Intervenção de

Regulamento de Disciplina Militar - Intervenção de António Filipe na AR

Declaração política, insurgindo-se contra afirmações do Ministro da Defesa Nacional no sentido de que o Governo  estaria a ponderar alterar o Regulamento de Disciplina Militar de forma a evitar que os tribunais possam intervir quando esteja em causa a aplicação de sanções disciplinares no âmbito das Forças Armadas

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Na passada quinta-feira, o Senhor Ministro da Defesa Nacional decidiu surpreender-nos com a espantosa afirmação de que o Governo estaria a ponderar alterar o Regulamento de Disciplina Militar de forma a evitar que os tribunais civis interfiram em matéria de disciplina militar.

Estas afirmações surgem na sequência de uma decisão judicial que deferiu uma providência cautelar interposta por dirigentes associativos militares perante uma decisão hierárquica que determinou que lhes fossem imediatamente aplicáveis penas de prisão de natureza disciplinar. Perante os recursos que foram apresentados dessas decisões, o tribunal entendeu que as eventuais penas de prisão não deveriam ser de aplicação imediata.

Pelos vistos, o Senhor Ministro da Defesa não se conforma com as decisões dos tribunais, e entende que deve ser alterada a lei para evitar que estes órgãos de soberania possam intervir quando esteja em causa a aplicação de sanções disciplinares aplicadas no âmbito das Forças Armadas.

Estas afirmações do Senhor Ministro são muito graves e obrigam-nos a subir a esta tribuna para lembrar três evidências que o Senhor Ministro parece desconhecer.

Em primeiro lugar, o Senhor Ministro faz por desconhecer que os tribunais são os órgãos de soberania que aplicam a Justiça em nome do Povo e que, como tal, são a maior garantia dos cidadãos, de todos os cidadãos, de respeito pelos seus direitos, liberdades e garantias no quadro do Estado de Direito Democrático.

Em segundo lugar, o Senhor Ministro faz por desconhecer que a Revisão Constitucional de 1997, e a revisão da legislação relativa à Justiça e à Disciplina Militar feita em 2003, extinguiram os tribunais militares em tempo de paz, passando o julgamento de crimes essencialmente militares para a competência jurisdicional dos tribunais comuns. Era o que faltava que dez anos depois da revisão constitucional de 1997 viesse um Ministro da Defesa Nacional pôr em causa a competência dos tribunais para se pronunciar em sede de recurso sobre questões atinentes à disciplina militar, tanto mais quanto estão em causa questões que dizem respeito a um dos direitos mais fundamentais dos cidadãos que é o da sua liberdade.

Em terceiro lugar, o Senhor Ministro faz por esquecer que, nos termos da Constituição da República, não há actos administrativos que não sejam recorríveis. Esse é um princípio basilar do Estado de Direito Democrático. Como é evidente, os actos que apliquem sanções disciplinares, que afectam directamente e de forma muito grave direitos dos cidadãos sob tutela constitucional, não podem deixar de ser recorríveis para os tribunais competentes.

O Senhor Ministro diz que sem hierarquia e sem disciplina não há Forças Armadas e sem Forças Armadas não há Estado de Direito Democrático. Isso é rigorosamente verdade. Mas não é tudo. Nós não pretendemos Forças Armadas sem hierarquia e sem disciplina. E também entendemos que as Forças Armadas são essenciais num Estado de Direito Democrático. Mas não queremos Forças Armadas à margem do Estado de Direito Democrático, como se fossem um corpo estranho à democracia, como se não estivessem vinculadas ao respeito por direitos fundamentais dos cidadãos que nelas servem.

A disciplina e a hierarquia das Forças Armadas são valores estimáveis, mesmo indispensáveis, mas não podem ser valores absolutos, isentos de quaisquer limites e de qualquer controlo jurisdicional. A intervenção dos tribunais em matéria de Disciplina Militar não pode ser vista como uma intromissão abusiva na esfera própria das Forças Armadas mas como uma garantia mínima de que os direitos fundamentais dos cidadãos sejam efectivamente respeitados.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

A situação a que se reportam as declarações do Senhor Ministro da Defesa Nacional reveste uma gravidade e um carácter insólito que importa sublinhar.

