Intervenção de Maurício Miguel, Representante do PCP no Secretariado Político do GUE/NGL, Sessão «A situação em Portugal e na Europa pós-eleições para o Parlamento Europeu. A luta em defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo e do País»

Sem a ruptura com o processo de integração capitalista na Europa, Portugal estará condenado ao retrocesso permanente

A Constituição da República Portuguesa - conquista fundamental da Revolução de 25 de Abril - estabelece que Portugal é uma República soberana, um estado de direito democrático, baseado na soberania popular; estabelece que a soberania nacional é una e indivisível e reside no povo, que visa a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.

Uma Constituição que tem uma inegável dimensão internacionalista nos princípios estabelecidos para as relações externas de Portugal, definindo que o nosso país se rege pelos princípios da independência nacional, dos direitos dos povos, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da humanidade.

Estes são princípios fundamentais que deveriam garantir ao povo português ser a razão das decisões sobre o seu presente e o seu futuro e o elemento determinante das mesmas.

Quem devia cumprir e fazer cumprir a Constituição tem pelo contrário promovido activamente a sua violação e subversão.

No governo e na oposição, na Assembleia da República e no Parlamento Europeu - sem esquecer o papel de sucessivos presidentes da República -, PS, PSD e CDS/PP assumiram-se desde sempre como inimigos da Constituição e dos princípios nela consagrados, socavando o carácter central que ela assume.

Chegaram ao ponto de reverem a própria Constituição para consagrar nela a sobreposição dos tratados da União Europeia à Lei Fundamental do país.

A integração de Portugal na União Europeia foi simultaneamente um impulso no processo contra-revolucionário e uma machadada nos interesses e aspirações dos trabalhadores e do povo português; foi o amarrar do país a um processo de destruição dos sectores produtivos, de serviços públicos e a sua privatização, bem como a privatização de empresas e sectores estratégicos que deveriam assegurar a soberania e o direito de Portugal a um modelo próprio de desenvolvimento.

A derrota do fascismo e as conquistas democráticas consagradas na Constituição foram elementos centrais da definição da soberania nacional que os partidos da política de direita sacrificaram ao aprofundamento do federalismo numa UE cada vez mais antidemocrática.

O federalismo na UE traduz-se no domínio de um directório de grandes potências consagrado nos diferentes tratados da União Europeia, nomeadamente no tratado de Lisboa.

A influência de Países como Portugal na tomada de decisão sobre questões fundamentais do seu interesse - incluindo o direito de veto - tem vindo a ser reduzida, perdendo o país poder nas decisões do Conselho e deputados no Parlamento Europeu.

De um total de 28 países, seis países apenas detêm 70% dos votos no Conselho. No Parlamento Europeu, seis países - Alemanha (96), França (74), Itália (73), Grã-Bretanha (73), Polónia (51) e Espanha (54) têm mais de metade dos lugares, quando Portugal tem apenas 21 deputados - e já teve 25.

Antevêem-se novas perdas face a novos alargamentos, tendo em conta o limite máximo de 751 deputados fixado pelo tratado de Lisboa, princípio que garante à Alemanha continuar a ser o país mais representado, impondo perdas sucessivas para países já sub-representados como Portugal.

A discussão que move na imprensa portuguesa arrebatadas paixões entre PSD e PS em torno da designação do próximo comissário português tem o mérito de chamar a atenção para elementos centrais que definem hoje o carácter antidemocrático da UE.

O Comissário indicado por Portugal não estará na Comissão Europeia - para defender os interesses nacionais – que está proibido pelos tratados de que a Comissão Europeia é a guardiã -, mas para implementar políticas que são contrárias à Constituição da República Portuguesa - que os tratados e políticas da UE consagram.

Quem não se lembra de Durão Barroso, ex. presidente da Comissão Europeia apoiado pelo governo PS de José Sócrates, a zurzir contra o tribunal constitucional e a Constituição?

