Projecto de Lei N.º 358/XIII/2.ª

Proteção dos direitos individuais e comuns à água

Exposição de motivos

I

Sendo a água um bem essencial à vida, sem a qual nenhum ser vivo pode viver, a acessibilidade à água constitui um direito universal que tem de ser assegurado a todos os cidadãos. A universalidade do acesso à água só se garante em toda a sua plenitude contrariando a exploração privada do domínio público hídrico e dos serviços públicos de abastecimento de água e de saneamento, de qualidade e acessíveis a toda a população.

É exatamente porque a água é um bem essencial à vida, que o grande capital há muito ambiciona torná-la numa mercadoria, num negócio, sujeita às ditas regras do mercado. Para o capital não há limites, e todos os bens essenciais à vida são passíveis de serem mercantilizados com um único objeto – acumulação de chorudos lucros. Para combater a pressão para a mercantilização da água garantindo o direito fundamental à água e ao saneamento e o direito à água na Natureza, é necessário garantir a propriedade pública da água combatendo a entrega da captação e distribuição de águas e saneamento de águas residuais a empresas privadas, valorizando o papel das autarquias, respeitar as competências municipais em particular no que se refere aos Serviços Urbanos da Água. A privatização destes sistemas não só transforma o direito universal à água em mercadoria, como retira às populações e ao poder local qualquer possibilidade de intervenção democrática na sua gestão.

A água pública foi uma conquista de Abril, garantida na Constituição de 1976 e na Lei de Delimitação de Sectores imediata.
Mas desde 1984, sucessivas alterações legislativas, feitas pelas maiorias parlamentares e às quais o PCP sempre se opôs firmemente, abriram caminho à privatização dos serviços de águas, sendo concretizada a primeira em 1994, em Mafra.

A Lei da Água de 2005, aprovada por PSD, PS e CDS contra o Projeto de Lei de Bases da Água proposto pelo PCP, veio instituir a quase completa mercantilização e a privatização mais ampla de todas as funções da água e do domínio público hídrico, e nomeadamente a privatização da água da natureza, dos aproveitamentos de fins múltiplos, dos leitos, das margens e das praias marítimas e fluviais, a transferência das funções de soberania do Estado, como licenciamento, para privados e a mercantilização de títulos de uso da água e de poluição.

Presentemente, além de muito numerosas privatizações de serviços públicos de abastecimento de água e saneamento, estão feitas concessões do domínio público hídrico a privados e várias importantíssimas concessões e delegações de poderes soberanos a Sociedades Anónimas de direito privado, ainda de capitais públicos, mas cuja privatização é crucial impedir.

É fundamental que o Estado assuma diretamente a responsabilidade inalienável na gestão da água, do domínio público hídrico e dos serviços de águas, garantindo a fruição dos direitos de todos os cidadãos, a adequada utilização da água no sistema produtivo e a qualidade das suas funções ecológicas e ambientais.

A nível mundial está a assistir-se a uma reversão dos processos de privatização, através da sua remunicipalização. Não faltam exemplos de remunicipalização em todo o mundo, como Paris (França), Buenos Aires (Argentina) ou Berlim (Alemanha). As remunicipalizações avançaram porque se verificou que a gestão privada dos serviços de água conduziu à degradação da qualidade do serviço público, à dificuldade em monitorizar os privados, à falta de transparência, à falta de investimento nas infraestruturas, ao aumento de custos operacionais e ao aumento das tarifas, à destruição de postos de trabalho e à retirada de direitos aos trabalhadores e à degradação ambiental.

II

PSD e CDS foram ainda mais longe com a fusão dos sistemas multimunicipais em mega sistemas multimunicipais, com o argumento de maior eficiência, cuja concretização ocorreu em 2015, com a criação dos Sistemas Multimunicipais de Abastecimento de Água e de Saneamento do Norte, do Centro Litoral e de Lisboa e Vale do Tejo, mesmo contra a vontade dos municípios, dos trabalhadores e das populações. Contudo, o real objetivo foi sempre o de entregar a exploração e gestão destes sistemas multimunicipais aos grandes interesses privados, sem risco e com a perspetiva da obtenção do máximo lucro.

