Intervenção de

Regula as técnicas de reprodução medicamente assistida<br />Intervenção de Odete Santos

Sr. Presidente, Srs. Deputados: A descoberta e o desenvolvimento das técnicas de reprodução medicamente assistida descerraram novos horizontes na área da medicina da reprodução. Uma nova esperança veio acalentar os casais vítimas dessa verdadeira doença de carácter social, que se tornou um problema de saúde pública, como aliás refere a Organização Mundial de Saúde. Segundo esta organização, há no mundo cerca de 80 milhões de pessoas a tentar ter um filho. Graças às técnicas que estamos a discutir, cerca de 1 milhão e meio de pessoas em todo o mundo nasceram. O desenvolvimento da reprodução assistida veio responder à necessidade de garantir uma nova forma de fecundação, que não é alternativa à fecundação natural. Tratou-se, porém, de uma revolução que não ficou por aí. Com efeito, a evolução do conhecimento e a sua aplicação prática através de novas tecnologias no campo biológico e médico trouxeram novas oportunidades ao ser humano e à humanidade, suscitando questões sem precedentes na história das revoluções científicas. As técnicas de reprodução medicamente assistida tornaram possível a prevenção de doenças genéticas graves, abriram caminho para o estudo da evolução da vida humana, tornaram possível que os casais com risco de gerarem filhos com graves doenças hereditárias tivessem filhos saudáveis. E logo as técnicas se passaram também a aplicar a casais férteis mas que se arriscavam a transmitir doenças à descendência. As novas técnicas abrem novas possibilidades de encontrar o caminho para a cura de graves doenças que afectam o ser humano e que o transformam por vezes num ser meramente vegetativo, como a doença de Alzheimer, e também para muitas outras doenças, como a diabetes, as doenças cardiovasculares, o cancro e a coreia de Huntington. A revolução genética, biológica e médica acrescentaram às transformações da natureza que envolve o ser humano, conseguidas pela revolução científica e tecnológica da era moderna, a possibilidade de o ser humano transformar a sua própria natureza, debelando o seu próprio sofrimento e o da humanidade. É por isso que uma lei de regulação das técnicas de reprodução medicamente assistida tem de ser muito mais do que uma lei dirigida só ao tratamento da infertilidade. Tem de ser uma lei que, ultrapassando preconceitos ideológicos, impulsione o progresso, ele em si mesmo um valor ético fundamental. O progresso do conhecimento é a fonte principal do progresso da humanidade, porque permite novas construções culturais da ideia da natureza, ideia, aliás, que António Gedeão transpôs para o grito do homem nascido: «Quero eu e a natureza, que a natureza sou eu.». Assim, num momento em que as tecnologias biomédicas alargam os horizontes para além do que é possível factualmente, aquilo que é lícito ou que não é lícito não depende do que seria natural, ou do que não seria natural. As regras morais estão também em permanente evolução e sempre que o ser humano se dá conta de que modificar o que esteve de «pedra e cal» pode tornar as coisas melhores, o que se faz através do conhecimento, então surgem novos conceitos de licitude ou ilicitude. Na área que hoje nos ocupa, são estas bases da bioética que devem reger qualquer regulamentação das técnicas de reprodução medicamente assistida, as quais, aliás de acordo com o que foi dito, também estarão sempre sob sindicância, porque o conhecimento poderá dar origem a novos direitos, princípios ou valores. A lei que a Assembleia aprovar tem de rejeitar preconceitos. Deve admitir, por exemplo, em nossa opinião, que uma mulher só, solteira, viúva ou divorciada possa ter acesso a estas técnicas. Sendo, aliás, uma consequência também do direito à saúde, não se percebe como é que uma mulher, apenas porque está só, pode ser discriminada no acesso a esse direito. Essa lei deve também admitir que um casal, ainda que fértil, possa recorrer a estas técnicas se houver o risco de transmitir à descendência uma doença grave. O diagnóstico pré-implantação determinará os embriões saudáveis para que possa nascer um filho saudável. A lei deve igualmente admitir a escolha do sexo quando determinada doença dominar um determinado sexo, para permitir a implantação de embrião de outro sexo. Deve ainda admitir, claro — consideramo-lo indiscutível —, o diagnóstico pré-implantação, sem o que se negaria o direito à mulher, e ao casal, de optar, sem o que o recurso às técnicas não poderia nunca ter como resultado evitar o sofrimento resultante de graves doenças genéticas. Mas, note-se, o diagnóstico pré-implantatório, como quaisquer técnicas de reprodução medicamente assistida, só se fará se os beneficiários derem o seu consentimento informado. Entendemos também que o estado de avanço das tecnologias biomédicas permite que o diagnóstico sirva para detectar os embriões com grupo HLA compatível com outro filho ou filha do casal afectados por doença