O homem ou a mulher que PS e PSD indicarem, por acordo entre eles, terá de defender um suposto interesse geral da UE, ou seja as políticas neoliberais, federalistas e militaristas consagradas nos tratados e nas políticas sectoriais da UE.

As mesmas que impõem a Portugal que continue a cortar nos salários e pensões em nome do combate a uma dívida que não pára de aumentar, que reduza o défice custe o que custar, que continue a gerar mais desemprego com medidas que supostamente o deviam combater.

Tratados e políticas que defendem que se continue a destruir serviços públicos fundamentais, nomeadamente na saúde, na educação e nos transportes, que se privatize tudo o que seja lucrativo, incluindo a nuvem que vai passando (José Saramago), que se mantenham e se constituam novas parcerias público-privado, com investimento público e lucro garantido ao privado, que se for necessário se voltem a tapar os buracos das imparidades da banca para salvar banqueiros e monopolistas.

Para além das limitações evidentes da função de Comissário Europeu, a discussão entre PS e PSD chama a atenção para o papel determinante da coligação entre a direita e a social-democracia na definição do conteúdo dos tratados e políticas e dos seus executantes.

É importante aqui lembrar o papel que estas mesmas forças tiveram nos governos e parlamentos nacionais, incluindo o português, no Conselho Europeu, na Comissão Europeia e no Parlamento Europeu impedindo que os povos se pronunciassem sobre o conteúdo do chamado tratado constitucional – o tal que agora se chama de Lisboa.

Não tendo conseguido impedir que em alguns países como a Holanda e a França realizassem o referendo e tendo o resultado sido a sua rejeição, logo estas forças se lançaram num processo de transmutação da forma para garantir o seu conteúdo fundamental.

O tratado constitucional foi transformado em tratado de Lisboa, celebrado com esse "porreiro pá!" de dois representantes da direita e da social-democracia nacional e europeia, José Sócrates e Durão Barroso

Dois representantes dos mesmos partidos que há quase trinta anos impedem o necessário debate e a necessária consulta do povo português sobre o significado da integração de Portugal na CEE/UE, impedindo uma avaliação séria - como tem sido exigido pelo PCP - sobre os brutais impactos desse processo.

Procuram inviabilizar a necessária identificação dos graves problemas nacionais e as responsabilidades de sucessivos governos e da União Europeia, escamoteando responsabilidades políticas próprias evidentes. Mas visam sobretudo impedir o esclarecimento que podia levar à afirmação soberana da vontade do povo português, dos seus direitos e aspirações.

O agravamento da crise na União Europeia abriu caminho a novas decisões que evidenciam a UE como elemento central da ofensiva contra as soberanias nacionais e contra os direitos democráticos dos povos na Europa.

Em nome da União Económica e Monetária, do euro, de um suposto combate à crise e invocando a legalidade de um tratado rejeitado pelos povos, os senhores da UE levaram a cabo uma agressão a países e povos soberanos através da troika. Banco Central Europeu, Comissão Europeia e FMI, invocando uma situação económica e social que enviesava totalmente a realidade - lembre-se que no caso português se invocava o nível elevado da dívida pública quando parte significativa dos montantes que entraram em Portugal foram para tapar buracos dos bancos -, tudo com o objectivo de destruir direitos e conquistas sociais e ao mesmo tempo tomar como refém a soberania nacional.

Em simultâneo com a agressão da troika, desenvolveu-se um conjunto de outros instrumentos, o chamado semestre europeu - o sucedâneo para países como Portugal da troika -, processo que coloca as instituições de soberania nacional, particularmente os parlamentos nacionais, como meros executantes das orientações da União Europeia.

Aprovou-se ainda o dito tratado orçamental - um tratado intergovernamental que mais uma vez os mesmos de sempre, PS, PSD e CDS impediram o povo português de se pronunciar - como o PCP defendeu - impondo metas de redução do défice totalmente arbitrárias e independentes da situação económica e social de países como Portugal e com o único propósito de continuar a fazer correr para os cofres da banca nacional e internacional os custos especulativos do pagamento da dívida.

