Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral, Conferência sobre Política Fiscal organizada pela Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas e pela TSF

Política fiscal justa - Chave de um programa patriótico e de esquerda

Política fiscal justa - Chave de um programa patriótico e de esquerda

1. Política fiscal justa - Uma política chave de um programa patriótico e de esquerda

No Programa Eleitoral que acabámos de apresentar no passado dia 7, consideramos uma Política Fiscal Justa um instrumento central das cinco políticas-chave para uma política patriótica e de esquerda, tendo como objectivos o pleno emprego, o crescimento económico e o desenvolvimento da produção nacional.

Um instrumento decisivo para assegurar meios financeiros para o Estado desempenhar cabalmente as suas incumbências constitucionais, assegurar o necessário investimento público, garantir as despesas sociais com a saúde e a educação, no quadro de contas públicas equilibradas e consolidadas.

Um importante instrumento também, na redistribuição do rendimento nacional e correcção das desigualdades sociais, mesmo se não suficiente, porque tal deve caber no fundamental à política salarial e ainda à redistribuição feita pela segurança social.

Mas, por muito importante que seja a política fiscal, e é, não lhe podemos pedir que ela resolva o que manifestamente não pode resolver, particularmente face ao estado de desastre a que quase 4 décadas de política de direita de sucessivos governos do PS, PSD e CDS, conduziram o País.

É assim que colocamos no centro do nosso Programa Eleitoral a recuperação pelo Estado do comando político da economia, com a afirmação da soberania nacional e o combate decidido à dependência externa, questão decisiva de uma política alternativa, ainda mais no contexto da globalização capitalista e da integração comunitária.

O que para o PCP exige a renegociação da dívida nos prazos, juros e montantes; a intervenção para o desmantelamento da União Económica e Monetária (UEM) e o estudo e a preparação para a libertação do País da submissão ao euro, visando recuperar a soberania monetária, cambial e orçamental; a eliminação de condicionamentos estratégicos pelo controlo público de sectores como a banca e a energia; a subordinação do poder económico ao poder político democrático, com o combate a uma estrutura económica monopolista, e o exercício e assumpção pelo Estado das suas missões e funções constitucionais na organização e funcionamento da economia e da vida social.

2. Principais problemas e estrangulamentos

Os principais problemas e estrangulamentos da política e sistema fiscal português resultam de uma carga fiscal mal distribuída, de uma base tributária limitada, da fraude, fuga e evasão fiscal, incluindo a “legal” e de um aparelho fiscal com evidentes insuficiências e deformações.

Uma carga fiscal mal distribuída

Os sucessivos governos da política de direita (PSD/CDS e PS) criaram um mito: a carga fiscal portuguesa é excessiva!

A carga fiscal não é excessiva em abstracto. De acordo com as estatísticas oficiais, quando se compara Portugal com outros Estados-membros da UE, verificamos que temos uma carga fiscal inferior à média da União Europeia (34% para 39%).

O que está errado nas estatísticas?

Porque é que os trabalhadores, os micro, pequenos e médios empresários, as famílias portuguesas sentem uma pesada factura fiscal, sentem que a Autoridade Fiscal lhes leva couro e cabelo?

A questão é de uma fiscalidade assimétrica, desproporcionada! Os que têm altos rendimentos e património mobiliário pagam pouco, os que têm baixos rendimentos e património imobiliário (em muitos casos apenas a sua casa que estão ainda a pagar ao banco) pagam em demasia.

Em 2008, quando a crise despoletou, o IRS correspondia a pouco mais de 23% da receita fiscal. Em 2014, correspondeu a mais de 31%. No caso do IRC a evolução foi a oposta. Em 2008 o IRC correspondia a quase 15% dos impostos. Em 2014, já com a reforma do PSD/CDS e acordo do PS, o IRC correspondeu a menos de 11%, mesmo se as micro, pequenas e médias empresas viram o seu IRC agravado.

Esta desproporção é ainda mais escandalosa pela subida do peso dos impostos indirectos, impostos “cegos” atingindo de igual forma, a mesma taxa, os ricos e os pobres. Como acontece com o IVA, que atinge 34% dos impostos cobrados!

De facto, a maioria dos portugueses pagam impostos a mais e uma pequena minoria, apesar do seu imenso património e fortuna, vai sendo aliviada.

Só em IRS e IVA os trabalhadores, reformados e pensionistas e os pequenos empresários pagam 65% dos impostos cobrados em Portugal, enquanto os grandes grupos económicos e financeiros contribuem menos de 11% para o conjunto da receita fiscal .

Uma reduzida base tributária

A escassez de receitas fiscais resulta também da reduzida base tributária dos impostos directos. Os baixos salários e pensões, os cerca de 1 milhão e 200 mil desempregados, a reduzida capacidade produtiva do País, a par dos elevados níveis da chamada economia não registada, colocam fora da tributação fiscal directa, milhares de cidadãos e entidades económicas.

