Sobre a concentração da propriedade na comunicação social

 

Lei do pluralismo e da não concentração nos meios de comunicação social

Intervenção de Bruno Dias na AR

 

Sr. Presidente,

Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares,

Vou colocar-lhe duas questões muito concretas.

Nos termos desta proposta de lei (proposta de lei n.º 215/X), uma empresa pode ter uma posição, ou um poder de influência, absolutamente dominante no sector, desde que depois demonstre à Entidade Reguladora para a Comunicação Social que «(...) estão salvaguardados o pluralismo e a independência dos respectivos órgãos de comunicação social» (está no artigo 21.º).

Não lhe parece então que o Governo, com esta proposta, não está a enfrentar, mas apenas a regular a concentração neste sector? Não lhe parece que a tarefa do Estado é justamente impedir estas situações?

Esta proposta que nos traz é, na prática, um «manual de instruções», uma espécie de regime jurídico da concentração nos media!

Aliás, na semana passada, o Sr. Ministro afirmou, na comissão parlamentar (e cito) que «não há relação causal entre concentração e pluralismo» e que «não deve haver limites administrativos à presença da actividade empresarial e sua expansão na comunicação social». Pergunto-lhe se mantém estas afirmações.

Segunda questão: o Governo quer que nenhuma entidade pública tenha actividades de comunicação social. Na comissão explicou-nos que o objectivo é defender a independência e o pluralismo, mas não explicou - e, por isso, volto a perguntar-lhe -, concretamente, em matéria de liberdade, pluralismo e independência face ao poder político e económico, quais as garantias que encontra num órgão de comunicação social, apenas pelo facto de o dono ser um grupo económico privado, em vez de ser uma entidade pública.

Finalmente, como explica o Sr. Ministro essa proibição geral de órgãos de comunicação social de entidades públicas, à luz do artigo 38.º, n.os 1 e 2, da Constituição, que garante a liberdade de imprensa?

(...)

Sr. Presidente,

Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares,

Sr.as e Srs. Deputados:

O que está em causa neste debate é muito mais do que uma questão de mercados e de concorrência. Estão em causa questões essencialmente políticas e ideológicas, tendo em conta o lugar central que os media ocupam na nossa sociedade.

E há aqui dois pontos essenciais a considerar.

Por um lado, a importância dos media para a luta política e ideológica, uma luta que passa, inevitavelmente, pelos media e pelas possibilidades e controlo social por eles proporcionada. Mas, por outro lado, também a questão dos reflexos laborais da concentração da propriedade, com os efeitos que a lógica capitalista dos grandes grupos tem na actividade jornalística, na sua dignidade profissional, nos seus princípios deontológicos e na sua estabilidade de emprego.

Ao primeiro destes pontos, a proposta do Governo refere-se no seu preâmbulo, ainda que de forma breve - e hipócrita, visto que todo o articulado contraria estes princípios.

Ao segundo ponto, nem sequer há referência, muito menos uma proposta concreta.

Em abono da verdade, registe-se que também o projecto de lei do BE acaba por não avançar nesta matéria, em termos de articulado. No entanto, e sem prejuízo dessa e de outras questões concretas que devem ser tratadas na especialidade, esse projecto de lei é uma base de trabalho que merece ser considerada, apontando soluções que visam impedir a concentração nos media, ao contrário da proposta (e de toda a política, de resto) do Governo.

O Governo até disse, pela voz do Ministro Santos Silva, que o papel do Estado não é impedir a concentração da propriedade na comunicação social. Perante isto, o que se impõe é, muito simplesmente, recomendar ao Governo que leia a Constituição da República!

É que a Constituição estabelece, no n.º 4 do artigo 38.º, que «o Estado assegura a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social (...) impedindo a sua concentração». Não se trata aqui de enquadrar, acompanhar ou controlar a concentração, trata-se de impedir!

E não é isso que faz esta proposta do Governo - bem pelo contrário!

Esta proposta do Governo visa legitimar essa concentração, consagrar o oligopólio e permitir, expressamente, que dois ou três grupos económicos dominem o sector, sem que nenhuma consequência daí resulte. O que isto significa é que, ao quadro actual de «inconstitucionalidade por omissão» que o Governo tanto refere (por não haver uma lei que impeça a concentração), o Governo responde legalizando-a!

No tocante aos «poderes de influência», a proposta do Governo permite que uma só empresa de

comunicação social detenha metade da circulação ou audiências, mas, se ultrapassar esse «limite», basta que se demonstre que estão salvaguardados o pluralismo e a independência e o processo é arquivado!

Com esta proposta, o Governo estabelece como obrigatória a propriedade privada nos media, impedindo toda e qualquer entidade pública de ter actividades de comunicação social, e fá-lo sem qualquer fundamentação, sem um único argumento, para além do preconceito ideológico.

Ora, o Governo, mais uma vez, não respondeu à pergunta do PCP sobre esta matéria.

E a questão aqui não é a de saber se o Estado ou alguma entidade pública deve ou não deve, em dado momento, ter actividades de comunicação social; a questão é se pode ou não pode. E a resposta do Governo é: proíba-se!

Está aqui uma certa concepção de democracia, em que o pluralismo, o direito constitucional dos cidadãos a informarem-se, a informar e a serem informados, o direito de as pessoas exprimirem as suas opiniões e a liberdade de expressão no espaço público são, afinal, um privilégio dos ricos, principalmente dos muito ricos.

É, no fundo, uma questão de classe, em que o Governo PS assume uma opção muito clara.

E não tenhamos medo das palavras. Relativamente ao Jornal da Madeira, sabem V. Ex.as muito bem que o PCP, desde há muito, enfrenta os desmandos de manipulação e silenciamento que ali acontecem. Mas a solução não é a proibição geral de as entidades públicas terem jornais, como, de resto, o combate ao «jardinismo» não se faz acabando com a autonomia regional.

Primeiro, porque isso significa que, para o Governo PS, o Jornal da Madeira poderia fazer tudo o que tem feito, desde que não fosse público, porque aí já não havia qualquer problema; depois, porque o Governo, com isto, está, afinal, a dizer que, em matéria de independência perante o poder político e económico, só o capital privado é de confiança. Se não fosse tão grave, Sr. Ministro, seria a piada do ano.

Perante uma proposta destas, não é para admirar que o Sr. Ministro, instado na comissão por um Deputado do PS a dar exemplos de outros países com leis de não concentração, se tenha lembrado - vejam bem! - da experiência da Itália do Sr. Berlusconi!...

Pouco faltou para dizer que «o segredo está na massa»!

Esta proposta de lei do Governo não tem uma palavra sobre imprensa regional, sobre imprensa temática ou especializada, sobre canais temáticos de televisão ou rádio, sobre portais de informação na Internet e sobre o domínio do mercado publicitário; nada tem de concreto sobre os mecanismos de medição e apuramento de audiências; e não tem sequer uma palavra sobre as famosas «sinergias» no plano laboral, que mais não são do que um ataque aos direitos e a exploração levados ao extremo.

Esta proposta de lei do Governo, engalanada como factor de pluralismo, de independência e de não concentração da comunicação social, acaba por ser não mais que um «seguro de vida» para os grupos económicos que já hoje dominam o sector.

O problema está no preço que o País e a democracia têm de pagar por isso. E também aqui está a fronteira entre políticas de direita e de esquerda.

 

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