Intervenção de José António Gomes, 2.º Encontro Nacional do PCP sobre Cultura

Política do Livro e Leitura

Camaradas,

A classe dominante e os seus representantes políticos nunca têm um real empenho na promoção do livro e da leitura, por muito que produzam um discurso contrário, de fachada, não raro cheio de floreados e de poéticas citações de grandes homens e mulheres das letras. E, camaradas, gente que não lê, ou que não possui desenvolvida a competência da leitura, revela maior dificuldade em organizar o pensamento, exprime-se com maior dificuldade, escreve pior. Faz, além disso, o caminho do insucesso na matemática, nas ciências, nas línguas estrangeiras, na filosofia e na História, na construção de alternativas consistentes ao pensamento único e dominante. Gente que não acede à literatura (a Gil Vicente, a Camões, a Eça, a Cesário, a Pessoa, a Saramago, cujo centenário do nascimento estamos a comemorar…), gente sem possibilidade de acesso à leitura literária encontra-se expropriada de um direito apenas reservado às elites e, como tal, estão-lhe, de algum modo, vedados os usos criativos, inventivos da linguagem, a possibilidade de com eles construir mundos imaginários, alternativos ao aqui e agora, e de questionar criticamente a realidade. Por isso, a literacia verbal e a promoção do livro e da leitura são, serão sempre, um eixo fundamental de qualquer política que vise a construção duma democracia cultural.

A proposta do PCP plasmada no documento Democratização, liberdade cultural – Por um Serviço Público de Cultura, contém, neste âmbito, e de modo muito sumário, um diagnóstico e um conjunto de respostas necessárias, em domínios de competência que, neste momento, se repartem pelos Ministérios da Cultura; da Educação; da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior; e dos Negócios Estrangeiros (sobretudo o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua).

Desenvolvendo alguns pontos, refira-se:

1. A urgente necessidade de definição, no âmbito do Ministério da Cultura e da DGLAB, de uma verdadeira Política para o Livro e a Leitura que abranja os domínios da edição, distribuição e comercialização do livro, incluindo o problema das livrarias independentes (que sobrevivem com extrema dificuldade e têm, muitas delas, encerrado), a questão do preço fixo do livro e sua fiscalização. Uma política que contemple o domínio das bibliotecas públicas; o domínio das bibliotecas escolares; a questão da promoção do livro e da leitura; o apoio aos autores portugueses; o reforço do apoio à tradução de obras nacionais para outras línguas; e outros aspectos ainda. Essa política deverá ainda prever a necessidade da afirmação e defesa da Língua e Cultura Portuguesas e do seu ensino no mundo, bem como da promoção da nossa literatura e dos seus autores no estrangeiro.

2. Aliás, importa estabelecer, neste campo, princípios regulamentadores dos critérios de selecção de escritores para a constituição das representações nacionais em feiras e salões internacionais do livro e noutros certames em que é solicitada a colaboração de entidades estatais, bem como dos modos de nomeação de candidaturas de autores e obras portugueses a distinções internacionais, quando asseguradas pelo Estado português através da DGLAB e/ou do Camões, com o propósito de, por um lado, garantir pluralidade e diversidade autorais e de género nas representações e, por outro, contrariar amiguismos e gestos velados de discriminação ideológica ou doutro tipo. 

3. Estudos recentes, credíveis, camaradas, mostram que os portugueses lêem cada vez menos livros, encontrando-se na cauda da Europa, em termos de índices de leitura. A utilização acrítica, quase acéfala, da Internet e das suas virtualidades é uma realidade gritante. É clara, por isso, a necessidade de reforço da dotação orçamental do Plano Nacional de Leitura e de reformulação do seu plano de acções, com vista à criação duma linha de novos apoios às bibliotecas escolares, pensando quer na actualização dos fundos documentais quer em outros recursos de animação e, bem assim, organizacionais e educativos (actualização de tecnologia; programas informáticos; formação crítica para as novas formas de leitura, etc.).

4. Premente é também a criação pelo Ministério da Educação dum plano de formação contínua de professores que permita uma urgente actualização científico-pedagógica nos campos da educação literária, da formação de leitores e da didáctica da língua e da literatura em todos os níveis da educação (do pré-escolar ao ensino secundário). Mudanças qualitativas no perfil funcional e nas condições de trabalho dos professores-bibliotecários são igualmente prementes. Às próprias instituições do Ensino Superior cabe repensar os seus planos de estudo de licenciaturas e mestrados vocacionados para a formação de educadores de infância e professores, reforçando o peso das unidades curriculares devotadas à educação literária e à educação linguística. 

5. Importante, também, é a retoma, com o financiamento necessário, do programa de itinerâncias culturais, artísticas e formativas em tempos disponibilizado pela DGLAB às bibliotecas públicas – elemento relevante duma política estruturada de ataque a três problemas: o isolamento das bibliotecas públicas do interior, a baixa dos índices de frequência das bibliotecas públicas e a menor atractividade destes equipamentos culturais, em termos de fomento da leitura recreativa literária.  

6. Urge também conceber um programa de apoio às livrarias independentes, mergulhadas numa crise que se arrasta, auscultando a Rede de Livrarias Independentes (RELI) e outras entidades.

7. Como não defender, por outro lado, uma linha de apoio do Estado, exigente e com custos controlados, à edição de géneros com menor capacidade de captação de leitores, tais como o ensaio, o texto dramático, a obra clássica e outras modalidades literárias, com vista a garantir a sua viabilidade editorial/comercial bem como a necessária pluralidade e diversidade da oferta editorial, hoje comprometida pelo domínio do mercado por parte de três grandes grupos editoriais?

8. Uma política de promoção da leitura literária e de apoio aos criadores deve igualmente prever apoios ao movimento associativo de escritores (APE, AJHLP e as muitas associações regionais e locais de autores literários) que lhes permitam o desenvolvimento de projectos descentralizados de promoção e divulgação da criação literária e de promoção da leitura, bem como de apoio a ficcionistas, dramaturgos e poetas emergentes.

9. No quadro duma nova Política para o Livro e a Leitura importa proceder a um diagnóstico dos obstáculos que há muito dificultam a circulação (edição, distribuição, comercialização) das obras literárias entre países de língua oficial portuguesa, com consensualização de propostas concretas (nomeadamente nas esferas alfandegária e fiscal) que favoreçam tal circulação, o conhecimento mútuo das produções literárias dos diferentes países, bem como o diálogo intercultural.

10. Parece-me também de repensar a regulamentação do conceito de manual escolar para cada ciclo de ensino e, consequentemente, das condições de produção e oferta editorial do mesmo (excluindo materiais complementares com elevados custos de produção, os quais inflacionam o preço final do manual e cuja exploração, onerando os cofres públicos, favorece os lucros milionários das grandes empresas do sector: materiais de apoio ao professor, cadernos de exercícios, recursos de tipo informático e audiovisual e outros, materiais de marketing mascarados de recursos pedagógicos, etc.).

Em suma, um punhado de propostas e reflexões, certamente discutíveis, que deixo e que proponho sejam tidas em conta, na consideração de uma nova Política para o Livro e a Leitura, no quadro do Serviço Público de Cultura que defendemos e da democracia cultural e liberdade de criação por que pugnamos.