que, na altura, foram motivo da nossa objecção.
Sem prejuízo destas duas matérias, votaremos favoravelmente os dois projectos de lei, porque
continuamos a entender que, em sede de especialidade, é possível corrigir aqueles dois aspectos. Aliás, temos no nosso projecto de lei as soluções que entendemos necessárias.
Portanto, votaremos favoravelmente todos os projectos de lei que estão em discussão, sem prejuízo de, em sede de especialidade, procurarmos corrigir estes dois aspectos que consideramos que são facilmente ultrapassáveis.
(…)
Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
Há um ano, quando fizemos o debate sobre as alterações ao regime da união de facto, para responder à intervenção do Sr. Deputado Nuno Melo, utilizei uma frase que em tudo se adequa às intervenções que hoje ouvimos das bancadas da direita. De facto, só faltava a esta direita parlamentar repetir a frase de Napoleão Bonaparte, quando disse que os concubinos vivem à margem da lei e, por isso, a lei desinteressa-se deles. Era o único corolário que faltava nas
intervenções que ouvimos da direita parlamentar!
A verdade, Sr. Deputado Luís Marques Guedes, é que respeitar a liberdade individual dos cidadãos significa garantir-lhes as condições para que as suas opções possam ser feitas livres de quaisquer constrangimentos.
Sr. Deputado Luís Marques Guedes, se alguém corre o risco de ser despejado da casa onde viveu 40 anos com a pessoa com quem decidiu viver em comum e se, para que isso não aconteça, casa, vai casar por obrigação.
Se alguém for impedido de aceder a prestações por morte porque vive em união de facto e decide casar para que isso não aconteça, vai casar por obrigação.
Sabe que mais, Sr. Deputado Luís Marques Guedes? Vai casar nas duas situações por interesse. Por um interesse material, porque naquela situação é obrigado a casar para ter acesso a uma protecção da qual não beneficia se viver em união de facto.
Respeitar a liberdade individual dos cidadãos significa, nestas duas situações em concreto, garantir a protecção àqueles que decidem viver em união de facto em circunstâncias aproximadas, se não puderem ser idênticas, àquelas de que beneficiam aqueles que decidem casar-se.
Sr.as e Srs. Deputados,
Utilizando o exemplo que aqui foi trazido, o João e a Maria devem poder fazer as suas opções sem constrangimentos de qualquer ordem, muito menos de ordem material, e se entenderem que devem casar, devem fazê-lo e se entenderem que devem viver em união de facto, que vivam em união de facto. O Estado não deve limitar ao João e à Maria a possibilidade de fazerem essas opções, desprotegendo-os se optarem por viver em união de facto.
É isso que, da parte do PCP, procuramos corrigir, ou seja, aquelas situações de pessoas que vivem em união de facto e que ainda hoje o Estado não protege.
Registamos com agrado que, neste debate, não tenha havido qualquer objecção ao projecto de lei do PCP, o que nos dá redobrada confiança de que o nosso projecto possa recolher o apoio até da direita, que, de forma mais conservadora e mais retrógrada, se manifestou contra este avanço jurídico, que reflecte um avanço social, que o próprio Presidente da República reconhece no veto quando diz que há cada vez mais portugueses a optarem por viver em união de facto.

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