Intervenção de

Sistemas de vigilância electrónica rodoviária - Intervenção de Jorge Machado na AR

Instalação
e utilização de sistemas de vigilância electrónica rodoviária e a
criação e utilização de sistemas de informação de acidentes e
incidentes pela EP - Estradas de Portugal, EPE, e pelas concessionárias
rodoviárias

 

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:  Com
a proposta de lei n.º 59/X o Governo pretende obter a legitimação legal
devida para a instalação de sistemas de vigilância electrónica,
rodoviária e tratamento da respectiva informação por parte da empresa
Estradas de Portugal e de empresasconcessionárias de auto-estradas. Importa dizer, em primeiro lugar, que este problema da videovigilância, e  designadamente
da sua utilização rodoviária, seja para efeitos de prevenção de
acidentes seja para outros efeitos, como o da aplicação de sanções aos
utentes que não pagam as portagens devidas, tem vindo a dar lugar a um
já longo folhetimcom vários capítulos e com fio condutor que começa a ser difícil de descortinar. Como
bem refere o relatório elaborado pelo Sr. Deputado Nuno Magalhães para
a 1.ª Comissão, já vamos a caminho do sexto diploma a regular esta
matéria da vigilância electrónica nas auto-estradas concessionadas.  Em
nome da coerência, da clareza e da segurança da ordem jurídica, melhor
faria o Governo se elaborasse uma proposta de regulamentação desta
matéria num único diploma uniformizador ou que, pelo menos,
manifestasse a sua disponibilidade, o que equivale dizer a
disponibilidade da maioria que o apoia, para que fosse a Assembleia da
República a fazê-lo, aproveitando este processo legislativo. Pela
nossa parte, damos por assente que esta matéria carece ser regulada,
desde logo porque está em causa um valor muito importante, que é o da
segurança rodoviária, a prevenção de acidentes e o procedimento contra
infractores que ponham em causa a segurança da circulação rodoviária,
embora se deva ter em conta que esses sistemas visam também interesses
exclusivos, embora legítimos, das concessionárias relativamente à cobrança de portagens e aplicação de sanções a quem cometa infracção neste domínio. Essa
regulação, no entanto, deve ser muito cautelosa, porque no outro prato
da balança estão direitos fundamentais dos cidadãos relativos à sua
imagem e privacidade que não podem pura e simplesmente ser
sacrificados, permitindo-se a uma empresa concessionária da
auto-estrada obter dados pessoais dos automobilistas, ficar com eles na
sua posse, proceder ao seu tratamento e dar-lhes a utilização que bem
entender. Acontece,
porém, que, como refere o relatório da 1.ª Comissão, valendo-se, aliás,
da valiosa reflexão que a Comissão Nacional de Protecção de Dados tem
vindo a reproduzir sobre esta matéria, a proposta de lei não regula de
uma forma equilibrada os direitos e os valores em presença. Nesta
proposta de lei há uma desproporção flagrante entre o que é permitido
às concessionárias em matéria de recolha, tratamento e utilização dos
dados pessoais e a falta de garantias dadas aos titulares desses dados
contra eventual utilização abusiva. E
o pior é que não estamos a falar de um perigo potencialmente criado
pela legislação que o Governo propõe que se aprove mas, sim, de um
perigo actual, dado que os sistemas de vigilância rodoviária de que
estamos a falar já existem, funcionam e são utilizados pelas empresas
concessionárias mesmo que não exista a regulação legal indispensável
para isso. Ou seja, esta proposta de lei tem o sentido de proceder a uma
espécie de «regularização extraordinária» da situação ilegal em que se
encontram as concessionárias quanto à recolha e tratamento de dados
pessoais dos cidadãos. Esta
situação de impunidade perante as ilegalidades cometidas poderia ser
parcialmente colmatada se agora se aprovasse uma legislação
equilibrada, só que não é este o caso. A proposta do Governo está muito
longe de ser equilibrada.Como
se sabe, desde há muito, os sistemas de vigilância electrónica
rodoviária já instalados pelas empresas concessionárias de
auto-estradas estão em situação ilegal por falta de autorização da
Comissão Nacional de Protecção de Dados, legalmente obrigatória. Esta
ilegalidade é particularmente grave porque viola e deixa sem protecção
direitos fundamentais dos cidadãos. O
que o Governo agora propõe é que estas empresas mantenham estes
