Intervenção de João Oliveira na Assembleia de República

Só com outra política se combate a criminalidade económica e financeira

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Senhora Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,

A noção de que existe em Portugal uma Justiça para ricos e outra para pobres não resulta exclusivamente da circunstância de uns poderem suportar os custos com o acesso aos tribunais e outros não. Esse cunho de classe manifesta-se em muitas outras dimensões da Justiça, nomeadamente no plano criminal quando se torna cada vez mais flagrante a dificuldade em investigar, julgar e punir os crimes cometidos pelos ricos e poderosos.

Como a vida tem demonstrado, é possível investigar e julgar o furto de uma embalagem de polvo e de um champô num supermercado, tanto mais fácil e rapidamente quanto a omnipresente videovigilância facilitar e simplificar a prova do crime. Mas se se trata de perseguir e punir o tráfico de influências, a corrupção ou o branqueamento de capitais não há videovigilância que valha e se porventura forem utilizados na prática do crime uma conta bancária sedeada num paraíso fiscal ou os privilégios de um qualquer off-shore não cooperante, então, a perseguição do crime será apenas uma miragem.

Ciclicamente somos confrontados com esta realidade e ciclicamente ouvimos as mesmas afirmações fingidas de preocupação com a eficácia da investigação criminal que se repetem como as subidas de Sísifo ao topo da montanha, rolando a pedra que sempre acabava por voltar a cair.

A apresentação, na passada semana, do relatório de execução da lei de prioridades da política criminal pelo Procurador-Geral da República permitiu mais um desses momentos de encenação da farsa política já há muito conhecida.

Perante uma lei de prioridades da política criminal que, para não ser inconstitucional, se limita a ser absurda e inútil, o relatório da Procuradoria-Geral confirma o inevitável: foi impossível dar cumprimento às prioridades legalmente estabelecidas para o biénio 2009-2011.

O relatório da Procuradoria-Geral faz uma avaliação relativamente extensa e aprofundada dos motivos que conduziram a tal situação e nenhum deles pode ser considerado inesperado.

As prioridades estabelecidas na lei não foram cumpridas porque a realidade da vida impôs que elas fossem outras, porque quando quase tudo é prioritário nada é verdadeira prioridade, porque o Ministério Público não dispõe dos meios técnicos ou tecnológicos necessários, porque está dependente de outros ou ainda porque as leis penais continuam a ser insuficientes ou desadequadas em múltiplos aspetos.

Neste relatório são particularmente preocupantes as considerações feitas acerca da criminalidade económica e financeira e da corrupção, particularmente se cruzarmos estes elementos com os que resultam dos relatórios anuais da Procuradoria-Geral da República relativos aos serviços do Ministério Público.

Quando confrontamos os recursos de que dispõe o Departamento Central de Investigação e Ação Penal com as dificuldades encontradas pelo Ministério Público no combate à corrupção e à criminalidade económica e financeira torna-se facilmente percetível que é impossível fazer do combate à corrupção uma prioridade garantindo a eficácia da investigação criminal.

É possível garantir o combate a este tipo de criminalidade sem dispor de peritos e técnicos adequados, sem dispor de veículos que permitam a deslocação dos magistrados às diligências, trabalhando em instalações degradadas sem os instrumentos informáticos necessários e sem poder recorrer devidamente aos serviços do Estado para realizar eficazmente a investigação?

Obviamente que não.

Apesar de óbvias as conclusões do relatório da Procuradoria-Geral não podem surpreender ninguém que tenha a mínima noção das condições em que funciona o sistema de Justiça e a investigação criminal, muito menos aqueles que estando ou tendo estado no Governo são diretamente responsáveis pela situação existente.

Mesmo assim lá acabámos por ouvir as tais afirmações de responsáveis políticos que, fingindo preocupação com a eficácia da investigação criminal, continuam a sugerir como soluções as mesmas receitas que nos trouxeram os problemas.

Senhora Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,

É certo que as dificuldades no combate ao crime resultam de inúmeras circunstâncias que vão da falta de legislação à rapidez com que os crimes se tornam cada vez mais sofisticados e complexos, da falta de meios da investigação criminal à cobertura que a própria lei muitas vezes garante às condutas criminosas, não menosprezando alguma falta de preparação das magistraturas e das polícias para lidar com estes fenómenos criminais.

Mas, senhoras e senhores Deputados, sejamos claros. O problema central da política criminal não é o combate à pequena criminalidade porque para esse combate os meios serão sempre mais ajustados. O problema central da política criminal é o combate à criminalidade grave e complexa, nomeadamente económica e financeira e a corrupção, e esse, antes de ser um problema dos tribunais e da Justiça, é um problema político.

É por vontade política que as leis se fazem ou deixam de se fazer, é por vontade política que as leis permitem combater o crime ou lhe dão cobertura, é por vontade política que se disponibilizam os meios para punir os criminosos ou se garante a sua impunidade.

Não temos a ilusão de que as opções políticas que têm imposto entraves ao combate à criminalidade económica e financeira possam ser alteradas em função de um qualquer rebate de consciência. Elas são opções de classe de quem serve os interesses económicos e financeiros e se preocupa apenas no discurso com a eficácia da investigação criminal.

Não deixaremos, no entanto, de cumprir a nossa obrigação de denunciar as consequências dessas opções e de travar a luta para a sua alteração, mobilizando todos aqueles que nela sejam parte interessada.

Disse.

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