Projecto de Resolução N.º 1221/XIII/3.ª

Recomenda ao Governo que analise a evolução dos impactos na saúde do consumo de cannabis e da sua utilização adequada para fins terapêuticos e tome as medidas necessárias à prevenção do consumo desta substância psicoativa

I - A Cannabis é uma planta que se cultiva em diversas zonas geográficas, uma vez que se adapta tanto a climas quentes como temperados, sempre que tenha a necessária provisão de água.

Existem três espécies desta planta: a sativa, indica e reduralis, sendo a cannabis sativa aquela que é cultivada e usada há mais anos.

Os produtos de Cannabis no seu conjunto representam a substância ilícita mais consumida e traficada em todo o Mundo, sendo o seu consumo cinco vezes superior ao conjunto das outras substâncias ilícitas (EMCDDA- European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction - Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, 2015).

Pese embora ser uma substância ilícita, tem havido um crescente interesse da comunidade científica sobre o uso terapêutico desta planta e têm sido desenvolvidos vários medicamentos à base de compostos nela contidos.

Nos últimos anos têm sido divulgados vários estudos e, também em Portugal, foram produzidos alguns trabalhos académicos (dissertações de mestrado) que abordam a utilização da cannabis sativa para fins terapêuticos.

Nesses estudos são apontados benefícios da administração de cannabis sativa em determinadas condições clinicas, em particular no alívio e tratamento da dor neuropática, ou seja, na dor que pode surgir associada a doenças como a SIDA, o cancro ou a artrite reumatoide. Ainda nos doentes com SIDA, são apontadas melhorias ao nível do apetite.

Outros há que referem mais-valias para os doentes oncológicos submetidos a quimioterapia, designadamente na melhoria das náuseas e vómitos decorrentes desses tratamentos e que não responderam a fármacos de primeira linha.

Existem estudos que revelam que, nos doentes com esclerose múltipla, a cannabis permite controlar os espasmos musculares e também, em certas formas de epilepsia, reduzir a intensidade e frequência de crises convulsivas.

São, também, divulgadas vantagens do uso desta substância em doentes com Alzheimer, nomeadamente nos distúrbios de sono, ou na doença de Crohn para redução da inflamação, e ainda no Glaucoma.

Todos os estudos revelam que o uso medicinal da cannabis sativa não trata ou cura qualquer doença, apenas permite o alívio de sintomas.

Por seu lado, a Organização Mundial de Saúde tem, para algumas das doenças acima mencionadas, identificado efeitos colaterais, a saber: na esclerose múltipla refere que o uso continuado foi já associado a perdas cognitivas e na doença de Crohn não é claro se os cannabinoides reduzam a inflamação ou se atenuam apenas os sintomas, como a dor e a perda de apetite.

De igual modo, nos trabalhos académicos portugueses consultados (José António Curral Ribeiro, 2014 e Joana Raquel Samora Rosado, 2015) é referida a necessidade de se continuar a estudar e aprofundar os conhecimentos atuais. Por exemplo, no trabalho de José António Curral Ribeiro, 2014 é afirmado que “ainda existe muito a ser pesquisado sobre esta droga e os seus mecanismos de ação, a fim de minimizarem-se o máximo possível os efeitos colaterais e ter-se uma resposta terapêutica mais eficiente”.

Por sua vez, Joana Raquel Samora Rosado, 2015, defende que “apesar dos resultados existentes [relativos ao beneficio do uso do cannabis nas doenças neurodegenerativas] são, ainda, necessários mais estudos. Estudos esses que demonstrem que os cannabinoides sintéticos são seguros e bem tolerados pelos pacientes, aumentando a qualidade de vida destes, demonstrando a verdadeira eficácia destes compostos no Homem”. A autora conclui dizendo que “o verdadeiro desafio é o de equilibrar os efeitos psicoativos destes compostos com os efeitos farmacológicos”.

Diversos relatórios, nacionais e internacionais, apontam para a existência de efeitos adversos decorrentes do uso da cannabis.

No que se refere a estudos ou ensaios clínicos em Portugal, a informação enviada em 2015 ao Grupo Parlamentar do PCP pelo Ministério da Saúde atesta que não existiam à data “ensaios clínicos autorizados com substâncias ativas derivadas de Cannabis sativa l”.

Segundo as informações prestadas pelo INFARMED, I.P., autoridade nacional do medicamento e dos produtos de saúde, foi autorizada a comercialização de um medicamento à base de cannabis, o Sativex, que, de acordo com a bula “é utilizado para melhorar os sintomas relacionados com a rigidez muscular, também chamada espasticidade, na esclerose múltipla”. A bula recomenda também a não utilização do Sativex “Se tem, ou um dos seus familiares diretos tem problemas de saúde mental como, por exemplo, esquizofrenia, psicose ou outra perturbação psiquiátrica importante”.