A fusão sistemas multimunicipais e neles integrando os sistemas em “baixa” para, ato contínuo, os concessionar ou subconcessionar aos grandes grupos económicos nacionais e internacionais que atuam neste setor, inseriu-se no objetivo do anterior Governo de privatização dos serviços de águas e resíduos. Embora fosse sempre negado, tal processo representou, na prática, o avanço da privatização dos serviços de águas e resíduos, colocando nas mãos dos privados mais um setor estratégico da economia nacional. Neste negócio – porque de um negócio efetivamente se trata –, os privados, obtêm elevadas taxas de rendibilidade garantidas por via do esforço do Estado e dos consumidores. Sem dúvida que este seria um excelente negócio para os grandes grupos privados que operam no setor, mas um negócio ruinoso para o Estado e para os portugueses.

O atual Governo assumiu no seu programa a reversão dos mega sistemas multimunicipais, de acordo com a vontade dos municípios. Contudo, definiu um caminho que fica aquém do necessário, ao instituir que os sistemas a destacar terão de ser multimunicipais, impedindo a possibilidade de parcerias público público e insiste na perspetiva de agregação das redes em baixa, com a introdução de mecanismos para condicionar a livre opção dos municípios, nomeadamente através do acesso a fundos comunitários que de outra forma não teriam. A agregação das redes em baixa constitui um enorme risco, ao criar melhores condições para se avançar, num futuro próximo, para a verticalização e posterior privatização.

Contra a opinião das populações, dos trabalhadores e das suas organizações representativas e das autarquias, o anterior Governo PSD/CDS procedeu à privatização da Empresa Geral de Fomento, que detinha a maioria de participação dos sistemas multimunicipais na área dos resíduos sólidos urbanos.

PSD e CDS não olharam a meios para atingir os fins e prosseguiu as alterações unilaterais da lei, usurpou competências das autarquias, tudo com o objetivo de entregar o setor dos resíduos aos grupos privados. Alertámos para as consequências negativas da privatização. Passado apenas pouco mais de um ano da privatização, elas estão já à vista – desinvestimento, degradação da qualidade do serviço prestado, ataque aos direitos dos trabalhadores e, inclusivamente, regista-se a ocorrência de mais acidentes de trabalho com gravidade. Para além disto, assim que o grupo privado chegou à EGF, distribuiu logo os lucros gerados ainda enquanto estava sob gestão pública pelos acionistas. Fica bem claro quais os reais objetivos – acumulação de riqueza - e não a prestação de um serviço de qualidade.

III

Em 2013 deu entrada na Assembleia da República uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos – “Proteção dos Direitos Individuais e Comuns à Água, que estabelece o direito fundamental à água e ao saneamento e disposições de proteção desse direito, bem como do direito à água como ambiente e os direitos comuns e à propriedade pública da água como recurso e à sua gestão no interesse coletivo, hierarquizando as utilizações da água e impedindo a privatização e a mercantilização dos serviços de água, das infraestruturas públicas e do domínio público hídrico”.

Esta Iniciativa legislativa de Cidadãos constituiu um elemento de enorme participação popular e de mobilização em defesa da gestão pública da água, tendo sido subscrita por mais de 43 mil cidadãos.

A Iniciativa legislativa de Cidadãos foi promovida pela Campanha “Água é de todos” cujas organizações promotoras são: Associação Água Pública, CGTP – Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses, CNA – Confederação Nacional de Agricultura, CPCCRD – Confederação portuguesa das Coletividades de Cultura, Recreio e Desporto, CPPC – Conselho Português para a Paz e Cooperação, FENPROF – Federação Nacional dos Professores, FNSFP – Federação Nacional dos Sindicatos da Função Pública, MUSP – Movimento dos Utentes de Serviços Públicos, STAL – Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local e USL – União dos Sindicatos de Lisboa.

Foi discutida e votada em plenário em outubro de 2014 – PCP, PEV, PS e BE votaram a favor e PSD e CDS votaram contra.

O PCP entende que a água, o domínio público hídrico e os serviços de água devem ser política e democraticamente controlados, sujeitos ao interesse público e às necessidades do País.