grave, só podendo evitar-se a sua morte com transplante compatível. Contra os que entendem que isso seria instrumentalizar o ser humano, nós somos de opinião que essa é uma magnífica expressão do princípio de solidariedade que não deixará de reforçar os laços afectivos familiares. Isto faz-se já no Reino Unido. A França, que recentemente alterou a lei de bioética, admitiu essa solução, ainda que a título experimental. O recurso às técnicas deve garantir a prevenção de gravidezes múltiplas, fonte de muito sofrimento. Por isso, há propostas no sentido de um máximo de 3 embriões a transferir. Não deve, no entanto, limitar-se numericamente o número de ovócitos a estimular, mas afirmar o princípio de que esse número fica dependente de critérios a determinar pelo médico, de acordo com a história clínica dos beneficiários. A cega limitação dos ovócitos a estimular, como acontece, por exemplo, na triste lei italiana, determinaria ainda maior sofrimento para a mulher, que, perante insucessos das técnicas, teria de se sujeitar de novo ao início do processo, teria de começar tudo de novo, já que embriões excedentários não haveria. Preconceitos morais levaram à solução da lei italiana. Preconceitos morais levaram à solução da lei suíça, que impedia a conservação de embriões fora do corpo da mulher, preferindo a destruição. No entanto, a Suíça alterou a lei para permitir a congelação de embriões excedentários e a investigação científica sobre embriões em determinadas condições. Os princípios que enunciámos logo de início valem plenamente para a questão da investigação científica com embriões. Investigação fundamental, nomeadamente com linhas de células estaminais embrionárias. Propomos já algumas normas básicas sobre investigação científica. Os embriões excedentários que não forem utilizados pelos beneficiários, que por eles não forem doados a outros beneficiários, que por eles forem doados para investigação científica, e ainda os embriões abandonados e inviáveis devem poder ser usados na investigação, segundo propomos, com o objectivo de prevenção, diagnóstico ou terapêutica de embriões, de aperfeiçoamento das técnicas de reprodução medicamente assistida, de constituir bancos de células estaminais embrionárias para programas de transplantes, ou com quaisquer outras finalidades terapêuticas. Propomos também que sejam usados na investigação os embriões obtidos sem recurso à fecundação por espermatozóide. Estamos aqui perante embriões criados através da transferência de núcleo. Estamos perante a clonagem terapêutica, que deve ser permitida pelas possibilidades que abre de debelar o sofrimento humano. Os consultores da Organização Mundial de Saúde pronunciaram-se, há não muito tempo, da seguinte forma sobre esta matéria: a investigação, usando células estaminais embrionárias para cultura de novos tecidos (por forma a reparar ou a substituir os que foram afectados pela doença), sustenta uma promessa substancial. Alguma desta pesquisa pode envolver — dizem eles — fusão nuclear de uma célula de uma pessoa adulta com um óvulo enucleado, o primeiro passo para uma potencial clonagem humana. Dizem também que os possíveis benefícios da investigação, usando a fusão nuclear para produzir tecidos para tratamento de doenças, são reconhecidos, desde que não haja nenhuma tentativa de reproduzir um ser humano. Dizem que no momento presente a clonagem humana reprodutiva é não segura e não deve ser tentada — estamos de acordo. Também recentemente, 77 prémios Nobel dirigiram-se ao Secretário-Geral das Nações Unidas solicitando, em nome da liberdade de consciência, da liberdade do conhecimento, que rejeitasse qualquer proposta que proibisse a investigação científica com células estaminais embrionárias, criadas quer a partir de embriões excedentários quer através da técnica de transferência do núcleo, finalizada na produção de células estaminais — nós estamos de acordo, por isso o propusemos Estamos de acordo com a proibição da clonagem reprodutiva — aliás, propomo-la —, tentando assegurar, na nossa definição de clonagem, que ela não acabe por englobar degraus da clonagem terapêutica, ou s casos em que, através das técnicas de reprodução assistida, se faz uma transferência de núcleo por deficiências do citoplasma da mãe natural. Refiro-me aos casos em que o embrião terá duas mães biológicas, em que nem sequer há uma verdadeira clonagem, mas pode haver alguma confusão. Queremos que a lei seja verdadeiramente a concretização dos direitos consagrados nos artigos 12.º e 15.º e do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, que estabelece: o direito à liberdade, indispensável à investigação científica; o direito de cada um a beneficiar do melhor nível e qualidade de saúde física e mental. Direitos a que, segundo o mesmo pacto, por parte do Estado, corresponde o dever de respeitar, proteger ou realizar tais direitos e o direito do ser humano e da vida humana à dignidade.

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