Declaração de José Neto, membro do Comité Central do PCP, Conferência de Imprensa

Um ano de política de Justiça

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O sistema judicial português continua confrontado com graves dificuldades estruturais que reflectem a profunda crise económica e social que o País atravessa e resultam, em grande medida, da errada orientação das políticas implementadas e desenvolvidas por sucessivos Governos e da sua incapacidade ou falta de vontade política para as superar. Apesar dos desígnios constitucionais, é uma realidade objectiva que o conteúdo de classe das políticas para esta área, e das leis aprovadas que as sustentam, correspondem aos interesses do poder económico dominante e dos seus serventuários.

Faz agora um ano, escrevia o PCP que a retórica de boas intenções e boas palavras proclamadas no Programa do Governo e pela Ministra da Justiça rapidamente iriam ser postas à prova, não havendo razões, também nesta área, para haver ilusões de que a situação pudesse mudar e entrar no bom caminho.

Na verdade, a Ministra não cumpre o que prometeu e nunca disse que faria o que está a fazer. A política de justiça do actual Governo, não resultou, até agora, em melhorias, no que toca à realização da justiça.

Pelo contrário – aumentaram as custas e taxas de justiça, o acesso ao direito e o apoio judiciário pioraram, com milhares de advogados com milhões de euros por receber e que o Governo não paga, a corrupção não é combatida, a impunidade continua, podem fechar tribunais, é baixa a motivação dos profissionais.

Sem esquecer a inclusão da justiça no Pacto de Agressão, já que o memorando da troika ditou também o seu programa para este sector, com metas, medidas e prazos concretos: resolver processos a todo o gás, desjudicializar e tratar os conflitos fora dos tribunais do Estado, alterar o mapa judiciário.

À semelhança de outros sectores, a política do Governo para a Justiça tem-se limitado, fundamentalmente, ao cumprimento do memorando da troika. A começar no Orçamento do Estado, com a previsão de um corte de 8,7% na despesa e de aumento de receitas de custas da ordem dos 10 milhões de euros.

O Pacto de Agressão, assinado pelo PS, PSD e CDS, não se coibiu sequer de interferir na soberania do poder judicial, tendo o actual governo assumido a exigência da troika de que um novo mapa judiciário (o anterior era do PS) seja implementado em todo o país até 2013, mesmo sabendo que não irá resolver nenhum problema importante, antes os agravará.

O novo Mapa judiciário proposto pelo Governo confronta as populações do nosso país, com a ameaça de encerramento de muitas dezenas de tribunais (54), sobretudo no interior, já tão castigado pela asfixia financeira e pelo encerramento de serviços públicos. Ameaça mais grave ainda, por se tratar da Justiça, pilar do regime democrático e uma função de soberania, de que nenhuma parcela do território nacional pode ser amputada.

O Governo só insiste na reorganização judiciária porque esse é o pretexto que dá cobertura aos objectivos economicistas de encerramento de tribunais e extinção de lugares nos quadros de juízes, procuradores e funcionários judiciais.

Não há razões que justifiquem fechar tribunais. Os tribunais devem estar onde estão as pessoas e a sua localização não pode estar sujeita ao critério economicista da oferta e da procura.

O novo plano de fechar tribunais, a ir por diante, conduziria ainda a uma maior desprotecção, quando os trabalhadores e as populações mais dela carecem e afastaria ainda mais os trabalhadores e as populações do acesso ao direito e à justiça, que a Constituição garante.

A opção pela criação de mais tribunais especializados, apresentada como vantagem decisiva desta reforma, para além de não necessitar de qualquer reorganização do mapa judiciário, está longe de compensar os prejuízos do afastamento real da justiça dos cidadãos das comarcas de competência genérica entretanto encerradas.

O PCP alerta para o facto de que esta reforma pressupõe uma linha de concentração e centralização de competências jurisdicionais, pelo que, a ser concretizada, ficaria aberta a porta a novos e mais generalizados encerramentos, diminuindo o papel do Estado e abrindo espaço para a privatização da justiça.

Mas, esta grave decisão não é inevitável, nem imparável. É preciso continuar a alargar o caudal de protestos que esta proposta está a levantar, por todo o país, no sentido de impedir, por todas as formas, que a ameaça se concretize.