sistemas ou que os instalem, caso ainda não os tenham, sem dependência
de qualquer autorização, mas apenas tendo de notificar a Comissão
Nacional de Protecção de Dados. E, assim, tudo fica como antes: o
funcionamento dos sistemasà margem da lei, sem qualquer autorização, vão passar a funcionar nos termos da lei sem ter necessidade de a obter. Mas
há outros aspectos que merecem sérios reparos. A proposta de lei é
muito precisa quanto ao que as concessionárias podem fazer com os dados
pessoais dos utentes, mas é muito imprecisa quanto àquilo que não podem
fazer. As
empresas podem tratar uma variedade enorme de dados pessoais, tais como
imagens, dados de localização, velocidade, datas e horas de registos,
tipos e descrições de ocorrências, dados de identificação e contacto
das pessoas, dados de identificação dos veículos, locais, datas e horas
de acidentes ou incidentese
ainda outros elementos não especificados desde que relevem para as
finalidades previstas na lei. E, na posse destes dados, as empresas
podem tratá-los como bem entenderem, podem subcontratar o seu
tratamento a terceiros, proceder à sua interconexão, conservá-los por
cinco anos e até cedê-los a operadores de televisão e de
telecomunicações. Quais
são as limitações impostas em nome dos direitos dos visados? A
transmissão e divulgação dos dados não podem afectar, de forma directa
e imediata, o direito à imagem e à intimidade da vida privada das
pessoas, o que, lido a contrario, significa que estes dados
podem ser transmitidos e divulgados ainda que afectem, de forma
indirecta ou mediata, o direito à imagem e à intimidade da vida privada
das pessoas. A
latitude e precisão dos direitos das concessionárias para
potencialmente violar direitos dos cidadãos contrasta assim, de forma
flagrante, com o carácter vago e indeterminado da tutela destes
direitos. Mais: a empresa dispõe de dados sobre os seus utentes e faz
deles o que bem entender, mas se for o próprio utentea
precisar desses dados, nomeadamente para responsabilizar as
concessionárias por incidentes que possam ser da sua responsabilidade,
aí já é tudo mais complicado, limitado e com restrições, como se pode
ver pelo artigo 19.º da proposta de lei. Mais ainda:
a empresa concessionária pode manter os dados na sua posse por cinco
anos quando, em geral, a lei só permite a conservação de dados por 30
dias, estando em causa a protecção de pessoas e bens. Não se entende,
assim, esta opção, uma vez que estamos a falar de dados sensíveis
relativamente à vida dos cidadãos. Pela
nossa parte, acompanhamos no essencial as preocupações manifestadas no
relatório da 1.ª Comissão e no parecer emitido pela Comissão Nacional
de Protecção de Dados, e respectivas declarações de voto, quanto ao
carácter desproporcionado e desnecessário da autorização que a proposta
de lei se propõe conferir para a captação e gravação de imagens com
identificação dos utentes das estradas e autoestradas. Acompanhamos
a estranheza pelo facto de a proposta de lei permitir a conservação de
dados pessoais por um período que pode ir para além de cinco anos
quando, mesmo nos casos em que está em causa a protecção de pessoas e
bens, a lei permite apenas a conservação por um período até 30 dias. Acompanhamos
a estranheza quanto à latitude com que se permite a recolha de dados
pessoais para fins de monitorização e controlo de tráfego, mesmo que
não esteja em causa a ocorrência de qualquer acidente ou incidente. E,
finalmente, acompanhamos a perplexidade quanto à autorização para serem
facultados aosoperadores
de televisão e telecomunicações as imagens de monitorização do tráfego
sem que haja o mínimo cuidado na preservação do direito à imagem e à
intimidade da vida privada dos visados. Em
síntese, também nesta matéria o Governo pretende seguir a inquietante
moda, muito em voga, segundo a qual a proclamação de direitos dos
cidadãos é muito importante em teoria, mas, na prática, eles cedem
perante valores mais altos que se levantam. E o grande problema é que
entre os valores mais altos que se levantam há, de certo, alguns que
merecem uma forte protecção — a prevenção da segurança é, com certeza,
um deles. Só que, no pretexto destes valores, acabam por ser protegidos
muitos outros menos legítimos, sacrificando direitos fundamentais que,
passo a passo, começam a ser pouco mais que «letra morta».  

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