Por outro lado o património mobiliário – quotas societárias, acções, obrigações e outros títulos financeiros - contrariamente ao imobiliário, permanece sem imposição fiscal. E devemos questionar por que razão, uma família proprietária de uma casa, avaliada em 10 mil euros deve pagar IMI e o proprietário de um património de bens mobiliários de um, dez, cem milhões de euros paga zero! Questão tanto mais relevante quando vivemos tempos em que a riqueza claramente se “desmaterializou”!

A que se acrescenta, a decisão do anterior governo PSD/CDS de acabar com o imposto sucessório, ou seja a transmissão familiar não onerosa de património, sem imposição fiscal.

Fuga e evasão fiscal

A fraude, a fuga e evasão fiscais, e as práticas correntes de planeamento fiscal agressivo, que incluem a manipulação das transferências de preços e rendimentos dentro dos grupos económicos e multinacionais, correspondem em cada ano a milhares de milhões de euros não cobrados pelo Estado.
Esta evasão, particularmente a “legalizada”, com o apoio do governo e da UE, só por si, põe a nu a mentira de que o Estado não tem recursos, e a falsa alternativa de que, ou se reduzem direitos e a qualidade dos serviços públicos ou se aumentam os impostos!

Os escândalos que envolvem o presidente da Comissão Europeia, Juncker, com a utilização do Luxemburgo como sede de grupos económicos e financeiros para não pagarem os impostos nos seus países; a transferência das sedes fiscais das SGPS do PSI 20 para a Holanda (caso do Grupo Jerónimo Martins), Irlanda, Áustria ou outro qualquer verdadeiro paraíso fiscal no seio da própria União Europeia; os escândalos com a transferência de capitais para o Liechtenstein ou para a Suíça (onde estarão parqueados pelo menos 30 mil milhões de euros de capitais portugueses), através de grandes bancos (caso do HSBC), permitiram que grandes fortunas escondessem do fisco milhares de milhões de euros.

Diga-se com a cumplicidade activa do Estado português.

Não foram outra coisa os sucessivos perdões fiscais e legalização de capitais que fugiram para paraísos fiscais, como sucedeu com a 3ª versão do RERT – Regime Especial de Regularização Tributário, após as duas versões dos governos do PS. Uma verdadeira amnistia fiscal, que premiou entre outros Ricardo Salgado e outros membros da família BES/GES. É por isso um insulto que o Governo que assim procede, se arvore em campeão do combate à fuga e evasão fiscal.

Uma autoridade fiscal com dois pesos e duas medidas

O que evidencia a política de dois pesos e duas medidas da Autoridade Tributária que canaliza todos os seus recursos e esforços para sacar o mais possível aos mesmos de sempre, trabalhadores, reformados e pensionistas e micro, pequenos e médios empresários.

Permitam-me fazer um pequeno parêntesis, para reafirmar que para o PCP, o cumprimento dos deveres fiscais deve ser uma referência e obrigação de todos os portugueses, de todos os contribuintes, independentemente da sua capacidade económica, profissão ou ramo de actividade.
A fraude e a fuga ao pagamento de impostos, o incumprimento fiscal propositado e premeditado não devem ter complacência!

E devemos ter uma máquina fiscal capaz de, separando o trigo do joio, fazer cumprir o princípio constitucional de que todos deverão contribuir para o financiamento do Estado na medida das suas capacidades. No entanto não é isso que todos sentimos e que na realidade verificamos!

Ao contrário do que seria de esperar, a informatização da Autoridade Tributária agravou a exigência declarativa.

Quando se pretendeu simplificar processos, na realidade, limitaram-se os direitos dos contribuintes mais desprotegidos, na dedução de despesas, na reclamação, na justificação de faltas sem gravidade nem prejuízo para a fazenda pública. Simultaneamente, agravou-se de forma significativa a moldura contraordenacional, na gravidade das contraordenações e no seu valor.

Caso do IVA não pago, independentemente do contribuinte ter recebido ou não o valor da transacção. Caso de um atraso de 1 dia em que, tendo em conta que a não devolução do IVA passou a ser sempre uma contraordenação grave, o pequeno empresário terá que pagar 30% de coima, sem poder reclamar a sua redução, mesmo que voluntariamente e sem ser notificado tenha resolvido a sua falha.

Temos uma máquina fiscal, desequilibrada em que todos os recursos e esforços são colocados na inspecção dos pequenos contribuintes, sem reforçar simultaneamente os meios para o seu esclarecimento e apoio.