O PCP está firmemente ao lado dessa luta e tudo fará para impedir o encerramento de tribunais. Ao mesmo tempo dará todos os contributos para que sejam efectuadas melhorias no plano da organização judiciária que realmente dêem resposta aos problema com que ela está confrontada.

Retirar dos tribunais do Estado cada vez mais questões e conflitos é uma tendência que se acentua, vulgarizando os chamados meios alternativos de resolução de litígios fora dos tribunais, formas encapotadas de privatização da justiça que favorecem a parte mais forte em detrimento do cidadão.

Esta é uma exigência expressa em letra de forma no memorando da troika, com medidas para facilitar a resolução dos casos pendentes de execução de dívidas e subtrair o mundo dos negócios à intervenção soberana do poder judicial, com vantagens óbvias para os interesses das grandes empresas e dos grandes escritórios da advocacia.

O PCP combate firmemente essa orientação e, para além de outras medidas, de há muito propõe que os Julgados de Paz, sob a égide do Estado, constituam a instância alternativa preferencial de resolução de conflitos, alargada a sua rede a todo o país, mais simplificado o seu funcionamento, e ampliadas as respectivas competências, designadamente em matérias criminais que não envolvam penas de prisão.

No que respeita ao crime económico e à corrupção, a realidade que todos os portugueses vêem e sentem, para lá da retórica do fim da impunidade, é a impunidade que continua, com a morosidade dos grandes processos criminais, sobretudo aqueles que envolvem gente com poder, e que, fruto de um conjunto complexo de factores, de incidentes processuais e de pressões e influências de toda a ordem, quase sempre acabam sem que justiça seja feita, sem que se apurem responsabilidades pelos crimes cometidos, sem que os seus autores sejam punidos.

Esta matéria, factor que mais contribui para o descrédito na justiça, que mina os alicerces da economia e do regime democrático, está obviamente ausente dos compromissos do Pacto, ao mesmo tempo que tarda o cumprimento das repetidas promessas de reforço das condições e meios para uma eficaz investigação criminal.

Constata-se, no terreno, uma enorme carência dos mais elementares meios materiais e humanos, hoje a principal dificuldade que se coloca no trabalho diário do Ministério Público e da Polícia Judiciária, sobretudo quanto aos processos de maior complexidade.

O acesso à Justiça e aos tribunais não melhorou com o actual Governo. O aumento das custas e as taxas de justiça altíssimas tornam a justiça cada vez mais inacessível aos cidadãos para exercerem os seus direitos.

Há por todo o país milhares de advogados com avultadas verbas em dívida do Estado por serviços prestados no âmbito do Sistema de Acesso ao Direito, que ameaçam abandonar o sistema, deixando de garantir uma função essencial para que os cidadãos de menores recursos económicos possam aceder ao Direito e aos tribunais.

Para o PCP, é imperioso que todos tenham acesso à tutela jurisdicional efectiva, no respeito pelo artº 20º da CRP. É necessário alterar o iníquo regime das custas judiciais, tornando menos oneroso o acesso à justiça, alargar os critérios de atribuição do apoio judiciário e garantir um regime de gratuitidade em matéria de justiça laboral. Impõe-se criar de um verdadeiro serviço público para a defesa oficiosa e o patrocínio judiciário dos cidadãos, que garanta a todos informação jurídica de qualidade.

Em matéria penal, e após longos meses de anúncios e propaganda, chegaram finalmente à Assembleia da República as propostas do Governo, algumas das quais apontam para soluções e respostas de cunho marcadamente populista e demagógico, de que o PCP obviamente se demarcará.

O sector prisional continua com muitos problemas, desde logo o dos recursos humanos e,sempre, o problema da sobrelotação, com repercussões negativas quer ao nível das condições de detenção e da função ressocializadora, quer dos direitos dos profissionais.

Uma nova política para a área da justiça deve ter como objectivos essenciais: o combate ao crime organizado e à corrupção; a defesa de uma justiça mais igualitária, acessível e próxima dos cidadãos, que é responsabilidade do Estado assegurar; a preservação do poder judicial soberano face aos poderes político e económico, a par da garantia da autonomia do Ministério Público.