Considerando que a água é um bem essencial que deve ser gerido unicamente por organismos públicos, na ótica de um serviço público e não na ótica de obtenção de lucro; rejeitando a visão mercantilista e economicista, da qual só resultará o agravamento dos preços dos serviços de águas e resíduos, assim como a deterioração da qualidade destes serviços; considerando que a água é um recurso fundamental para o desenvolvimento do País, e atendendo à atualidade e pertinência da Iniciativa Legislativa de Cidadãos pela “Proteção dos Direitos Individuais e Comuns à Água”, valorizando e reconhecendo a grande participação e mobilização das pessoas em defesa da gestão pública da água, o Grupo Parlamentar do PCP assume e reapresenta a Iniciativa legislativa dos Cidadãos, trazendo novamente à Assembleia da República a proposta apresentada pela população.

Nestes termos, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição e da alínea c) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento, os Deputados da Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projeto de Lei:

Artigo 1.º
Direito à água

Todas as pessoas têm direito à água para beber, para confeção de alimentos e higiene pessoal e doméstica em quantidade, qualidade, continuidade e local adequados, bem como ao saneamento, recolha e descarga das águas residuais domésticas e à segurança sanitária, ninguém podendo ser privado da sua fruição, nomeadamente por razões económicas.

Artigo 2.º
Utilização e administração da água

1 – A utilização da água é hierarquizada pela necessidade humana, segurança, interesse comum, equidade de benefícios, adequação ecológica e preservação a longo prazo.
2 – A gestão e administração dos recursos hídricos, do domínio público hídrico e servidões associadas, bem como a emissão de títulos de utilização, licenças ou outras formas de autorização de uso privativo e as expropriações só podem ser exercidas por administração direta das Autarquias Locais ou do Estado Central.
3 – É proibida a mercantilização, comercialização, arrendamento, concessão exclusiva ou alienação de bens do domínio público hídrico ou servidões relacionadas, bem como a transação, negócio ou mercantilização de autorizações ou títulos de utilização ou de poluição da água.

Artigo 3.º
Delimitação de acesso a atividades económicas

Apenas entidades de direito público podem desenvolver as seguintes atividades económicas:
a) Captação, tratamento e distribuição de água para consumo público bem como recolha, tratamento e rejeição de águas residuais ou águas pluviais urbanas, através de redes fixas.
b) Exploração de empreendimentos de fins múltiplos, de infraestruturas hidráulicas públicas construídas com fundos públicos ou em terrenos expropriados por interesse público, empreendimentos relacionados com os recursos hídricos que tenham sido objeto de declaração de interesse público, ou que ocupem terrenos do domínio público hídrico ou com servidão administrativa.
c) Atividades relacionadas com a água ou com o domínio público hídrico que possam assumir características de monopólio ou oligopólio, nacional, regional ou local.

Artigo 4.º
Disposições transitórias

1 – A presente lei tem efeitos imediatos para todos os novos atos jurídicos de concessão, renovação ou prorrogação.
2 – Está vedada qualquer alienação ou redução da participação pública nas concessionárias de capitais mistos, enquanto estas detiverem a concessão.
3 – As entidades de capitais públicos, qualquer que seja a sua natureza, que sejam titulares de concessões de atividades referidas no artigo anterior, são reestruturadas para conformidade com a presente lei num prazo até um ano após a sua entrada em vigor.
4 – Os contratos de concessão bem como as parcerias público-privadas em vigor, não podem ser renovados ou prorrogados e devem ser revistos, no prazo de um ano, à luz do que na presente lei se dispõe.
5 – Caducam com efeito imediato e sem qualquer direito do concessionário, todas as cláusulas que violem o n.º 3 do artigo 2.º, bem como as passíveis de proteger monopólios de abastecimento de água ou de saneamento ou de privação de abastecimento a qualquer utente.

Artigo 5.º
Norma revogatória

São revogados:
a) O artigo 64.º, o n.º 4 do artigo 72.º e o n.º 3 do artigo 76.º da Lei n.º 58/2005, de 29 de dezembro;
b) O artigo 19.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro.

Artigo 6.º
Entrada em vigor

A lei entra em vigor no dia seguinte à sua publicação.

Assembleia da República, 16 de dezembro de 2016

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