Mas melhor seria dizer que estas metas que o directório de potências da União Europeia - sobretudo a Alemanha - quer impor com este tratado dirigem-se fundamentalmente a Portugal, à Grécia, à Irlanda e a Chipre, países soberanos transformados em colónias, povos inteiros vergados ao domínio e à crescente exploração para promover a concentração e a centralização de capital nesse directório.

Porque mesmo que grandes potências como a França ou a Alemanha violem essas metas, nada garante que sofram multas, como está previsto no tratado. Recordemos 2004, quando estes mesmos países ultrapassaram as metas do Pacto de Estabilidade e nada lhes aconteceu.

Metas há muitas - como há tratados e políticas da UE – mas a realidade mostra que são impostas de acordo com os interesses das grandes potências e dos grandes grupos económicos e financeiros - os seus beneficiários – e dirigidas a países de economias mais frágeis. Mas visam particularmente a países como Portugal cuja Constituição continua a defender aqueles a quem as políticas da UE querem atacar, os trabalhadores e o povo.

Este é o fundamento do federalismo na UE - inseparável do neoliberalismo e do militarismo -, cujo ambicionado aprofundamento procura assegurar a hegemonia do directório de potências, particularmente da Alemanha andando a par da destruição das soberanias e de direitos democráticos.

Os mecanismos de participação e decisão política pelos povos vão desaparecendo em cada país, ao mesmo tempo que as políticas vão sendo determinadas por tratados, mecanismos e tecnocratas cuja legitimidade nos é apresentada como dogma inquestionável, verdade absoluta que a não ser contrariada poderá acarretar gravíssimas consequências para a vida dos trabalhadores e dos povos.

Tudo isto para, como dizia Angela Merkel a propósito do tratado orçamental, garantir que mudando os governos não mudem as políticas.

O capitalismo globalizado necessita de garantias, os monopólios financeiros exigem que as políticas lhe assegurem o lucro expectável, seja sobre a forma de pagamento da dívida, seja de uma ainda maior exploração do trabalho, seja sobre outra forma qualquer.

Não é apenas o euro que vive uma situação de profunda instabilidade, é todo o edifício da UE que se encontra em profunda crise.

O grande capital não descarta nenhuma possibilidade nesta crise e utiliza todos os meios - particularmente os meios de comunicação social - para promover descaradamente forças de extrema-direita, fascistas, racistas e xenófobas que um pouco por toda a União Europeia vão crescendo em influência eleitoral e política.

O grande capital e os senhores da UE preparam diferentes cenários, nenhum deles correspondendo aos interesses e aspirações dos povos.

Não estamos condenados a optar entre o aprofundamento do federalismo, do militarismo e do neoliberalismo na União Europeia e saídas políticas baseadas no fascismo ou na guerra. Tal como o PCP propõe, é possível construir uma outra Europa com base na derrota da União Europeia.

É possível construir uma outra Europa dos trabalhadores e dos povos e da justiça social; uma Europa de paz e cooperação entre Estados soberanos e iguais em direitos.

A UE mostra cada vez mais o seu carácter não reformável. A continuidade do actual rumo não permite encontrar soluções para países como Portugal que correspondam aos interesses e aspirações do trabalhadores e do povo que assegurem o seu direito ao desenvolvimento.

Sem a necessária ruptura com o processo de integração capitalista na Europa, Portugal estará condenado ao retrocesso permanente, continuando nesta espiral de cortes e perdas de direitos para fazer face a metas irracionais de redução do défice e da divida sem resultado.

Terminamos reiterando o compromisso do PCP com a defesa da Constituição da República Portuguesa e com a retoma do caminho transformador que ela consagrou. Reiteramos a necessidade de reforçar a luta por uma política patriótica e de esquerda, que assuma a ruptura com as imposições supranacionais que impedem a sua concretização.

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