No relatório anual de 2010 relativo à “Evolução do Fenómeno da Droga na Europa” do EMCDDA é afirmado que “o consumo regular de cannabis na adolescência pode ter efeitos adversos na saúde mental dos jovens adultos, havendo dados que apontam para um maior risco de sintomas psicóticos e de perturbações que aumentam com a frequência do consumo”.

De acordo com o EMCDDA, 2012, é entendido como consumo de drogas de alto risco, o “consumo de drogas que causa danos reais (consequências negativas) para a pessoa (incluindo a dependência, mas também outros problemas de saúde, psicológicos e sociais) ou que coloca a pessoa num elevado risco/probabilidade de sofrer esses danos”.

Há fortes indícios que demonstram que o cannabis pode induzir sintomas psicóticos em pessoas com predisposição para desenvolver esquizofrenia ou outras perturbações comportamentais.

O consumo de cannabis, sobretudo pelos mais jovens, pode conduzir a alterações no processo normal de desenvolvimento do sistema nervoso.

O PCP advoga que a utilização de cannabis para fins terapêuticos deve ser apreciada especificamente em função desse objetivo, não se deve confundir a discussão da legalização da cannabis para fins unicamente recreativos. Uma coisa é a abordagem da utilização da cannabis do ponto de vista clínico, como são abordados muitos outros medicamentos, outra é a utilização da cannabis por motivos exclusivamente recreativos, potencialmente prejudiciais para a saúde. Estas duas questões não dependem uma da outra.

E, por fim, mas não menos importante, o uso da cannabis para fins terapêuticos é uma questão essencialmente técnica e científica e não uma questão essencialmente política.

De referir que o INFARMED, IP autorizou, em setembro de 2014, a plantação de cannabis sativa (com elevado teor de canabidiol e baixo teor em tetrahidrocanabinol) em Portugal para ser utilizada com fins terapêuticos no Reino Unido.

Em janeiro de 2017, numa peça jornalística, o então presidente do INFARMED, I.P, revelou que existem mais empresas interessadas na plantação de cannabis sativa.

O PCP defende há vários anos que deve ser efetivamente estudada e avaliada cientificamente se existem vantagens do ponto de vista clínico na utilização de cannabis para fins terapêuticos e tomar as decisões subsequentes perante os resultados obtidos. Tal avaliação deve seguir a mesma tramitação que precede aa introdução de qualquer medicamento no mercado, de acordo com as competências do INFARMED, IP. Deverá ser assegurado um rigoroso controlo de qualidade e do teor dos diversos alcaloides presentes (dificilmente compaginável, com a possibilidade de auto-cultivo ou mesmo dos “clubes de cannabis”), bem como deverão ser estabelecidas regras claras e estritas que limitem a prescrição fora das indicações clínicas para as quais este uso terapêutico venha a ser aprovado.

II - O PCP advoga, igualmente, que a possibilidade de eventual regulação do uso terapêutico de cannabis não seja utilizado para legitimar o seu uso recreativo.

O consumo de cannabis no país tem evoluído de uma forma preocupante. O estudo “Consumo frequente/de alto risco de cannabis”, publicado em 2017 pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, confirma-o.

Em Portugal, e segundo o estudo acima referido, a “cannabis tem sido, consistentemente, a substância ilícita mais consumida, independentemente de fatores como o grupo etário, o sexo ou a região de residência, a larga distância das restantes substâncias ilícitas”.

Os dados revelam também que “face aos resultados de inquéritos anteriores (2001, 2007, 2012) estas prevalências (considerando a população de 15-64 anos) têm vindo a aumentar”. Ou seja, “2,7% consumiram cannabis 4 ou mais vezes por semana nos últimos 12 meses”, “2,5% consumiram cannabis diariamente ou quase diariamente nos últimos 30 dias” e “0,6% têm um consumo de risco moderado/elevado”.

No que respeita à prevalência de consumo frequente/de alto risco nos jovens (15-34 anos), o estudo demonstra que: “1,2% dos jovens têm um consumo de risco moderado/elevado”, 4,7% dos jovens de 18 anos consumiram cannabis em 20 ou mais ocasiões nos 30 dias anteriores (2016) e entre 0,1% (13 anos) e 2,2% (18 anos) dos estudantes de Portugal continental consumiram cannabis em 20 ou mais ocasiões nos 30 dias anteriores (2015)”.

Por sua vez, nos jovens internados em centros educativos, o estudo mostra que “46% dos jovens (14-20 anos) consumiram cannabis em 20 ou mais dias no mês anterior ao internamento (2015). E, no contexto prisional, “22% dos reclusos (16 ou mais anos) consumiram cannabis em 20 ou mias dias no mês anterior à reclusão atual (2014).