O Regulamento de Disciplina Militar em vigor prevê a existência de sanções disciplinares privativas da liberdade. Embora tal previsão tenha cobertura constitucional, é muito discutível que, em tempo de paz, e fora de missões operacionais, devam ser aplicadas penas de prisão com carácter disciplinar. A pena de prisão é a mais grave das sanções penais que a nossa ordem jurídica consente. É uma sanção tipicamente criminal, reservada para os crimes mais graves. A sua aplicação a título preventivo em processo criminal tem um carácter excepcional e restritivo. Estamos a falar de um dos mais preciosos direitos dos cidadãos, que é o direito à liberdade.

Não podemos por isso deixar de considerar absolutamente desproporcionado que numa situação de normalidade constitucional, e fora de qualquer situação operacional que o torne imperioso, se permita a aplicação imediata de sanções disciplinares privativas da liberdade por decisão hierárquica.

Não podemos deixar de considerar completamente absurdo que se pense que uma decisão dessa gravidade possa ser tomada e aplicada sem que os tribunais possam ter a possibilidade de intervir de modo a salvaguardar direitos fundamentais que possam ser postos em causa. E também é absurdo pensar que essa intervenção judicial não possa ter lugar em tempo útil. Que sentido é que faz reconhecer a um tribunal o direito a revogar uma pena de prisão depois dessa pena ter sido aplicada? Não faz nenhum sentido. A intervenção dos tribunais para evitar violações de direitos fundamentais só faz sentido se for feita a tempo de as evitar.

É sabido que neste momento se encontram abertos cerca de duas dezenas de processos disciplinares contra militares acusados de terem participado em acções cívicas supostamente lesivas da coesão e da disciplina das Forças Armadas. A avaliar por esses procedimentos, as Forças Armadas Portuguesas estarão a braços com uma onda avassaladora de indisciplina e de falta de coesão.

Será isso verdade? Não é verdade, Senhores Deputados. Ninguém se atreveria a afirmar tal coisa. Como se justifica então a aplicação de penas de prisão disciplinar?

Aquilo a que estamos a assistir não é a uma onda de indisciplina, mas antes, a uma onda de abuso da disciplina para impedir as associações de militares legalmente constituídas possam exercer os direitos que a lei lhes confere. Os processos em causa não passam de processos punitivos de natureza política sob a mera aparência de processos disciplinares.

E a prova disso é que não se prova nada. Os dirigentes associativos militares são punidos sob a acusação de que põem em causa a coesão e a disciplina das Forças Armadas, mas não se invoca um único facto, sublinho, um único facto, revelador de indisciplina ou de falta de coesão nas Forças Armadas que tenha resultado da actuação que é punida.

O Governo e o seu Ministro da Defesa Nacional vão mal por este caminho. Se algum procedimento é susceptível de pôr em causa a coesão das Forças Armadas é o do Governo, não é o dos militares. O que está errado neste processo não é a actuação dos tribunais. É a instrumentalização política da disciplina militar.

Os tribunais não serão indiferentes à importância da disciplina numa instituição como as Forças Armadas, mas a sua intervenção é indispensável para garantir que essa disciplina seja mantida no respeito pelos limites que a lei e a Constituição lhe impõem. Como bem salientou a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, "quando estão em causa matérias referentes a direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, os tribunais independentes são a melhor forma de garantir que as matérias sejam apreciadas de forma isenta e imparcial".

Um Governo que respeite a legalidade democrática e os direitos fundamentais dos cidadãos não pode recear a intervenção dos tribunais. Este Governo, pelos vistos, receia, e todos percebemos porquê.

Disse.

(...)

Sr. Presidente,
Srs. Deputados Fernando Rosas e João Rebelo,

Agradeço-vos as questões colocadas.

Sr. Deputado Fernando Rosas, compartilhamos inteiramente das preocupações que manifestou. E não está aqui em causa o reconhecimento de que uma instituição como as Forças Armadas tem requisitos de disciplina evidentes. O que está em causa é saber, desde logo, se não estamos perante uma instrumentalização da disciplina militar para fins políticos.

