Sobre o combate à corrupção

Adopção de medidas legais de combate à corrupção e à criminalidade económica e financeira

 

Sr. Presidente,
Sr. Deputado Ricardo Rodrigues,

O Sr. Deputado usou da palavra para, esperávamos nós, apresentar os projectos de lei do Partido Socialista que estão hoje em debate.

Em vez disso, nada!

Mas o Sr. Deputado não apresentou as iniciativas do Partido Socialista, tendo-se ficado pela crítica às iniciativas dos outros grupos parlamentares. Nalguns casos criticou-as por falta de originalidade; no nosso caso criticou-nos por sermos originais em excesso.

Relativamente à convenção internacional, Sr. Deputado, o Governo do Partido Socialista é que está em falta nesta matéria.

Esta convenção internacional foi assinada, em 2003, nas Nações Unidas, pelo Estado português, sendo inconcebível que, até à data, o Governo não tenha apresentado uma proposta de resolução para que a Assembleia a aprove, para ratificação!

Sabemos que é esse o procedimento normal, mas o Governo não o fez. E, como não o fez, entendemos

que a Assembleia da República tem de chamar a si essa responsabilidade. E a nossa iniciativa teve, pelo menos, o mérito de fazer o Sr. Deputado anunciar que o Governo, em breve, o vai fazer. Folgamos muito com isso!

Quanto ao enriquecimento injustificado, queria deixar muito claro, Sr. Deputado Ricardo Rodrigues, que nós não copiámos nada que tenha sido apresentado pelo Sr. Deputado João Cravinho - nem este nem nenhum outro projecto de iniciativa legislativa que apresentamos. Aliás, o Sr. Deputado João Cravinho nada apresentou sobre esta matéria.

 

 

Falou-se nos jornais que o Sr. Deputado João Cravinho pretenderia apresentar uma iniciativa sobre enriquecimento ilícito, mas não o fez, portanto desconhecemos se chegou a redigir alguma coisa. Nunca tivemos acesso a esse texto, se ele alguma vez existiu!

 

Aquilo em que nos inspirámos, Sr. Deputado, foi numa norma que vigorava na ordem jurídica de Macau numa altura em que ainda estava sob responsabilidade e administração portuguesa e em que os princípios constitucionais portugueses se lhe aplicavam plenamente. Aliás, quem defende essa disposição, quem considera que o crime de enriquecimento ilícito não constitui uma inversão do ónus da prova nem põe em causa a presunção de inocência - isso consta de um estudo recentemente publicado - é o Dr. Júlio Pereira, que é, aliás, o Secretário-Geral dos Serviços de Informações da República Portuguesa. Portanto, o Sr. Deputado achará, com certeza, que, nesta matéria, não estamos mal acompanhados.

O Sr. Deputado Ricardo Rodrigues - e estou a terminar, Sr. Presidente -, apesar das iniciativas legislativas irem baixar à comissão sem votação - nós próprios, e sob proposta sua, acabámos de subscrever um requerimento conjunto para que todas as iniciativas legislativas possam baixar à comissão sem votação - já foi dizer da tribuna como é que vai votar as iniciativas legislativas dos outros grupos parlamentares! E já que o Sr. Deputado anunciou o seu sentido de voto relativamente a algumas iniciativas pergunto-lhe se não quer também anunciar qual vai ser o sentido de voto do Partido Socialista relativamente a algumas propostas que são subscritas por Deputados do próprio Partido Socialista.

Não nos quererá elucidar sobre essa matéria? Seria muito útil para este debate.

(...)

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Começo por saudar este agendamento. Em 7 de Julho de 2006 realizou-se aqui um debate de urgência sobre este mesmo tema, por iniciativa do PCP, depois de ter sido conhecido o 2.º relatório do Grupo de Estados contra a Corrupção do Conselho da Europa que formulou um juízo muito severo e negativo sobre a situação da corrupção em Portugal e sobre a insuficiência e ineficiência das medidas adoptadas entre nós para prevenir e combater este fenómeno.

