Projecto de Resolução

Projecto de Resolução nº 70/X - Pílula RU 486

Adoptando recomendações para que possa ser utilizado em unidades hospitalares o medicamento de uso humano Mifégyne (pílula RU 486)  

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1. Mifégyne e Misoprostol- medicamentos essenciais

 

Em Março de 2005, a Organização Mundial de Saúde incluiu no 14º Modelo de Lista dos medicamentos essenciais como medicamentos ocitócicos e anti-ocitócicos uma combinação de mifépristone (comprimido de 200mgs e de Misoprostol (comprimido de 200 microgramas).

Mifégyne tem sido vulgarizado com o nome de RU 486, sendo mifépristone o nome da substância química, e Mifégyne o nome por que é comercializado em vários países pelos Laboratórios Exelgyn-Paris.

Segundo a OMS os medicamentos essenciais são aqueles que satisfazem as necessidades da população quanto aos cuidados de saúde primários e são escolhidos de acordo com a relevância na saúde pública, evidência quanto à eficácia e segurança, e comparação dos custos com a sua eficácia.

“É desejável que os medicamentos essenciais estejam acessíveis dentro do contexto do funcionamento dos sistemas de Saúde, em qualquer ocasião e em quantidades adequadas, em dosagens apropriadas, com qualidade assegurada e adequada informação e a preços acessíveis.”

O 14º Modelo de Lista supra referido, assinala em lista complementar (mas também incluída nos medicamentos essenciais) os medicamentos para os quais são necessários quer meios de diagnóstico ou de vigilância específica, quer cuidados médicos especializados, quer uma especialização na formação. Em caso de dúvida, os medicamentos podem igualmente ser classificados na lista complementar em razão do custo sistematicamente mais elevado, ou em razão da relação custo/eficácia, inferior em certos contextos”.

Os medicamentos essenciais supra referidos estão classificados dessa forma.

 

2- A Organização Mundial de Saúde e a luta contra o aborto inseguro

 

Convém salientar que o avanço supra referido surge, aliás, na sequência da deliberação da 57ª Assembleia das Nações Unidas, realizada em Maio de 2004, que considerou na sua estratégia, e como um dos 5 aspectos prioritários quanto à saúde sexual e genésica, a eliminação dos abortos feitos sem intervenção médica.

Por sua vez, tal resolução surge na sequência da dramática situação do aborto inseguro no mundo, segundo os dados do ano 2000 recolhidos pela Organização Mundial de Saúde e que constam do Relatório divulgado pela Organização divulgado em 2004.

Segundo podemos ler no resumo desse Relatório:

(O aborto inseguro) permanece ainda uma causa significativa da morbilidade e mortalidade maternas em muitos dos países em desenvolvimento. Na última década a OMS desenvolveu uma abordagem sistemática conducente a uma estimativa sobre a incidência regional e global do aborto inseguro e da mortalidade ao mesmo associada.

Estimativas relativas ao ano 2002 indicam que 19 milhões de abortos inseguros se realizam todos os anos, ou seja, uma em cada dez gravidezes terminam num aborto inseguro, resultando daí uma ratio de um aborto inseguro para cerca de 7 nados-vivos. A maior parte dos abortos inseguros acontecem noa países em vias de desenvolvimento.

As mulheres que recorrem ao aborto clandestino põem a sua saúde e a sua vida em risco. Por todo o mundo estima-se que 68.000 mulheres morrem como consequência do aborto inseguro. Nos países em desenvolvimento estima-se que o risco de morte é de 1 para 270 abortos inseguros”.

Relativamente à Europa, e mesmo na ausência de informações quanto à Europa Ocidental, refere o Relatório da Organização Mundial de Saúde que na Europa restante (Setentrional, Meridional, e do Leste) se estima em 500.000 o número de abortos inseguros, ou seja, 7 por cada 100 nados vivos; em 300 o número de mortes maternas devidas ao aborto inseguro correspondendo a 20% de todas as mortes maternas e a 5 mortes maternas por cada 100.000 nados vivos.

Não havendo estatísticas em Portugal, dadas as naturais cifras negras relativamente ao aborto clandestino, a verdade é que A Direcção Geral de Saúde revelou, relativamente ao ano de 2002, que uma parcela minúscula do total dos casos de interrupções da gravidez chegaram aos Hospitais. Mesmo assim foram 11.089 os casos.

Pelo que normalmente se estima em cerca de 30.000 ou 40.000 o número de abortos clandestinos.

O aborto inseguro, conforme é reconhecido, é um problema de saúde pública. Já em 1967 a Assembleia Mundial da OMS aprovava a Resolução WHA.20.41, através da qual se pronunciava no sentido de que o aborto constitui um sério problema de saúde pública em muitos países. No mesmo sentido se pronunciou em 1994 a Conferência Internacional do Cairo sobre População e Desenvolvimento.

