Intervenção de Agostinho Lopes na Assembleia de República

Sessão Solene Comemorativa do XXXVIII Aniversário do 25 de Abril

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Sr. Presidente da República,
Sr.ª Presidente da Assembleia da República,
Sr. Primeiro-Ministro,
Srs. Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional,
Sr.as e Srs. Convidados,
Sr.as e Srs. Deputados:
Uma crise profunda brutaliza a pátria portuguesa, uma crise encaixada, embebida na crise do capitalismo, uma crise que revelou todas as fragilidades, todos os défices estruturais, todos os estrangulamentos do País. Um processo cumulativo, que agora implodiu e explodiu, detonado pela crise do capitalismo.
Bateu-nos à porta e não pediu licença para entrar. Estava cá dentro, em gestação. Não aconteceu por acaso. É o resultado de opções políticas. Tem responsáveis: o PS, o PSD e o CDS.
E eis que, ontem, esses partidos, PS, PSD e CDS, pretensamente para responder ao desastre nacional a que conduziram o País, subscreveram um «pacto de agressão e de traição» a Portugal e aos portugueses.
Um pacto que, pela sua natureza e conteúdo, é um ajuste de contas com Abril, que hoje comemoramos!
Um pacto que agride núcleos da soberania e independência nacionais, aceitando imposições externas sobre a organização dos tribunais, um órgão de soberania, impondo um novo riscar do mapa de freguesia e concelhos.
Um pacto que agora, com o dito tratado orçamental, pretende impor o visto prévio de potências e poderes estrangeiros à soberana gestão das contas do Estado português, impor a jurisdição de tribunais externos sobre o Tribunal Constitucional, sobre a Constituição da República.
Sabemos como alguns justificam a submissão ao pacto. Seria a recuperação da soberania económica pelo saneamento das contas do Estado.
É uma fraude política. As imposições económicas, as taxas de juro, os prazos e as condições da aplicação não asseguram qualquer sustentabilidade presente ou futura das contas públicas.
E é uma blasfêmia política. É como se o caminho para resistir a Castela em 1383/1385 passasse por fugir a Aljubarrota. Como se o caminho para afirmar a independência nacional em 1580 passasse pela aceitação do jugo filipino. Como se o caminho em 1808 fosse a fuga para o Brasil e a colaboração com os ocupantes, e não a resistência às invasões napoleónicas.
Percebemos o afã no apagamento simbólico da história pátria do 5 de Outubro, do l.º de Dezembro ou mesmo da marca da história no desenho das freguesias e concelhos.
As classes dominantes, grande parte das suas elites, sempre foram, com exceções, permeáveis à colaboração com o estrangeiro opressor e explorador, em defesa dos seus interesses de classe. Foram as forças do capital monopolista restaurado e as forças políticas que impulsionaram a sua restauração, que transformaram o Estado Português, no processo de integração comunitária, numa enorme junta de freguesia. As mesmas forças que agora aceitam a sua transformação num protetorado da Alemanha.
E tem sido sempre o pé-descalço, os condenados da terra, os trabalhadores e o povo, com outros patriotas de muitas condições sociais, a levantar a voz, a erguer a resistência, a dar o corpo à revolta. E foi assim que chegámos e fizemos Abril!
É um pacto de agressão aos trabalhadores e ao povo, que tem como outro vetor a guerra ao trabalho, ou seja, consolidar o modelo de mão-de-obra barata, precária e de baixo valor acrescentado, que trouxe o País até à crise. A contrarrevolução na legislação laboral е о crescimento da massa dos desempregados só têm um objetivo: baixar o preço da força de trabalho.
Este foi, e é, o caminho do desastre. E é uma enorme mentira política, que nem os cânones da economia capitalista consentem fazê-lo, em nome da produtividade e competitividade e do emprego. Nenhuma trabalhadora têxtil que leva para casa, ao fim de uma vida de trabalho de 35 anos na mesma empresa, o salário mínimo de 485 € vai ser agente de mais produtividade. Um colossal embuste, que os dados empíricos pós sucessivas reformas da legislação laboral não consentem como argumento para melhorar a produtividade e combater o desemprego.
É um pacto de agressão e de regressão social e civilizacional na restrição e encarecimento do acesso à saúde, ao ensino e aos apoios sociais, visando, de facto, a destruição do Serviço Nacional de Saúde, da escola pública, do sistema público de segurança social; um pacto que agravará as desigualdades sociais e as assimetrias regionais.