A nossa preocupação com este problema não é de hoje, nem de 2006. Já em 1994, suscitámos um debate de urgência neste plenário sobre a situação da corrupção em Portugal e o que é preocupante é que o diagnóstico que então fizemos, poderia hoje ser repetido e manteria toda a actualidade.

Não quero com isto dizer que, de 1994 até hoje, nada se avançou. Não seria justo dizê-lo. Em matéria legislativa registaram-se alguns progressos. É inquestionável que os mecanismos legais de combate à criminalidade têm vindo a ser aperfeiçoados. Não estamos perante um vazio legal em matéria de combate à corrupção.

Não é por falta de lei que os crimes de corrupção ficam por punir. O problema será mais de prevenção, de coordenação, de suficiência de meios. O que importa fundamentalmente é precisar o diagnóstico, verificar os problemas, detectar os estrangulamentos, as disfunções, as insuficiências dos mecanismos legais e práticos de combate à corrupção. Mas feito o diagnóstico, é necessário agir e passar dos problemas para as soluções.

Só com um combate eficaz à corrupção e às suas expressões concretas será possível ultrapassar um clima, que nada tem de saudável, em que à sombra da impunidade de alguns a suspeição recai sobre todos.

O Relatório GRECO avança já com boa parte do diagnóstico, e também refere que o problema não está fundamentalmente na lei mas nas dificuldades práticas da sua aplicação. Esse Relatório refere que desde 2002, as autoridades policiais desencadearam 1521 investigações de casos de corrupção, tendo completado 407. No entanto, o número de apreensões e de somas envolvidas foi mínimo. Em 2005 não se verificou um único caso de confisco de bens ilicitamente obtidos pela prática de crimes de natureza económica ou financeira.

Procurando encontrar explicações para este facto, os relatores concluíram que as investigações sobre esse tipo de crimes foram muitas vezes abandonadas por falta de recursos ou atrasadas devido a falta de comunicação adequada entre entidades públicas e privadas. Apesar dos poderes estabelecidos na lei quanto ao acesso a elementos de natureza bancária e fiscal, estes chegaram muitas vezes demasiado tarde. Por outro lado, a investigação sobre os bens suspeitos de terem sido ilicitamente obtidos, não foi feita de forma sistemática por falta de recursos e por não ser considerada uma prioridade.

Apesar de existir legislação que obriga a participar às autoridades judiciárias as operações financeiras suspeitas, apenas dois casos suspeitos de corrupção foram comunicados em 2005, o que segundo os relatores, revela a falta de uma relação estruturada entre as instituições que estão obrigadas a comunicar transacções suspeitas e o Ministério Público, a polícia, as autoridades de supervisão financeira e outras entidades reguladoras. Para além de que, as entidades sujeitas à obrigação de comunicar operações suspeitas não recebem qualquer indicação ou preparação específica que as ajude a estabelecer conexões entre as operações de que tomam conhecimento e a possível ocorrência de actos de corrupção.

No âmbito da Administração Pública, o relatório refere a ausência de coordenação entre diversas entidades que poderiam e deveriam ter um papel determinante na prevenção do fenómeno da corrupção. Chama a atenção para os perigos de algumas medidas ditas de modernização e de simplificação administrativa e para os riscos de corrupção que tais medidas podem propiciar. Refere a insuficiência da fiscalização de conflitos de interesses entre o exercício de cargos públicos e a prossecução de interesses privados e considera insatisfatória a regulação daquilo a que chama a "migração" do sector público para o sector privado. Considera ainda que aqueles que de boa-fé denunciem actos de corrupção não têm garantida a protecção legal adequada contra possíveis actos de retaliação.