Como é exemplo o sucedido nas repartições de finanças. Apesar das intenções do actual e anterior governo, graças à luta das populações não encerraram. Mas estão hoje em grande medida incapacitadas porque não têm recursos humanos e materiais suficientes.

São inadmissíveis as horas perdidas por milhares de contribuintes nas Finanças!
Recursos que também faltam no combate à grande fuga e evasão fiscal.

Registe-se ainda como grave, a sonegação de informação fiscal, como sucede com a informação estatística desagregada do IVA e do IRS, da exclusiva responsabilidade do Ministério da Finanças.

Ontem mesmo, um Relatório do Tribunal de Contas deu conta do não reporte pelo Governo na execução orçamental de 2014 das contribuições de serviço rodoviário, para o audiovisual e sobre o sector energético, no valor de 1.141 milhões de euros!

3. A política fiscal do governo PSD/CDS

Os problemas e estrangulamentos que caracterizam a política fiscal portuguesa, vindos de trás, foram muitíssimo agravados pelo actual governo PSD/ CDS. E o pior é que o referido Relatório do Tribunal de Contas, conclui sem margem para dúvidas que o Governo continua a comprometer (e cito) “o rigor e a transparência das Contas Públicas”, porque martela as receitas e despesas na contabilidade orçamental!

Se lhe somarmos o Relatório do mesmo Tribunal sobre a ADSE de sexta-feira, perguntamos como é possível acreditar nas suas justificações para a enorme carga fiscal lançada sobre o povo português, em nome do equilíbrio das Contas Públicas???

O “enorme” (palavras de Vítor Gaspar) aumento em 2012 e 2013, com destaque para o IRS e o IVA, em que foram reduzidos os escalões e agravadas as taxas, permitiu cobrar em 3 anos, mais do que seria espectável cobrar em 4!

O aumento da taxa normal do IVA de 21% para 23% do governo PS foi seguido do seu agravamento na electricidade e no gás natural (de 6% para 23%), nalguns produtos alimentares (de 6% para 13%) e na restauração (de 13% para 23%).

A reforma do IRC para as grandes empresas, com a taxa efectiva de IRC reduzida dos 25% para os actuais 21% (que deverão ir até aos 17%) e da não consideração de parte significativa dos rendimentos dos grupos económicos para apuramento do imposto a pagar.

Para as micro, pequenas e médias empresas que, pelas próprias características e dimensão não conseguem recorrer aos grandes fiscalistas, com a imposição de taxas de tributação autónoma ou dos pagamentos especiais por conta, sobem de facto as taxas efectivas de IRC. Recorde-se que já um anterior Governo PSD/CDS tinha reduzido a taxa de IRC de 30% para 25%. E deveríamos perguntar qual foi o seu impacto em termos de investimento e emprego!

A reforma do IRS que, diziam PSD e CDS ser dirigida às famílias e à promoção da natalidade, não passou de um embuste, pela não reposição dos antigos escalões e pelos novos cortes que serão sentidos no próximo ano quando não deduzirem parte das suas despesas em educação e saúde.
A chamada reforma da fiscalidade verde que, na prática eterniza e agrava os anteriores aumentos fiscais, cria novos impostos sobre o consumo, penaliza famílias e empresas com menores recursos e que, alargando os impostos consignados, assume o princípio do utilizador pagador, como forma de financiar o Estado, transformando impostos em taxas.

A tendência da crescente consignação dos impostos, tem um expoente máximo na contribuição sobre o sector bancário que não é mais do que um meio para o Estado entregar à mesma banca receitas e recursos públicos em montante muito superior a esses mesmos impostos. Caso do processo de resolução do BES em que o Novo Banco existe e subsiste apenas graças aos milhares de milhões injectados pelo Estado.

A autêntica perseguição dos pequenos agricultores, comerciantes e industriais, através da exigência desproporcionada de obrigações declarativas e processuais e da constante presença da Autoridade Tributária e respectivas inspecções punitivas, sem as necessárias acções pedagógicas para apoiá-los no cumprimento das suas obrigações fiscais.

Acrescentemos a nota obrigatória face ao Relatório do Tribunal de Contas já citado, de que o Ministério das Finanças e a Autoridade Tributária não aplicam a si próprios “como administradores de receitas públicas, os princípios e procedimentos que tornaram obrigatórios aos contribuintes” com a e-factura!

Em sentido contrário, este governo foi lesto em criar uma Unidade de Grandes Contribuintes, alegadamente para combater as práticas de planeamento fiscal abusivo e de utilização criativa da legislação. Na palavra dos que lá trabalham, o actual governo PSD/CDS, com o apoio do PS, criou uma verdadeira consultora fiscal do Estado ao serviço dos grandes escritórios de advogados e da sua assessoria jurídica e fiscal aos grupos económicos e às grandes fortunas.