Creio que é a isso, de facto, que estamos a assistir.

Em primeiro lugar, porque as punições que têm sido aplicadas não são feitas com base em nenhum facto concreto que fundamente a existência de um qualquer elemento indiciador de uma qualquer quebra de disciplina ou de coesão das Forças Armadas, mas unicamente porque se entende que sim.

Entende-se que aqueles cidadãos, ainda por cima por factos que nem sequer têm a ver com a sua função enquanto militares, mas, sim, enquanto dirigentes associativos de militares, por acções cívicas que lhes são imputadas, são acusados de pôr em causa a coesão e a disciplina das Forças Armadas e que, portanto, deverão ser punidos. E punidos - imagine-se! - com pena de prisão.

Já é discutível que, em tempo de paz, fora de qualquer actividade operacional, um cidadão militar seja submetido a uma pena de prisão por mera decisão hierárquica. Basta lembrar, por exemplo, que a GNR é uma força com natureza militar e que não tem prevista a pena de prisão disciplinar no seu regulamento disciplinar - e não precisa dela para nada! Ainda não vimos que a GNR tenha sido dissolvida, tenha desaparecido ou deixado de cumprir as suas missões ou sido afectada por actos de indisciplina pelo facto de não ter a prisão disciplinar prevista no seu regulamento.

Mas essa questão nem se coloca agora. O mínimo que se exige agora é que os tribunais sejam a garantia dos direitos desse reduto mínimo de cidadãos. É, pois, inaceitável que um membro do Governo venha dizer que os tribunais não têm nada que se meter em matéria de disciplina militar! Era o que faltava, Srs. Deputados, que os tribunais não pudessem ser a salvaguarda mínima do direito fundamental de qualquer cidadão à sua liberdade!

Sr. Deputado João Rebelo, de facto, o Governo está a ir por um caminho que não sabemos onde acaba. É que, primeiro, todos o reconhecem, o Governo toma medidas lesivas do estatuto da condição militar, medidas perante as quais é natural que qualquer cidadão, e também um cidadão militar, se indigne pelo facto de o seu estatuto socioprofissional ser posto em causa. Depois, as associações legalmente constituídas usam os seus direitos para dar a sua opinião sobre isso, para reunirem os seus associados e emitirem a sua opinião sobre essas medidas do Governo. E o que é que o Governo faz? Manda instaurar processos disciplinares e aplicar penas de prisão e sanções disciplinares!

E os cidadãos, lesados também nesse seu direito, sentindo-se violentados por esse abuso do poder disciplinar, recorrem para os tribunais. E os tribunais decidem livremente, como é seu direito e seu dever, em matéria relativa a direitos fundamentais dos cidadãos.

Mas agora o Governo vem dizer que os tribunais também não podem meter-se nisso e que tem de encontrar uma forma de alterar a lei.

Ora, também partilho da ideia que o Sr. Deputado transmitiu de que bem faria o Governo se, em vez de procurar impedir os tribunais de defender a legalidade democrática, se preocupasse em clarificar os limites do poder disciplinar, assim como os direitos das associações e dos dirigentes associativos.

Importa, porém, dizer o seguinte: clarificar, sim, mas não no sentido de procurar restringir direitos que foram adquiridos com a última revisão do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, em que foi reconhecido o direito à constituição de associações. Portanto, que o caminho não seja o de procurar fazer uma revisão legislativa para o retrocesso, isto é, para impedir os militares de exercer direitos que são hoje adquiridos e que devem ser defendidos.

Consideramos, pois, que deve haver clarificação legal, sim, mas para restringir direitos o Governo não contará connosco. Nem para isso nem, obviamente, para apoiar qualquer medida legislativa que vá no sentido de retirar aos tribunais o poder de se pronunciarem, em última instância, relativamente ao direito dos cidadãos à liberdade e à garantia dos seus mais fundamentais direitos.

 

 

 

 

 

 

 

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