Um pacto de agressão e regressão na soberania económica do País, com a liquidação do que ainda restava de instrumentos do comando estratégico do Estado em sectores e empresas estratégicas de bens e serviços essenciais, pela dádiva das golden shares, pela conclusão da privatização — venda a pataco — do que restava das posições do Estado.
E tem um grande simbolismo que, em vésperas do 25 de Abril, um Governo que inscreveu no seu Programa a reindustrialização do País tenha dado luz verde ao processo de desmantelamento e deslocalização da que é hoje a principal empresa industrial em Portugal: a CIMPOR, aliás, uma construção de Abril!
Sr. Presidente da República,
Sr.ª Presidente da Assembleia da República,
Meus Senhores, Minhas Senhoras:
A crise do capitalismo obriga a classe dominante a redobrados esforços de manipulação para explicar e esconder as causas e os responsáveis pela catástrofe.
Depois da Europa connosco, da Adesão à CEE, do euro, os portugueses não precisavam de se preocupar com essa coisa da produção nacional. Não precisávamos, diziam, de nos preocuparmos com o endividamento externo e o financiamento do Estado. Abrigados sob a asa protetora da União Europeia, do euro, estávamos a salvo das crises monetárias e financeiras, União Europeia que ia regularmente despachando para Portugal os milhares de milhões de euros, como contrapartida à destruição do aparelho produtivo!
É assim que a imposição do pacto de agressão aparece como um absurdo, uma irracionalidade!
Justificações: «Todos somos responsáveis pela situação a que o País chegou»; «vivemos acima das nossas possibilidades». Ou seja, a extraordinária ideia de que todos somos culpados e de que todos comemos mais do que devíamos, os ricos e os pobres, os que enriqueceram e os que empobreceram e se endividaram, os desempregados e os que os despediram ou os que põem o seu dinheiro nos offshore ou na Holanda para fugir ao fisco, os grupos monopolistas, que centralizaram e concentraram capital e engordaram nos jogos bolsistas, na especulação financeira, na produção privatizada de bens não transacionáveis, e as pequenas empresas, que faliram ou sobreviveram com recurso ao crédito.
São teses que partilharam o espaço mediático com outras justificações e explicações da crise.
É a explicação da crise como catástrofe natural, um tsunami, naturalizando e neutralizando as suas causas, a explicação pelas idiossincrasias e natureza do povo português: o trabalhador português, preguiçoso e indisciplinado, precisa do aguilhão patronal e da fome — logo, facilidades para despedir, menos subsídio de desemprego; o cidadão tem o vício atávico e sadomasoquista de frequentar urgências hospitalares — logo, mais e maiores taxas moderadoras! A explicação da crise pelas gorduras do Estado.
A crise é uma oportunidade de ouro para os talhantes neoliberais de todos os matizes raparem as gorduras, com muita carne do lombo à mistura. Justificações e explicações que expulsam a política das causas da crise. Ou seja, a identificação e responsabilização dos responsáveis políticos, dos partidos e dos governantes pelo estado a que chegamos. Justificações e explicações que suportam e desenvolvem as teses da judicialização e criminalização da decisão política, de que os problemas do País decorrem da má qualidade dos políticos e das elites políticas, da incompetência dos gestores e decisores públicos, da desonestidade e da corrupção dos políticos.
Não há opções e escolhas políticas e ideológicas. Não há alternativas políticas e políticas alternativas! A política passou a ser uma tecnologia, uma moral, uma engenharia eleitoral. Não há política.
É assim que carregam a crise, a dívida externa, o défice orçamental, a ruína da agricultura e pescas, a falta de médicos, o desastre da justiça nas formas orgânicas e eleitorais do sistema político, no regime democrático de Abril.
E assim se esvaem as responsabilidades dos partidos políticos, do PS, do PSD e do CDS, que governaram e governam este País, e se absolvem as responsabilidades da integração capitalista europeia e do euro. É assim que se faz, de uma anónima classe política a culpada única dos nossos problemas, porque assim ninguém é responsável, mesmo os responsáveis!
É assim que se encena uma monstruosa fraude política, fazendo do número de freguesias e concelhos os bodes expiatórios dos desequilíbrios das contas públicas, do número de feriados a grande causa da falta de produtividade da economia nacional, do número de Deputados a origem do desastre nacional.
É assim que todos os problemas do País se resolvem facilmente pela criação dos círculos uninominais, pela redução do número de Deputados, pela extinção de freguesias, pelos executivos autárquicos monocolores, pela mudança dos sistemas eleitorais.