Hoje, antes de concluir o desenho de qualquer solução fiscal, telefonam ou visitam a Unidade dos Grandes Contribuintes para obter a segurança jurídica dos esquemas que são vendidos depois por centenas de milhares de euros.

A que devemos acrescentar a criação de uma lista de intocáveis que beneficiam de protecção fiscal, aumentando a desconfiança, a falta de transparência. Mas que se enquadra na linha de responsabilizar os trabalhadores tributários pelas decisões do governo.

É da natureza deste governo. Dois pesos e duas medidas. Também na política fiscal, forte com os fracos, fraco com os poderosos.

4. Uma política fiscal justa

Portugal não encontrará resposta para os graves problemas do declínio económico, retrocesso social, regressão da cultura e de degradação da democracia com as velhas receitas dos sucessivos governos (PSD/CDS e PS) dos últimos anos. Não será a política que nos conduziu ao desastre, a tirar-nos do buraco que abriu.

Não há política capaz de responder aos desafios do desenvolvimento do País sem promover múltiplas rupturas com o caminho que foi seguido.

É o que propõe o PCP, na política patriótica e de esquerda que defende.

Também assim, assumimos a urgência de uma ruptura na política fiscal como forma de assegurar os meios para o cumprimento das funções e competências do Estado e fazer justiça fiscal.

O PCP defende uma política fiscal verdadeiramente progressiva que, no quadro de um alargamento da base tributária e de uma legislação simplificada, garanta: o alívio da carga tributária sobre os trabalhadores, reformados e pensionistas e as pequenas empresas; o incremento das receitas e da eficácia da Autoridade Tributária e Aduaneira; a maior tributação dos rendimentos e património, mobiliário e imobiliário, do grande capital; o aumento substancial do peso dos impostos directos, face aos indirectos; o princípio do englobamento de todos os rendimentos, a eliminação tendencial dos benefícios fiscais e a total derrogação do sigilo bancário para efeitos fiscais; o combate à evasão e planeamento fiscal agressivo; o combate à progressiva consignação de receitas fiscais. O combate aos paraísos fiscais e à manipulação de preços e rendimentos pelos grupos económicos e multinacionais.

Sublinhemos: o aumento da receita fiscal passa em primeiro lugar, pelo crescimento económico e por uma redução significativa do desemprego! O que exige medidas como as que o PCP propõe no seu Programa para uma política patriótica e de esquerda.

Mas as propostas do PCP em matéria fiscal demonstram também que é possível reduzir a carga fiscal sobre a generalidade da população, aumentando a receita fiscal. Algumas das medidas que propomos:

Na tributação das famílias. IRS: criação de dez escalões de tributação do rendimento e redução das taxas e melhoria das deduções à colecta para os baixos e médios rendimentos; eliminação imediata da sobretaxa extraordinária; englobamento obrigatório de todos os rendimentos, de forma a impedir que os rendimentos de capital sejam tributados a uma taxa inferior; criação de taxas de 60% e de 75% para rendimentos colectáveis superiores a 152 mil e a 500 mil euros anuais, respectivamente. IVA: redução da taxa normal de IVA para 21%; criação de um cabaz mais alargado de bens essenciais, taxados a 6%, incluindo a electricidade, o gás natural e o gás de botija; introdução de uma taxa de 25% para bens e serviços de luxo. IMI: redução da taxa máxima de 0,5% para 0,4%; alargamento da isenção de IMI para as famílias de muitos baixos rendimentos e com pessoas deficientes.

Na tributação das micro, pequenas e médias empresas. Taxa de IRC de 12,5% para lucros inferiores a 15 mil euros e para micro, pequenas e médias empresas em regime de interioridade e nas regiões autónomas; criação de factores técnico-científicos na avaliação do rendimento tributável, com a eliminação do pagamento especial por conta; alargamento do âmbito do IVA de caixa e taxa de IVA de 13% para a restauração.

Na tributação dos rendimentos do capital e do património. Reposição da taxa normal de IRC para 25%; taxa de 35% para lucros superiores a 3 milhões de euros; normas que impeçam o planeamento fiscal; tributação efectiva em Portugal de todos os rendimentos gerados no território; imposição fiscal nas transferências financeiras ou de rendimentos para paraísos fiscais; taxa de 0,5% sobre todas as transacções financeiras; fim dos benefícios fiscais à Zona Franca da Madeira e aos fundos de investimento e imobiliários; imposto de 1% sobre o património mobiliário acima de 1 milhão de euros; reconsideração do imposto sucessório.

Eis meus senhores e minhas senhoras, caros ouvintes da TSF, as propostas do PCP para uma política fiscal justa, capaz de responder às necessidades dos trabalhadores e do povo português de um País com mais emprego, mais justiça social e desenvolvido.

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