A maior parte das mulheres no mundo beneficia de leis que legalizaram o aborto, sendo utilizado o método cirúrgico.

 

3- A Comercialização da Mifégyne

 

Contudo, em 1970 o Professor Emile Etienne Baulieu (França) inicia uma pesquisa química e biológica visando a descoberta de novas entidades químicas para a actividade hormonal e sobretudo anti-hormonal.

Nos dez anos seguintes, em consequência daquela pesquisa, foram sintetizadas na unidade de pesquisa dos Laboratórios Roussel Uclaf, milhares de moléculas, tendo sido finalmente obtida a molécula referenciada como RU 38486 que acabaria por ser vulgarizada como RU 486. O seu nome genérico químico é Mifépristone e actualmente na Europa o nome de marca é Mifégyne dos Laboratórios Exelgyn.

A molécula assim sintetizada tem o efeito de impedir que a hormona progesterona, actue, interrompendo dessa forma a gravidez. É esta, aliás, a sua principal indicação.

Tem ainda outras potencialidades, permitindo, por exemplo, dilatar o colo do útero como preparação para o aborto cirúrgico.

Pode também ser usada como pílula do dia seguinte. Tem ainda aplicação em cancerologia, e em muitas outras doenças de especial gravidade.

A Mifégyne foi sujeita a diversos ensaios clínicos. Alguns são referidos nos documentos preparatórios da sua inclusão no 14º Modelo de Lista dos Medicamentos Essenciais.

Foi sujeita a ensaios clínicos pela OMS no Chile, na Alemanha, na Hungria, Singapura, ex-União Soviética, Hong-Kong.

Foi ainda sujeita a ensaios clínicos pela organização não governamental norte- americana Conselho da População na índia, Vietname, Cuba e China. E concluiu-se que não há diferenças nas taxas de segurança, eficácia, e aceitabilidade entre os diversos povos do mundo.

A França foi o país onde primeiro se comercializou a RU 486. A data da autorização é de 1988.

Mas apesar das obstruções várias à comercialização da pílula por parte dos que se opõem ao aborto, hoje é utilizada legalmente em 21 países da Região Europeia.

Segundo informa a Delegação da Europa da Organização Mundial de Saúde, através da sua Revista Entre Nous (nº 59-2005) a RU 486 foi autorizada no Reino Unido (1991) e na Suécia (1992). Posteriormente, e ao abrigo do processo de reconhecimento mútuo da Agência Europeia dos Medicamentos, a RU 486 foi autorizada na Áustria (1999), Bélgica (2000), Dinamarca (1999), Finlândia(2000), Alemanha (1999), Grécia (2000), Luxemburgo (2000), Holanda (2000), Noruega(1999) e Espanha (2000). A Suíça autorizou a utilização em 1999.

A RU 486 está ainda autorizada nos E.U.A (2000) na Federação Russa (1999) em Israel (1999), Ucrânia e Países da Europa de Leste.

Na União Europeia, os laboratórios Exelgyn apenas não pediram autorização de comercialização em Portugal, Irlanda e Itália, por motivos evidentes.

Em Itália está no entanto, em curso uma petição de ginecologistas italianos, solicitando aos laboratórios Exelgyn que requeiram a autorização de comercialização da pílula Mifégyne, e foi noticiado que 4 Hospitais Italianos, 3 dos quais em Roma, pretendiam autorização para a sua utilização.

 

4- Benefícios resultantes da utilização da Mifégyne

 

Todos os ensaios e estudos que até agora se realizaram, evidenciam as reais vantagens do aborto medicalizado relativamente ao aborto cirúrgico.

Na verdade,

- a sua eficácia é elevada, chegando a atingir 98,6%;

- não é necessário a anestesia que exige o aborto cirúrgico;

- tem-se revelado uma grande aceitação deste método;

- não existem os riscos de infecções ou de perfurações;

- não produz esterilidade secundária;

- permite que a interrupção da gravidez seja feita mais cedo do que no aborto cirúrgico;

- garante a privacidade da mulher;

-dá á mulher uma maior capacidade de decisão, dada a menor dependência relativamente ao médico.

Tem havido boa aceitação por parte das mulheres, pois se trata de um método não intrusivo, menos traumático, mais privado e mais natural, do que o método do aborto cirúrgico.

De facto, de acordo com o documento da OMS que instruiu o processo de decisão sobre a inclusão da pílula abortiva na lista dos medicamentos essenciais, milhões de mulheres em cerca de 30 países onde se encontra registada a pílula recorreram ao aborto medicalizado.