O estudo evidencia que em todas as populações estudadas (população geral, estudantil, internada em centros educativos, prisional) “o consumo frequente/de alto risco é mais comum nos homens do que nas mulheres”.

No que respeita aos consumidores de cannabis em tratamento na rede pública, o estudo revela que “2231 estiveram em tratamento ambulatório, que corresponde a metade dos novos pedidos de tratamento” e “13,8% dos readmitidos”.

Em síntese, o estudo mostra que “entre 2012 e 2016/2017 a percentagem da população residente em Portugal (15-74 anos) com padrão de consumo de cannabis mais frequentes quadruplicou.”

Esta realidade exige um aprofundamento da análise e do conhecimento dos impactos do consumo de cannabis na saúde dos cidadãos. A existência de cannabis cada vez com maiores teores em THC (tetrahidrocanabinol), a substância psicoativa presente nesta droga obriga a uma atualização constante dos seus efeitos.

Noutro plano, a atual realidade exige também um reforço da intervenção na vertente da prevenção. A prevenção assume aqui uma importância preponderante para se alcançarem os objetivos de redução do consumo de cannabis, na população escolar, na população adulta jovem e na população em geral. A intervenção na área da prevenção deve adotar estratégicas específicas dirigidas a públicos-alvo concretos, de molde a que seja mais eficaz.

Porventura podemos afirmar que o sucesso do combate ao consumo de cannabis dependerá da eficácia e do investimento na prevenção.

A verdade é que a prevenção recorrentemente é o “parente” pobre ao nível da intervenção e da ação concreta, bem como dos meios que lhe são alocados. Os dados oficiais do consumo de cannabis impõe um olhar diferente em toda a dimensão da prevenção, que é manifestamente insuficiente e que deve assumir uma maior relevância.

Garantir a acessibilidade ao tratamento é de enorme importância. É provável que a procura de tratamento por utentes com consumos de cannabis mantenha uma tendência crescente considerando a evolução da procura de tratamento nos últimos anos e o preocupante consumo de cannabis na população em geral e nos jovens.

Devido às alterações na organização das respostas públicas e ao desinvestimento, o acesso aos cuidados de saúde está dificultado.

A desintegração dos vetores de intervenção na área da toxicodependência (dissuasão, prevenção, redução de riscos e minimização de danos, tratamento e reinserção), transferindo toda a área de intervenção operacional para as Administrações Regionais de Saúde e criando o SICAD com funções essencialmente de estudo e de definição de orientações gerais, retirou coerência à estratégia de combate à toxicodependência.

O contexto económico e social do país exigia um reforço do investimento nas estruturas públicas e não a sua redução. Nos últimos anos verificou-se uma redução da resposta pública que se traduziu na concentração de valências, na enorme carência de profissionais de saúde e na redução de equipas de rua.

Perante a realidade com que o país se confronta, é urgente uma intervenção imediata. Esta deve ser a prioridade do Governo: reforçar os meios (financeiros, técnicos e humanos) dos serviços públicos na área da toxicodependência, as equipas de rua e os programas de intervenção prioritária.

É o momento de investir para evitar o agravamento da situação em matéria de consumo de drogas e em especial para combater a evolução negativa no consumo de cannabis.

É o momento de apostar verdadeiramente na prevenção, no tratamento, na redução de riscos e minimização de danos e na reinserção, garantindo a capacidade de resposta adequada às exigências.

Neste quadro de respostas imediatas, a manutenção da autonomia das unidades públicas de tratamento constitui um elemento fundamental para assegurar uma maior capacidade de resposta.

Assim, nos termos regimentais e constitucionais aplicáveis, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP propõem que a Assembleia da República adote a seguinte

Resolução

A Assembleia da República recomenda ao Governo, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição que:

a) Proceda à atualização do estudo científico dos efeitos do consumo de cannabis na saúde dos cidadãos e dê conhecimento à Assembleia da República.

b) Avalie as vantagens clínicas da utilização da cannabis sativa para fins terapêuticos, comprovadas cientificamente, a evolução registada nos medicamentos disponíveis e na sua prescrição clínica, tendo também em consideração evoluções registadas noutros países, e pondere a eventual utilização mais adequada no Serviço Nacional de Saúde quando tal demonstre corresponder ao tratamento necessário para determinada patologia.

c) Reforce o investimento público no plano da prevenção, adotando medidas concretas e específicas dirigidas a cada grupo populacional, para prevenir o uso nocivo de cannabis.

d) Reforce os meios (financeiros, técnicos e humanos) dos serviços públicos na área da toxicodependência, designadamente na perspetiva de reverter o quadro de agravamento do consumo de cannabis.

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