Intervenção de

O Tratado de Lisboa

 

 

O Tratado de Lisboa

Sr. Presidente,
 Srs. Membros do Governo,
 Sr.as e Srs. Deputados:

Convocou o Governo um debate sobre o Tratado da União assinado há quase dois anos em Lisboa, para os efeitos que estão mais ou menos à vista: comemorar o encerramento de um longo e controverso processo de ratificação, celebrar a entrada em vigor do novo Tratado no próximo dia 1 de Dezembro.

Podia o Governo ter-nos antes convocado para debater a incapacidade - arrisco mesmo a dizer, a impossibilidade - de a União concertar e definir políticas para fazer crescer a economia, defender os serviços públicos, estancar o desemprego, impedir a assustadora precariedade laboral, garantir efectiva protecção social, salários e reformas dignas a todos os europeus. Poder, podia, como diz o anúncio, mas nisso não está interessado o Governo!

Podia o Governo ter vindo cá reconhecer que as prometidas mudanças para impedir novos terramotos no sistema financeiro, acabar com os paraísos fiscais e as cortinas de fumo do branqueamento e do crime fiscal, foram afinal retórica de momento e que, no fundamental, tudo vai ficar na mesma no «reino da Dinamarca». Não, isso não arriscou o Governo, porque se revelaria, de facto, mais cúmplice com este faz-de-conta para enganar a opinião pública.

Podia, então, o Governo convocar-nos para verberar os «Almunias» desta Europa que, mal cheiram medíocres sinais de desafogo económico, mostram logo a sua mal contida obsessão orçamental, a sua ânsia de voltar a usar o chicote nos povos, em especial os povos dos países mais atrasados e periféricos. Isso também o Governo não fez, já que, é claro, até está da acordo com a versão do chicote, até pensa voltar a usá-lo em breve.

Mas o que tem Portugal para comemorar? O que pretende o Governo que o País comemore?

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:

Sobre a ratificação do Tratado e a realização de um referendo que clarificasse a posição dos portugueses e de outros povos da União, assistimos nos últimos anos a uma gigantesca fraude política.

Será, então, que merece ser comemorada a quebra de compromissos eleitorais, o rasgar de programas do Governo? Deve ser comemorado o facto de o PS e o PSD terem mais uma vez combinado calar a boca aos portugueses, impedindo o País de dizer o que pensa sobre esta construção europeia?

Deve ser comemorado o facto de nos dizerem que a Europa é feita em nome dos cidadãos e depois vermos que, afinal, o que querem é tapar a boca aos cidadãos?

Será legítimo comemorar embustes políticos, como o de alterar o nome de um tratado chamava-se constitucional, passou a chamar-se reformador, nada mais mudou), só para não correr o risco de franceses e holandeses poderem voltar a dizer «não» a um projecto federalista e de dominação económica e militar posto em marcha pelo núcleo duro de grandes potências?

Merece ser comemorado o desrespeito dos resultados da consulta popular na Irlanda de Junho de 2008 e a sistemática repetição de referendos neste País em condições crescentes de ingerência e chantagem sobre os seus cidadãos, até que os resultados se conformem com os desejos de Bruxelas? E será que o Governo - e, já agora, Bruxelas - pensam agora discutir com a Irlanda a realização eventual de um terceiro referendo, para servir de desempate?

Mas, Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Sr.as e Srs. Deputados, será que, fechado o ciclo de uma ratificação politicamente fraudulenta, Portugal tem outros motivos para comemorar a entrada em vigor do Tratado?

Devem os portugueses comemorar que o novo Tratado invada, confronte e se sobreponha ao que, em muitos aspectos, a Constituição estipula e defende?

Será que devemos comemorar a alienação de poderes constitucionais soberanos, como a transferência da gestão dos recursos biológicos marinhos? Ou a transferência de competências exclusivas deste Parlamento, como as do ordenamento do território e de solos?

Deve Portugal ficar satisfeito pelo facto de o Tratado consolidar um modelo federal de poder que reduz à ínfima expressão o exercício da votação por consenso, isto é, o respeito pelos interesses e especificidades de todos e cada um dos Estados-membros? E devemos exultar com um modelo de tomada de decisões baseado

na maioria qualificada, que reforça a desigualdade de voto entre os maiores e de maior população e os restantes, obrigando todos a seguir a reboque das conveniências do directório das grandes potências? E será que, ao contrário do que até alguns insuspeitos repetidamente afirmam, devemos ficar contentes pelo facto de a maioria das decisões passar a ser objecto de co-decisão com o Parlamento Europeu, onde a diferença abissal das representações parlamentares reforça a desigualdade das decisões a favor dos grandes e poderosos, ainda por cima a coberto do aparente exercício da democracia?

Será que devemos festejar o fim das presidências rotativas da União Europeia? Que vantagens para o País devemos sublinhar nestes festejos?

E será o aparente reforço do papel dos parlamentos nacionais real ou mais virtual e formal? Devemos ficar contentes por passar a receber centenas de documentos, incluindo convocatórias e agendas das reuniões do Conselho Europeu? Devemos exultar quando reunirmos o número suficiente de parlamentos nacionais para exercer o controlo do princípio da subsidiariedade? Só nessa altura iremos, então, reparar que, afinal, a Comissão pode simplesmente decidir que tudo fique na mesma e que não vale a pena brincar aos controles do princípio da subsidiariedade?

Temos que nos regozijar se o novo Tratado confirma o neoliberalismo como «doutrina oficial» e confere ao Pacto de Estabilidade, ao Banco Central, à sacralização da «concorrência não falseada» o papel de instrumentos e orientações essenciais para a globalização e a circulação desenfreada, desregrada e ilimitada de capitais?

Que festejos devemos, Sr.as e Srs. Deputados, fazer para comemorar que, em vez do «direito ao trabalho», inscrito na Constituição, o Tratado consagre, afinal, o «direito a trabalhar», tal como dizia a Constituição da República Portuguesa de 1933?

Que deveremos comemorar se, ao invés da «abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos», como diz a Constituição da República, o novo Tratado confira à União capacidade plena no plano externo, designadamente para impor e promover «uma boa governação ao nível mundial e reforçar a segurança internacional», criando obviamente um novo pólo de natureza militar que se confronta com os objectivos da paz e da cooperação externa que nos devem nortear?

Não, Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados.

Nada temos que comemorar pelo facto de o novo Tratado entrar em vigor no dia 1 de Dezembro.

O futuro terá de prosseguir a luta e a denúncia política contra um documento que representa mais um acto de subordinação dos interesses nacionais a interesses políticos e económicos externos.

O futuro continuará a ser o da afirmação de um outro rumo para Portugal e para a Europa, baseado na cooperação, na igualdade de direitos e no respeito pelas soberanias, no reforço do crescimento económico para melhorar as condições de vida dos europeus, para promover a justiça social e garantir a coesão económica e social entre países e regiões.

O futuro será dizer «não» a esta cada vez mais perigosa escalada militar que o Tratado reforça, lutando por uma Europa que defenda o desarmamento, promova a não ingerência, a ajuda, a cooperação e a solidariedade entre povos e nações.

Nada disto, Sr.as e Srs. Deputados, está previsto ou constituem objectivos do novo Tratado de Lisboa.

  • União Europeia
  • Assembleia da República
  • Intervenções