Segundo um estudo elaborado pelo Instituto Allan Guttmacher, sediado nos E.U.A, relativamente ao Reino Unido, França e Suécia, países pioneiros na utilização da RU 486, a percentagem de mulheres que optaram pelo aborto medicalizado foi de 56% na França e de 56% na Suécia e de 61% na Escócia, entre os anos de 1990-2000.

Convém ainda salientar que este mesmo estudo evidencia que o facto de se ter passado a comercializar a pílula Mifégyne, não determinou o aumento das taxas de aborto.

 

5- Uma pílula combatente

 

No entanto, a pílula Mifégyne que é utilizada em associação com o Misoprostol (indicação aliás constante do 14º Modelo de Lista da OMS) já comercializado em Portugal, tem tido uma história atribulada, porque se lhe têm oposto ferozmente os que desenvolvem campanhas contra as mulheres, tentando impedi-las de exercer o direito à liberdade de decidir.

E houve mesmo quem lhe chamasse um medicamento combatente.

Empolando alguns riscos da pílula (que medicamento é que os não tem?), contra ela têm sido desenvolvidas campanhas de especial ferocidade.

Se nos E.U.A tem tido um percurso atribulado, também em França os obstáculos exigiram por parte do Governo Francês, em 1988, na pessoa do então Ministro da Solidariedade Claude Evin, uma atitude firme que tornou possível que a Mifégyne continuasse acessível em França.

De facto, perante o anúncio feito pelos laboratórios de Roussel-Uclaf, nesse ano de 1988, de que deixaria de distribuir a pílula em França, o Ministro notificou os Laboratórios (era então a Roussel- Uclaf detentora da patente) de que teriam de retomar a distribuição, o que veio a acontecer.

Quanto aos riscos propagandeados relativamente à Mifegyne, que não impediram que fosse aprovada em vários países, eles existem apenas se não forem tomadas em conta as contra-indicações, sendo mesmo assim, muito menores os riscos, quando comparados com os resultados de outros medicamentos.

 

6 - A excepção Portuguesa

 

Portugal foi um dos 3 países da União Europeia, relativamente aos quais os laboratórios Exelgyn não solicitaram a comercialização da Mifégyne. O Misoprostol já é comercializado em Portugal.

E, no entanto, as mulheres portuguesas são vítimas de várias obstruções relativamente à aplicação da lei que legalizou o aborto em certas condições.

Para os casos em que o aborto é legal, em Portugal, as mulheres portuguesas vêem-se privadas de optar pelo aborto medicalizado, e de beneficiar das vantagens do uso da Mifégyne.

Entre as atribuições da Direcção Geral de Saúde constam as de orientar , coordenar e fiscalizar as instituições prestadoras de cuidados de saúde e serviços de saúde.

Segundo a lei da Gestão Hospitalar, ao Ministro da Saúde compete definir as normas e os critérios de actuação hospitalar .

 

Nos termos do Estatuto do Medicamento aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/91 e suas alterações, ao Infarmed podem ser requeridas autorizações de utilização especial de medicamentos quando estejam em causa motivos de saúde pública.

Compete ao Ministro da Saúde nos termos da lei Orgânica do Infarmed, acompanhar a actividade do INFARMED, exigindo todas as informações necessárias, emitindo directivas e recomendações.

 

7-Recomendações

 

Assim, tendo em conta os considerandos expostos, a Assembleia da República, nos termos do artigo 166º nº 5 da Constituição da República e da alínea b) do artigo 5º nº1 do Regimento da Assembleia da República, recomenda ao Governo e ao Ministro da Saúde, o seguinte:

a) Que o Ministro da Saúde recomende às unidades hospitalares que, com vista à realização de interrupções de gravidez, requeiram ao Infarmed autorização de utilização especial da Mifégyne, para que, em associação com o Misoprostol, esteja disponível e acessível às mulheres que optem pelo aborto medicalizado;

b) Que o Ministro da Saúde recomende ao Infarmed o deferimento de quaisquer requerimentos apresentados, de acordo com a lei, por unidades hospitalares, nos termos da alínea anterior;

c) Que o Ministro da Saúde recomende ao Infarmed que, através da Comissão do Formulário Hospitalar Nacional dos Medicamentos, considere a inclusão nesse formulário da Mifégyne com as características segundo as quais é comercializada na maior parte dos países da União Europeia;

d) Que o Governo estabeleça conversações com os Laboratórios Exelgyn em Paris, que detêm a patente da Mifégyne, para que requeiram a sua comercialização em Portugal, com as indicações autorizadas na Europa,para utilização em unidades hospitalares.

 

 

 

Assembleia da República, em 15 de Setembro de 2005

 

 

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