O desafio com que estamos hoje confrontados como legisladores é o de contribuir para resolver melhor estes problemas, criando novos mecanismos legais e aperfeiçoando os já existentes com vista à obtenção de mais e melhores resultados. Por isso saudamos este debate. Estamos perante 14 iniciativas parlamentares que visam melhorar os mecanismos de combate à corrupção. São iniciativas de natureza diversa, de âmbitos diferentes e de valia seguramente distinta. Mas, em todo o caso, todas elas constituem matéria para debate e para decisão, que deve ser devidamente considerada e ponderada.

O Grupo Parlamentar do PCP participa neste debate com três iniciativas concretas que passo a referir sinteticamente.

Um projecto de resolução que propõe que o Estado Português ratifique sem mais demora a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, conhecida pela Convenção de Mérida. Esta Convenção foi negociada entre 21 de Janeiro de 2002 e 1 de Outubro de 2003 e veio a ser adoptada por Resolução da Nações Unidas de 31 de Outubro de 2003 e aberta à assinatura em Dezembro do mesmo ano.

Constituem finalidades desta Convenção da ONU, "promover e fortalecer as medidas para prevenir e combater mais eficaz e eficientemente a corrupção; promover, facilitar e apoiar a cooperação internacional e a assistência técnica na prevenção e na luta contra a corrupção, incluindo a recuperação dos activos; promover a integridade, a obrigação de prestar contas e respectiva gestão nas matérias e bens públicos".

Em 14 de Dezembro de 2005 esta Convenção entrou em vigor após o depósito do trigésimo instrumento de ratificação.

Não faz nenhum sentido que o Estado Português ainda não tenha Ratificado esta Convenção e nesse sentido, dado que o Governo ainda não apresentou nenhuma proposta de resolução com esse objectivo, o PCP tomou a iniciativa de apresentar um projecto de resolução propondo a aprovação para ratificação dessa Convenção internacional.

O PCP apresenta um projecto de lei que propõe a adopção de um Programa Nacional de Prevenção e Combate à Criminalidade Económica e Financeira, a levar a cabo através de uma Comissão Nacional criada para esse efeito.

O PCP não propõe a criação de uma estrutura burocrática, que seria mais uma, nem de uma comissão emanada do poder político e submetida à vontade de maiorias conjunturais, nem de uma agência de emprego de clientelas políticas. Não se pretende com esta Comissão criar uma superestrutura que se substitua às entidades que têm competências e responsabilidades próprias no combate à corrupção e à criminalidade económica e financeira. O que se propõe é tão só, e não é pouco, promover a coordenação de esforços entre essas entidades no respeito pelas competências próprias de cada uma.

Finalmente, o PCP apresenta um projecto de lei que propõe três coisas:

Primeira: A tipificação de um crime de enriquecimento injustificado. Trata-se de aditar ao Código Penal um tipo de crime mediante o qual os cidadãos que exercem funções públicas e que disponham de rendimentos e património manifestamente incompatíveis com os que constem das respectivas declarações, devem demonstrar a sua origem lícita. Um cidadão que está ao serviço do Estado, pelo cargo que exerce ou pelas funções que desempenha, que apresenta uma declaração de rendimentos e de património e que apresenta uma declaração para efeitos de IRS, mas relativamente a quem se verifica que dispõe de bens e rendimentos manifestamente superiores aos declarados, incorre no crime de enriquecimento injustificado. Mas obviamente que a ilicitude estará excluída se for demonstrado que os bens foram obtidos de forma lícita.

Não ignoramos as objecções que têm sido opostas à consagração deste tipo de crime, baseadas na presunção de inocência. Mas também não ignoramos a refutação dessas objecções em ordens jurídicas que a consagraram. O elemento constitutivo do crime é a posse de riqueza injustificada. Até que a existência dessa riqueza seja provada em tribunal, o arguido presume-se inocente. A demonstração da sua origem lícita exclui a ilicitude. Tomemos como exemplo a posse de arma proibida. Também aí a ilicitude está na posse, independentemente da forma como a arma foi obtida e do uso que o agente pretenda fazer dela. A posse de bens e rendimentos manifestamente superiores aos declarados por parte de quem exerça funções públicas deve ser, só por si, punido por lei, com a ressalva de que a prova de que tais bens ou rendimentos foram licitamente obtidos constitui causa de exclusão da ilicitude.

