Intervenção de Miguel Tiago na Assembleia de República

Um rasto de destruição do Cinema provocado pela política de PSD e CDS

Estabelece os princípios de ação do Estado no quadro de fomento, desenvolvimento e proteção da arte do cinema e das atividades cinematográficas e audiovisuais
(proposta de lei n.º 69/XII/1.ª)

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
A proposta de lei apresentada pelo Governo vem na linha de um rasto de destruição do cinema provocado pela política do PSD e do CDS.
Os cortes de 100% no apoio à produção cinematográfica foram e são uma opção deste Governo e não uma fatalidade. Esses cortes resultam do incumprimento da Lei do Cinema em vigor e são utilizados como elemento na chantagem para a aceitação de uma nova lei a todo o custo.
Há muito que o ICA vive exclusivamente da cobrança de taxas, apesar da ilegalidade dessa situação.
Sejamos claros: o Governo não cumpre a lei, contribui para que ninguém a cumpra, furta-se aos seus compromissos, congela apoios já aprovados e cancela a abertura de concursos para novos apoios. À margem da lei, coloca em agonia e em asfixia todo um setor, um vasto conjunto de indivíduos e de coletivos, que produz arte e cultura.
O mesmo Governo que não cumpre a lei em vigor vem dizer que tudo se resolverá com uma nova lei, pior do que aquela que agora vigora.
O que não se pode esquecer é que se hoje o setor atravessa as dificuldades que atravessa isso se deve, única e exclusivamente, à política do Governo e não à falta de uma nova lei. Não é por falta de lei que o Governo não abre os concursos, não é por falta de lei que o ICA não paga o que deve aos realizadores e produtores, é por subserviência à troica e ao «pacto de agressão», que fazem da cultura, do direito à fruição e criação artísticas um luxo para quem pode pagar e do cinema apenas um mercado de entretenimento reservado às grandes produtoras e nas mãos do monopólio da distribuição.
Não é por falta de lei que a maior parte ou a quase totalidade das curtas-metragens portuguesas não têm apoio do ICA. Não é por falta de lei que o cinema português não passa nas salas de cinema, não entra no circuito de distribuição, a não ser através de privados, associações e empresas, clubes e cineclubes, que, por dedicação e empenho, prestam um autêntico serviço público, colocando à disposição do público o que de outra forma nunca veria a luz do dia. Esse trabalho, hoje, é feito sem remuneração, sem remuneração do artista, do distribuidor e exibidor. Mas é também aí, nesse trabalho, em pequenos festivais, bares, cineclubes, que pulsa o cinema português. Para esse cinema, a lei em vigor seria suficiente, caso o Governo a quisesse cumprir.
É por responsabilidade direta do PS, do PSD e do CDS que, hoje, as salas de cinema perdem milhares de espectadores todos os dias e milhões de euros. É por responsabilidade direta deste Governo que os portugueses não têm possibilidade de ver cinema português.
A proposta de lei tem como objetivo claro ganhar tempo para que o Governo não abra concursos, mas o PCP dará o seu contributo para que suceda o contrário, trabalhando para que esta má proposta possa ser alterada, no sentido da responsabilização do Estado.
O PCP entende que o financiamento das artes e da cultura é da responsabilidade direta do Estado. Pode ser complementado com recursos e afetação de outras receitas, é certo, mas não aceitamos que o financiamento do cinema independente esteja sujeito às receitas da publicidade dos circuitos comerciais.
O PCP não aceita a chantagem do Governo e, desde já, lança aos restantes grupos parlamentares um desafio para que aprovem a resolução que hoje mesmo o PCP apresenta, no sentido de que o Governo crie imediatamente um programa de emergência para apoio à produção cinematográfica e pague imediatamente os compromissos assumidos pelo ICA, correspondentes a projetos aprovados e já em curso.
A Assembleia da República tem de ter o tempo e o espaço para fazer o que lhe compete, para que possa discutir democraticamente o conteúdo desta proposta de lei.
Não concebemos a aprovação de uma lei que deteriora o quadro legal em vigor, que demite o Estado das suas responsabilidades fundamentais, sem que a Assembleia tenha, sequer, uma palavra a dizer para alterar o texto, ouvindo os agentes do setor, os interessados, os profissionais, os criadores, cineastas, técnicos, mas também as suas organizações representativas e aquelas entidades que por esta lei são taxadas.
Não deixa de ser curioso, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que os mesmos que aqui propõem quotas para os filmes apoiados pelo ICA nos circuitos comerciais tenham sido os que atacaram a proposta do PCP para a introdução de quotas para o cinema português. Ou seja, para este Governo as quotas são legitimadas pelo crivo da política a gosto do ICA.
Quotas para dinamizar e promover o cinema português, não! Quotas para o cinema que o ICA decide apoiar, sim! Estranha forma esta de liberdade de comércio e de mercado que a maioria defende.
Também não deixa de ser estranho que aqueles que rejeitam a proposta do PCP para a cobrança de 0,75 € para legalização da partilha de ficheiros na Internet, para, assim, financiar a produção cinematográfica em 10 milhões de euros, sejam os mesmos que agora propõem uma taxa de 5 € sobre a subscrição de canais de televisão sem que o utilizador tenha qualquer espécie de mais-valia com esse pagamento.
Esta proposta de lei vem fazer com que a produção cinematográfica independente fique sujeita à dinâmica do mercado da publicidade e ao investimento privado e que se autonomize, assim, do serviço público de arte e cultura.
O PCP defende que o cinema, a produção e a criação, tal como a fruição dessas produções são direitos independentes do mercado do entretenimento, devem existir mesmo que não haja publicidade privada nos meios de comunicação social. O cinema livre e alternativo deve existir e ser financiado, mesmo que não haja subscritores de canais desportivos.
Os cidadãos portugueses não querem que os seus impostos paguem os salários de luxo dos gestores das empresas públicas, os lucros obscenos das parcerias público-privadas, os juros à banca, os favores ao FMI e à União Europeia.
Os portugueses não aceitam sacrificar 530 anos de apoio à produção cinematográfica para colocar 8000 milhões de euros nos «buracos» que a banca abriu.
Os cidadãos querem que os seus impostos sirvam para melhorar a vida de todos e não apenas a dos que vivem à grande, enquanto os trabalhadores empobrecem.
Os cidadãos portugueses querem que os seus impostos paguem a cultura, a arte, a criação, que garantam a liberdade criativa, que contribuam para democratizar a fruição da arte nas ruas e nas salas de cinema.
Queremos que os impostos de quem trabalha sejam aplicados no cinema, sim, na arte, na cultura e não nos bancos e na salvação dos criminosos e agiotas.

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