E é assim, pensam alguns, que se vai travar a mentira eleitoral e a duplicidade sistémica e sistemática de partidos e políticos deste e de anteriores governos. No Governo, o contrário do que se dizia na oposição. Na oposição, o contrário do que se fazia no Governo, o que é um cancro na democracia!
Esta ocultação dos partidos e das políticas responsáveis pelo desastre tem outra face e utilidade: a ocultação de quem afirmou no tempo certo, antes da adesão, que o euro não era compatível com a produtividade e a economia nacional, que o euro representava o financiamento do Estado nas mãos dos mercados financeiros; de quem denunciou as consequências da PAC e não descobriu agora o abandono da terra e a importância da produção agrícola; de quem denunciou o abate da nossa frota pesqueira e o fim da marinha mercante e não descobriu agora a importância do mar; de quem travou um persistente combate à privatização e desmantelamento de empresas estratégicas e à liquidação de importantes fileiras e unidades industriais e não descobriu agora que precisamos de industrializar o País; de quem sistematicamente alertou para a gravidade do vultuoso défice comercial e a insustentabilidade do endividamento externo — o Partido Comunista Português.
Sr. Presidente da República,
Sr.ª Presidente da Assembleia da República,
Meus Senhores, Minhas Senhoras:
A concluir, permitam que saúde a festa de Abril nesta Assembleia da República, que não poderá deixar de ser, como são hoje as ruas e praças de Portugal, uma casa de Abril.
Permitam que alguém que era alferes miliciano, com a emoção que ainda hoje sinto, lembre e saúde o meu quartel, a Escola Prática de Serviço de Material, a EPSM de Sacavém, os seus soldados, sargentos e capitães, com quem vivi dias memoráveis. E que, saudando os militares de Abril, o MFA, o glorioso Movimento das Forças Armadas, lembre, por todos, Vasco Gonçalves, que foi soldado, capitão e general deste povo.
Meus Senhores, já quase tudo foi dito sobre essa manhã clara e vibrante, quente e luminosa desse Abril, já tão longe e ainda tão perto da nossa razão, do nosso sonho, da nossa vida. Dessa manhã amada e armada dos sinos da nossa liberdade coletiva. Dessa alvorada, manhã depois da noite do fascismo. Desse parto e porto de alegria, depois da triste escuridão de opressiva ditadura.
Desse sonho, acordado e acendido, depois de milhares de dias de medos e tormentos, de dores e sangue, de separação e ausências, desses dias cheios de grades, que era «vestido para todas as idades».
Dessa manhã, foz do rio de lutas, de coragens desconhecidas, de mulheres e homens assumidos, de paciências insuspeitas e corrosivo desfilar de desespero, de impotência, do escoar dos dias na desesperança da vil tristeza em que vivia este povo. Rio tão cheio de sacrifícios, de batalhas perdidas e de pequenos passos na consciência das gentes, tão cheio dos operários, tão cheio dos jovens desta terra aberta ao mar e ao sul. Rio cheio do nosso povo.
Rio que desaguou fraterno, solidário, de grito aberto nas bocas, de lágrimas sentidas nos rostos, de corpos abraçados de alegria na manhã clara desse Abril, tão nosso e tão de todos, que ainda hoje sentimos o nó na garganta e uma funda turvação na memória. Desse Abril, Maio na rua, Maio da nossa força, bandeira proletária de luta, de trabalhadores, sem outra ambição que o generoso projeto de quebrar as grilhetas seculares da opressão e da exploração, dos homens por outros homens, dos povos por outros povos.
E, apesar de tudo, o que depois aconteceu? Foi assim que avançámos: Abril, que foi o louvor da política, optou. Decidiu o salário mínimo. Optou pelos direitos dos trabalhadores contra os interesses do capital. Optou pelos que não tinham escola nem saúde. Optou pelos sem terra contra os que a tinham em demasia. Optou pela paz contra os interesses dos que faziam a guerra. Optou pela liberdade de todos os povos como fundamento da nossa própria liberdade.
E, hoje, é o projeto de Abril, os valores de Abril que podem iluminar o caminho a Portugal e aos portugueses. Do passado para o futuro, a liberdade, a democracia, o desenvolvimento, a justiça social, a soberania e a independência nacional!
Um caminho de necessária rutura e alternativa.
Viva o 25 de Abril!
Viva Portugal!

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