Segunda: A aplicação aos crimes de corrupção de todas as possibilidades de protecção de testemunhas já previstas na lei para outras formas graves de criminalidade. O objectivo é evidente. Trata-se de impedir que quem de boa-fé denuncie actos de corrupção seja justamente defendido de eventuais actos de retaliação.

Terceira: A previsão da possibilidade de apreensão e perda para o Estado dos bens adquiridos por via da prática de crimes de corrupção.

Estas são as nossas propostas, mas não deixamos obviamente de ponderar todas as outras. Seguramente que concordamos com algumas, seguramente que, com outras, nem tanto.

Este debate surge, em termos mediáticos, muito associado a propostas, umas publicitadas e outras apresentadas, pelo então Deputado João Cravinho, e às contradições no interior do Partido Socialista em torno dessas propostas. Quero deixar aqui muito claro que o Engenheiro João Cravinho e as suas propostas nos merecem toda a consideração, e as que foram efectivamente apresentadas, estão aqui para nossa apreciação. Concordamos com umas discordamos de outras. Mas nunca nos passou pela cabeça fazer uma OPA sobre as propostas do engenheiro João Cravinho para explorar as contradições do Partido Socialista. O PCP apresenta as suas próprias propostas e apenas essas. Apresenta as propostas que considera justas e adequadas para resolver os problemas do país e não para arremessar à cabeça do PS ou de qualquer outro Partido.

De todo o acervo de propostas que temos para discussão, achamos aceitável a ideia do alargamento dos prazos de prescrição dos crimes de corrupção, mas achamos que deve ser bem discutida a alteração dos tipos de crimes de corrupção passiva já previstos no Código Penal, transformando a actual distinção entre corrupção para a prática de acto ilícito ou de acto ilícito, por corrupção para a prática de acto determinado ou em razão das funções. Não excluímos a ideia, mas não achamos que a actual formulação do Código Penal que, aliás, foi aprovada em 2001, constitui algum obstáculo à punição dos crimes de corrupção.

Há muitas outras propostas que terão a nossa concordância. Tudo o que contribua para aumentar a transparência no exercício de funções públicas, para reduzir os espaços de impunidade no abuso dessas funções em proveito próprio, ou para dotar de mais e melhores meios, materiais e legais, quem tem por missão lutar contra a corrupção e a criminalidade em geral, merece o nosso apoio, venha de onde vier.

Há, no entanto, algumas prevenções que importa fazer. Há, desde logo que evitar a criação de estruturas burocráticas à sombra do combate à corrupção ou a criação de estruturas concorrenciais com entidades já existentes que, apesar das suas boas intenções, pudessem vir a criar novos factores de atrito, de confusão e de guerras de competências. Há estruturas, agências e comissões que são propostas (nós próprios propomos uma). Temos de cuidar muito bem da coerência do sistema que instituímos para que ele seja parte da solução e não venha a ser mais uma parte do problema.

O mesmo se diga quanto aos relatórios, aos planos e às orientações estratégicas. Se excluir nada à partida, basta somar os relatórios, os planos e as orientações que são propostos para verificar que, se tudo fosse aprovado no final, estaríamos a criar uma burocracia do combate à corrupção que passaria a vida a redigir orientações, a elaborar planos para cumprir as orientações e a escrever relatórios sobre a execução dos planos. Nós não temos nada contra os planos nem contra os relatórios, mas é óbvio que há que ter em conta a justa medida para que esses instrumentos possam ter alguma eficácia.  

Em todo o caso, este trabalho vale a pena. O combate à corrupção é um combate de cidadania que merece a pena ser travado. Em nome da democracia e de uma sociedade mais decente.

Pela nossa parte, estamos firmemente empenhados em dar o nosso melhor contributo para que o trabalho que agora se inicia possa produzir bons resultados.

Disse.

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